Agnès Varda fazia filmes com afeto e inteligência

De carreira longa e relevante, cineasta de “Visages, Villages” é figura incrível do cinema na França e fora dela

De uma criatividade fora do comum e também de uma humanidade fora do comum, a cineasta Agnès Varda (1928–2019) passou a vida sendo ignorada ou subestimada por ser mulher num mundinho – o do cinema – controlado por homens. Ao que ela respondeu com uma carreira longa e espetacular, fazendo filmes relevantes em todas as suas décadas de trabalho, de 1955 a 2019. Tente pensar num homem que tenha feito algo semelhante no cinema…

Pois é, não há.

Diferente do que acontece com muitos filmes antigos que são importantes para a história do cinema, mas que hoje são penosos de ver por razões técnicas ou temáticas, os filmes de Agnès Varda, mesmo os mais antigos, continuam sendo extremamente prazerosos.

“Saudações, Cubanos!”

Quer um exemplo? “Saudações, Cubanos!”, de 1963. Varda, que também era uma fotógrafa incrível, viajou para Cuba e registrou a experiência toda usando apenas a máquina fotográfica (nada de câmeras). Quando voltou do então país de Fidel, fez um pequeno documentário de meia hora apenas com narração, música e um uso genial das fotografias. O resultado é tão bom que você esquece que se trata de uma filme feito só com imagens estáticas. (“Saudações, Cubanos!”, e mais uma dezenas de títulos de Varda, fazem parte do acervo da MUBI e você pode ver um trechinho aqui.)

Um trunfo da cineasta belga que vivia na França é o texto: ela escrevia belissimamente e sua narração, com uma voz grave e tranquila, é envolvente e compreensiva. Outra coisa que Varda fazia com uma facilidade tremenda e com poucos equivalentes no cinema: ela era tão boa em ficção quanto em não ficção.

“Visages, Villages”

No documentário “Visage, Villages”, de 2017, Varda faz uma parceria com o artista plástico JR. Ele é conhecido como um fotógrafo lambe-lambe que cria murais enormes com imagens em preto e branco, quase sempre de pessoas. Com a ajuda de andaimes e de uma equipe de assistentes, ele cola essas imagens em prédios, muros, casas, celeiros e acaba mudando a paisagem de um lugar.

E é isso que JR faz no documentário com Varda. Ele entra com os murais e ela, com a empatia e a inteligência para entrevistar personagens e extrair delas fragmentos de suas histórias de vida. Fragmentos que bastam para um instantâneo dessa pessoa. Como a história da senhora que é a última moradora de uma fileira longa de casinhas de tijolos à vista que um dia serviu para abrigar mineradores que trabalhavam na cidade de Bruay-la-Buissière. Mineradores como o pai dela, o que explica o vínculo dela com a casa.

Assim, JR usa fotos antigas de mineradores para preencher as fachadas dos predinhos vazios, mas, naquele em vive a moradora remanescente, ele coloca a imagem gigantesca do rosto dela. A reação da senhora ao se ver colocada na fachada da casa é emocionante. “Visages, Villages” também faz parte do acervo da MUBI.

Apresentada como uma minissérie de dois episódios de uma hora cada um, “Varda por Agnès” também é um documentário, mas com a peculiaridade de ter sido o último trabalho da cineasta e, não por acaso, é um passeio por toda a carreira dela. Um autorretrato. Pode funcionar como um ponto de partida para conhecer ou relembrar Varda e, depois, ver ou rever os filmes citados no documentário. (“Varda por Agnès” está em cartaz no Globoplay.)

Nouvelle vague

Com frequência, o nome de Agnès Varda aparece associado à nouvelle vague, o movimento que revelou François Truffaut e Jean-Luc Godard no cinema francês do fim dos anos 1950. Mas isso é enganoso. Varda veio anos antes da nouvelle vague, criando filmes que eram ousados e inventivos – exatamente os motivos que o pessoal da nouvelle vague usaria para buscar fama e respeito.

Não há nada errado em se buscar fama e respeito, mas a turma de Truffaut e Godard falhou em não reconhecer a importância e a influência de Varda. Também em “Visages, Villages”, ela tenta visitar Godard, mas ele se recusa a recebê-la.

A verdade é que Varda viveu para construir uma filmografia que é mais arrebatadora e atual do que quase tudo que Truffaut e Godard fizeram depois de seus filmes de estreia, “Os Incompreendidos” (1959) e “Acossado” (1960).

Mesmo quando encarava temas mais politizados, ela seguiu fazendo filmes que as pessoas queriam ver. Assim, tratou de feminismo e racismo em obras de ficção e de não ficção, como em “Resposta das Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo”, de 1975, e “Documenteur”, de 1981. Ela chegou a fazer um documentário sobre “Os Panteras Negras” enquanto vivia em Los Angeles, entre 1968 e 1970, com o marido e também cineasta Jacques Demy (1931–1990).  

Mais que tudo, Varda sempre se interessou por gente. Mesmo quando falava de temas politizados, ela na verdade falava da experiência humana. “O acaso foi sempre o melhor dos meus assistentes”, dizia a cineasta. E até o fim ela foi fascinada por pessoas, aberta a conhecê-las, disposta a ouvi-las.

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