Jean-Luc Godard e a experiência incomum de ler “História(s) do cinema”

Cineasta escreve sobre a arte que tanto ama, ainda e apesar de tudo: “para mim/ a história maior/ é a do cinema/ ela é maior/ que as outras/ porque ela se projeta”

Há quem diga que ele é sinônimo de cinema. Numa biografia recente, a capa do livro reproduzia a maneira como o nome do cineasta aparecia escrito no crédito de um de seus filmes:

GOD
ARD

Para alguns, Jean-Luc Godard é uma espécie de deus (god, em inglês) do cinema. Para outros tantos, ele é um sujeito que faz filmes chatos.

Sendo justo com os críticos: sim, Godard ganhou fama como um autor responsável por filmes difíceis de ver. A lista é longa, mas pense, por exemplo, na versão que ele fez de “Rei Lear”, de Shakespeare, nos anos 1980. Uma noite mal dormida não é tão penosa assim.

Porém, ele foi antes disso um diretor e roteirista de filmes geniais como “Acossado”, “Bando à parte” e “Uma mulher é uma mulher”. São clássicos que merecem ser vistos mais de uma vez.

Do final dos anos 1960 para cá, o problema parece ser que um filme de Godard deixou de ser apenas um filme para se tornar também um comentário sobre o cinema, a história da humanidade e o homem como um ser político. (E sobre o que mais desse na telha do diretor.)

“História(s) do cinema”

Agora, o Círculo de Poemas – formado pelas editoras Luna Parque e Fósforo – cria uma situação interessante com a publicação de “História(s) do cinema”, uma raridade que Godard escreveu como parte do projeto que leva o nome do livro e que deu origem ainda a uma série de documentários com oito episódios, produzida entre 1988 e 1998. E “documentários” aqui é maneira de dizer. Porque eles parecem mais um exemplo de videoarte do que de cinema como se vê por aí. Alguns trechos são absolutamente herméticos (ao menos para este resenhista).

O livro mostra que essa característica que Godard tem de testar os limites da arte e do público vale também para o que ele faz no papel. “História(s) do cinema” é descrito como um “longo poema-ensaio”. No entanto, no posfácio da obra, Joana Matos Frias cita o “estranhamento” que o leitor experimenta “perante um poema que não é um poema, feito de versos que não são versos”. Puro Godard.

O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, em foto de 1968. (Foto: Gary Stevens/Creative Commons)

O que surpreende no livro é que, mesmo com esses voos intelectuais, Godard acaba se fazendo entender. Não o tempo todo, claro. Porque imagine se ele seria óbvio assim…

Mas dá para comparar a leitura de “História(s) do cinema” com aquelas ilusões de ótica que ficaram famosas tempos atrás. Você ficava olhando para um quadro de cores borradas e, de repente, uma imagem saltava dele. E para ver a imagem escondida no quadro era preciso relaxar a atenção, não se esforçar demais para ver.

Assim funciona o livro de Godard. Se você relaxar um pouco a atenção e aceitar que algumas informações são inacessíveis, vai conseguir extrair outras coisas do texto. Vai enxergar as imagens escondidas nele.

Ensaio visual

Se o que Godard fez não são poemas e tampouco versos, talvez seja um ensaio. Quem sabe um “ensaio visual”. Porque a maneira como o autor quebra as frases acaba tendo um efeito interessante na leitura. A tradução é de José Roberto Andrade Féres, ou simplesmente Zéfere:

quando você quiser
histórias do cinema
e da televisão
isso não podia vir
senão de alguém
da nouvelle vague

a nouvelle vague
talvez a única geração
que se encontra
no meio tanto do século
quanto talvez do cinema

o cinema
é coisa do século XX
é coisa
do século XIX
mas que foi resolvida
no século XX

que sorte vocês tiveram
de terem chegado
cedo o suficiente
para herdar uma história
que já era rica
e complicada
e agitada

Entrevista

O que muita gente não sabe é que Godard tem um ótimo senso de humor. Numa ocasião, durante uma rara entrevista para a televisão francesa, o apresentador (um sujeito destemido chamado Paul Amar) perguntou qual era a principal diferença entre os franceses e os americanos, na opinião dele.

Àquela altura da conversa, Godard tinha deixado claro sua falta de paciência com o cinema americano e criticado a valer “A lista de Schindler”, de Steven Spielberg, que estava fazendo sucesso na época.

Para a pergunta feita por Paul Amar, Jean-Luc Godard respondeu: “Eles [os americanos] são mais felizes, mas nós [os franceses] rimos mais”. Foi um jeito elegante de chamar os americanos de bobos.

Esse senso de humor aparece também em “História(s) do cinema”. Quando escreve, por exemplo, “eu queria ser engenheiro/ não sei sequer/ se consegui ser engenhoso”. Em outros momentos, é bonitinho ver que Godard, hoje com 91 anos, ama mesmo o cinema. Ainda e apesar de tudo: “por exemplo/ para mim/ a história maior/ é a do cinema/ ela é maior/ que as outras/ porque ela se projeta”.

Uma experiência incomum

Por fim, a edição cuidadosa ajuda muito na experiência de leitura. A equipe responsável pelo livro listou todas as referências estabelecidas por Godard, direta ou indiretamente, ao longo do texto. São dezenas de filmes com títulos em português, autores e fotógrafos. Isso deve ter dado um trabalho imenso. Assim como a tradução de Zéfere, que é acompanhada de notas ao fim da edição.  

Existe aquela expressão que diz “leia o livro, veja o filme”. No caso de “História(s) do cinema”, não se preocupe tanto em ver o filme. Ou veja por sua conta e risco. Já o livro é uma experiência incomum que vale a pena.

Livro

“História(s) do cinema”, de Jean-Luc Godard. Tradução de Zéfere. Círculo de Poemas – Fósforo e Luna Parque, 192 páginas, R$ 79,90. Poesia.

Sobre o/a autor/a

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