Perfil: Casa da Babuska, um espaço de convivência e arte construído com amor e coragem

Protegido por paredes de oito décadas, o ateliê completa 18 anos com histórias que dariam um belo livro

Quem passa pela rua Capiberibe, no bairro Santa Quitéria, quando menos espera se vê diante de uma casa de bonecas, ou melhor, de uma boneca – uma grande Babuska – que olha para a gente com um sorriso simpático e braços abertos. Ela mora num jardim bem cuidado, em frente a paredes pintadas de lilás rodeadas de lambrequins. Não é uma propriedade qualquer, é um lugar que abriga muitas histórias e, bem da mesma forma que numa bonequinha polonesa dessas, cada uma tem outra dentro de si. Elas aparecem no momento em que os corações se abrem, trazem algo de surpresa, mas também há muito em comum. Enquanto as babuskas de madeira são ligadas pelas roupas, cores e rostos, os tijolos dessa casa estão unidos pelo amor, pela coragem, e pela arte. 

Quem abre o portão e dá as boas-vindas é a Lu Dobrychlop, uma mulher daquele tipo raro que não faz força para ser bela e ainda é simpática; entre sorrisos, ela vai explicando “a dona da casa é a Babuska, então somos todas suas subordinadas”. A nossa guia tem ascendência polonesa, bem como Cynthia Werpachowski; logo você vai entender o quanto Cynthia é importante aqui, por enquanto o que precisa saber é que o nome da casa significa vovó em polonês. Lu esclarece que a escolha veio de uma ideia maior do que a simples tradução da palavra, a bonequinha tem várias irmãs entre os povos eslavos batizadas conforme cada língua, mas foi a simbologia que falou mais alto. Essas bonecas nasceram em tempos antigos, quando os homens iam para as guerras e as mulheres ficavam nas casa em regiões muito frias, então, o entalhe da madeira e a pintura eram formas de envolver as crianças com as famílias. “Tem toda uma questão matriarcal, as bonequinhas que saem uma de dentro da outra são a avó, a mãe, a filha; muitos homens não voltavam das batalhas, outros retornavam fragilizados, e eram elas que davam conta da vida”. Essa potência que mora dentro das mulheres tem tudo a ver com a casa – um espaço de convivência e arte. Basta atravessar a porta e você começa a entender. 

Primeiro apague a ideia de que ateliê é um lugar para aulas formais, onde a técnica impera e, vez ou outra, dá espaço para a criatividade entrar sempre silenciosamente ou espanta o belo. A arte aqui não é cerimoniosa, vive com alegria no meio do maior falatório, o que justifica a resposta da guia, já no papel de professora, de que não atrapalha em nada conversarmos no meio da aula na terça-feira à tarde. Com bom humor, Lu explica que todas falam o tempo todo (a turma de hoje é inteira feminina, os meninos e homens fazem parte de outros grupos) e que a habilidade para ensinar no meio disso tudo veio dos tempos como professora de arte para os primeiros anos do ensino fundamental em escolas públicas: “É igual a uma sala de aula.”

Sim, é igual. Mas também é diferente, é um ateliê informal. Enquanto umas estão na pintura em tela, tem quem esteja em outras atividades, como na pintura em gesso. É para ser assim mesmo. O espaço é dedicado ao fazer manual que traz conhecimentos ancestrais, cabem ali diferentes práticas que reverenciam o que foi produzido antes de nós, o que fizeram as mãos de outrora. No meio do papo, a professora levanta e vai orientar uma das alunas, pega o pincel, conversa com ela, mostra a técnica com uma naturalidade cotidiana, como a compartilhada por amigas íntimas. Com o olhar atento, vê logo quando surge alguma dúvida em qualquer uma das presentes, então pede um intervalinho, vai lá, resolve e volta ao ponto onde estávamos. Não é exatamente sempre assim, contudo, naquela terça, eu era mais uma mulher puxando conversa na sala. 

O espaço não se parece com uma galeria, o aconchego vem das pessoas e ganha tons mais fortes porque ninguém tenta esconder que a casa é uma casa. Além do jardim, tem um quintal onde uma jabuticabeira fica carregada de frutinhas. A cozinha parece aquelas de vó (toda equipada para os cafés da tarde, que foram surgindo por iniciativa das frequentadoras e agora fazem parte das atividades diárias), a toalha de mesa veio da Polônia, o micro-ondas tem dupla função e serve de poleiro para uma enorme coleção de galinhas dos mais diferentes tipos. Dá para ver o carinho em todos os cômodos e o cuidado em cada detalhe. E não pense que são poucos, só para dar um exemplo, tem uma babuska em cada cantinho – numa tarde apenas, não dá para contar quantas moram ali.  

Uma casa com 80 anos de história

Nem se quisesse Lu conseguiria esconder o brilho nos olhos ao falar da casa, que já tem cerca de 80 anos. E não é para menos, como quem tira uma bonequinha de dentro da outra, o que ela acaba contando é a história de diferentes gerações da família. A vizinhança era uma vila militar e o endereço de um dos primeiros conjuntos habitacionais da cidade, da década de 1940, por isso várias construções parecidas com a Babuska surgiram naquelas ruas. Seu Eugênio era sargento do exército naquela época. Ele comprou o lote e, em seguida, mudou-se para a nova residência com a esposa, Dona Zeneide, e as duas filhas mais velhas. A terceira já nasceu ali, ela é a mãe da Cynthia. 

Eugênio e Zeneide, avós de Cynthia Werpachowski.

Zeneide foi uma mulher muito presente no bairro, até se encarregava de lavar os uniformes do clube de futebol União de Santa Quitéria. Quando faleceu, aos quarenta anos de idade, foram os jogadores do time que carregaram o seu caixão. O avô, Seu Eugênio, estava perto dos 50 anos e nunca teve outra esposa, viveu até quase os 90, quem cuidou dele durante todo esse tempo foi a primogênita entre as três meninas, a Tia Leoni. Ela, por sua vez, cresceu, se casou, teve filho e esteve até o fim dos seus dias na casa. A filha do meio construiu outra casa no fundo do terreno, depois acabou indo embora com o marido e essa segunda residência ficou vazia por anos. 

Foi então que o matriarcado da Tia Leoni trouxe Cynthia e Lu, até então as duas moravam no bairro Boqueirão. Ela chamou o casal para um almoço de domingo e disse: “O pai falou que onde comem três, comem cinco, e vocês vão morar aqui atrás.” O riso vem quando é revelado que Seu Eugênio já mal falava naquela época. Fizeram a mudança no feriado de Tiradentes do ano de 1994, graças ao cuidado e ao carinho da tia, com o consentimento dos demais familiares. O preconceito naqueles dias era ainda maior do que hoje e “foi a Tia Leoni que segurou toda a barra.”

Depois os parentes foram chegando ao fim da vida, cada um em sua hora, até que a casa da frente ficou vazia. Fora do expediente, Lu dava aulas em vários ateliês e conhecia muita gente que queria aprender pintura, porém em um lugar mais perto. Passaram alguns meses e o imóvel continuava desocupado, aí foi a vez de Cynthia assumir o matriarcado e dizer: “Pega os cavaletes que estão espalhados por onde você dá aulas e põe aqui.” Assim nasceu a Casa da Babuska, no ano de 2006, ela completa 18 anos em atividade neste mês de maio.

O preconceito morou ao lado

As duas são sócias para além da Casa. “A gente compartilha uma vida, tudo que está nas nossas vidas é compartilhado também”, diz a diretora da Babuska, que deixou de ser professora na rede de ensino do município para se dedicar exclusivamente ao ateliê há alguns anos. Cynthia tem as funções honorárias de vice-diretora e pedagoga, não está sempre ali porque ainda trabalha em escolas públicas. Elas se conheceram nos caminhos do ensino, e, em outubro, completam 33 anos de amor e união. 

Apesar da relação linda e sólida, o casal passou por muita discriminação e aprendeu a não falar da vida conjugal para evitar desgostos. Elas seguiram em alguma medida o exemplo da Tia Leoni, que apenas dizia para as vizinhas “essa é minha sobrinha, e ela também é minha sobrinha”. Sem perder a elegância, aquela mulher forte encerrava o assunto. Contudo, as pessoas deduzem o status do relacionamento. “Olham duas mulheres morando na casa; quem entra ali ou é o pai, ou um irmão, um primo, um familiar… ‘Esse povo não se casa, não tem marido, não tem filho, ninguém fica grávida?’ É claro que juntam lé com cré.”

O caso mais grave de homofobia enfrentado pelas duas começou quando uma vizinha ligou esses pontos e passou a falar o que não devia pelo bairro e abordar quem vinha ao ateliê. Ah, ela cercou os pais e mães de alunos também. Foram muitos os problemas, uma série de alunos foi embora, principalmente crianças, vários se afastaram de maneira suspeita, alguns sequer voltaram para buscar o próprio material; objetos absurdos eram jogados no jardim; lixo aparecia; e nada freava a jornada do preconceito. Também foi muita a paciência, até a situação ficar insuportável.

A gota-d’água foi um jardineiro cuidar da grama de lá espalhando sujeira no lado de cá, em frente a Casa da Babuska. Lu decidiu reclamar pela limpeza e notou que a vizinha ouvia tudo atrás do muro, então a tal precisou ouvir, não mais escondida e sim frente a frente, que era homofóbica. As atitudes preconceituosas passaram a ser ainda mais agressivas. Foi quando, no ano de 2019, apelaram para a justiça.

O objetivo era provar que o respeito é obrigatório. Ver aquela mulher, ao lado do marido, afirmar que não fazia nada do que era acusada na primeira reunião do processo foi difícil, muito difícil, lembra a professora. Na segunda reunião estava claro que a agressora se apoiaria na religião, chegou rezando com um terço nas mãos. Por obra do divino ou do destino, o rosário arrebentou espalhando as contas para todo lado. As três testemunhas dela vieram da igreja do bairro para inclusive serem ouvidas em outro processo que, agora, era movido contra o casal por supostas agressões. Para lutar ao lado de Lu e Cynthia, veio o ateliê inteiro junto com outros vizinhos, eram mais de dez testemunhas. Infelizmente não foi o suficiente para a justiça ser feita, nenhum dos lados ganhou a causa. Naquela data, os atos de homofobia e transfobia ainda não eram enquadrados como crimes de injúria racial – inafiançáveis e que não prescrevem –, todavia Lu guarda a carta da juíza apontando as questões de preconceito no caso. 

Histórias de amor e amizade

Não precisa ser expert para ver que não é o lucro quem dita as regras na Casa. É o amor, sentimento que cria laços fortes de amizade, como os que motivaram a mobilização em defesa do casal durante o processo. É encantador. Só para você ter uma ideia, na turma das tardes de terça tem: quem veio da época da Lu na rede pública; trios formados por avó, filha e neta (qualquer semelhança com uma babuska não deve ser coincidência); as que buscaram a pintura depois da aposentadoria; quem ainda intercala técnicas com brincadeiras; e muitas que estão há anos por ali, ou seja, vieram para ficar. Todas respondem que encontraram no ateliê muito mais do que a arte, o aperfeiçoamento e a criação acontecem enquanto se descobrem e também se curam, como em uma terapia. O afeto é contagiante e as histórias delas são irresistíveis, é tanta coisa bonita que um texto apenas não dá conta. 

Edit Rodrigues chegou a conhecer a Tia Leoni. Não foram íntimas, tiveram um encontro rápido – foi uma piscadinha do futuro para ela jovenzinha. Ela é uma das primeiras frequentadoras, tem 77 anos de idade e há 18 está por ali, alimentando a paixão pela pintura em tela e passando o gosto pela arte para novas gerações da família. É a filha, Simone, quem traz Edit, e também acaba permanecendo por ali mesmo sem participar oficialmente do grupo, mas não fica parada “é fazedeira”. Dentro e fora desse espaço, o tempo todo as mãos estão criando e produzindo. Ana Beatriz é a neta, sobrinha de Simone, que poderia até estar em outro lugar naquele horário, contudo, prefere a Casa da Babuska. É uma menina determinada, aprende e faz arte, depois brinca, participa do café, e a tarde segue assim. 

Débora Castro é formada em serviço social, tem 30 anos de idade e parece a mais compenetrada naquele dia, quase parece ignorar uma presença diferente no ateliê. Rapidamente essa impressão cai por terra entre sorrisos, a necessidade de manter o foco é porque precisava sair mais cedo que as demais (nessa altura a aula já meio que deveria estar perto de terminar, mas o horário é ultrapassado cotidianamente, sem incomodar as frequentadoras ou a professora). Débora está nos grupos da Babuska há 13 anos e é mãe da Andressa, que com três anos de idade já veio pintar, tem até quadro feito por ela exposto ali.

Jacyra Sabino é servidora pública aposentada, fez carreira no ensino em uma função que deixou de existir com o avanço das terceirizações. Ela trabalhava como cozinheira, suas mãos são abençoadas e agora temperam a vida com a arte. Jacyra, que é curiosa e troca muito com as amigas, inclusive sobre os assuntos de tecnologia, estava naquela tarde a pintar um pequeno busto em gesso com cores vivas , uma graça.

Marta Andrade é a alegria em pessoa, adora um bom papo. Com uma agilidade invejável não para, resolve algo aqui, faz uma coisa ali, prepara algo lá, e rapidinho te leva para dentro da vida dela. É difícil escolher qual a melhor história dela, mas olha, dá para apostar na que serve como justificativa para o seu jeito de ser. É que a mãe ficou grávida dela graças a um namoro dos pais dentro do… ai, eu não sei se posso contar mais detalhes aqui. Um dos grandes motivos de Marta para frequentar o ateliê é a amizade com Sirte.

Sirte Félix e a professora Lu Dobryclop.

Sirte Félix tem 71 anos de idade e esteve nas salas de aula até os 63, quando se aposentou da carreira de professora decidiu aprender a pintar, há oito anos frequenta a Casa. A história dela é a de um milagre. Como ela mesma diz, foi “dormir bela e bonita, e amanheceu cega”. 

A artista havia deixado telas por terminar no ateliê quando a covid-19 chegou apareceu no mundo. Durante o auge da pandemia, em fevereiro de 2021, desceu para o andar inferior do sobrado na praia e a visão ficou estranha. Ao olhar para um quadro, viu as cores trocadas, se misturando, quando encarou a TV o objeto se mexia, saía do lugar. O primeiro atendimento médico, já em Curitiba, não deu a devida atenção ao caso, mesmo com a outra reclamação de Sirte sobre a forte dor de cabeça. Retornou para Matinhos e nada de melhora, indicaram voltar para a capital, pois não conseguia ver quem estava dentro de casa, eram apenas vultos pretos. Ela já não enxergava. 

Ficou sete dias no hospital, fez uma montoeira de exames e deram alta, foi para a casa da filha aqui na cidade mesmo enquanto só via escuridão. A médica que a atendeu até então indicou outro médico, assim, conseguiram um encaixe na agenda do doutor. Da consulta, seguiu direto para mais um internamento de cinco dias, finalmente alguém descobriu o motivo do sumiço da visão e começou o tratamento para uma infecção no nervo ótico, que incluiu nove meses de corticoides. Quando voltou a enxergar, precisou encarar a depressão. O resgate envolveu psicólogo, psiquiatra, e voltar a frequentar a Casa da Babuska. Ainda está tratando a visão e a mente, mas terminou a pintura de cada uma daquelas telas.  

O que o futuro reserva para esta história?

Manter as portas abertas não é só enfrentar a discriminação, é também uma batalha pela arte. Disposição não falta, então enquanto Lu tiver saúde ela continua enfrentando o que for preciso, depois vem o problema. Imagine-se abrindo uma babuska sem encontrar a boneca da próxima geração, não ver a continuidade e compreender que um trabalho tão bonito pode se perder. Esse é o ponto, não há herdeira ou herdeiro para assumir a missão de cuidar do ateliê, por isso a preocupação anda dando as caras por ali. 

A melhor saída, a única que apareceu por enquanto, é transformar o espaço em um instituto, para sobreviver com ou sem a presença do casal. Falta amadurecer a ideia e entender tudo o que é preciso para formalizar a transformação. Nesse momento, a Lu faz uma pergunta quase ingênua, quer saber se eu notei que a casa tem vida própria (nem é preciso responder), segue explicando uma das motivações para manter a Babuska viva, “acho que a Casa faz, não, eu sei que a Casa faz bem para muitos, até para mim”. Ela também deixa claro o quanto é preciso encontrar gente com apreço e vontade de seguir nessa batalha, para evitar que no futuro tudo ali vire só história. “O que pedimos ao Universo é que traga essas pessoas para nós.” 

Serviço: Casa da Babuska

A Casa da Babuska – Espaço de Convivência e Arte tem turmas para diferentes idades (adultos, crianças e adolescentes) e fica no bairro Santa Quitéria. Informações sobre vagas, horários e valores das atividades podem ser solicitadas aqui.

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