Perfil: Bina Zanette escapou de virar ‘dona da boca’ para ser uma grande produtora cultural 

A guria que saiu a contragosto do Capanema é hoje uma mulher que trabalha em produções como Rock in Rio e Festival de Curitiba para deixar um legado de bastidores mais inclusivos

O pedido feito por Bina Zanette para mandar um último e-mail antes de conversarmos não surpreendeu, é daquelas mulheres que faz muita coisa o tempo todo. A perna cruzada balançando levemente e dando pistas sobre uma inquietude que ela teima em tentar controlar, também não. A surpresa foi a encontrar, no meio dos corres da pré-produção do Festival de Curitiba, vestida de branco dos pés à cabeça. Quem circula por bastidores de grandes eventos sabe do que estou falando, a galera que faz acontecer quase nunca ousa fugir das roupas pretas.

Ela nem se lembra de quando o apelido Bina pegou, mas nasceu Maria Balbina, batizada com a junção dos nomes da avó materna e paterna. Certeza sobre quem definiu a escolha também não tem, atribui o feito a sua mãe, Augusta Antônia, até porque a dona escolheu a mesma letra inicial para as duas outras filhas (a mais velha é Mariana e a mais nova, Marcela). Na verdade, ser filha dessa mulher decidiu muito mais que um nome.

Falar que a infância e adolescência foram difíceis não é romancear a história da produtora, eram muito pobres e o pai alcoólatra não ajudava,”estava dentro de casa todo dia, mas era como um abajur”. Já Augusta fazia de tudo um pouco, ou melhor, de tudo um muito para afastar a miséria das meninas que cresciam na região chamada Jardim Botânico hoje. Na época, ainda era o Capanema, bairro periferia, daqueles onde é preciso aprender a se defender cedo e falta acesso a muitas coisas. Para uma guria intensa, que flertava com a violência e tinha curiosidade de provar de tudo na vida, era o lugar perfeito para tomar um caminho “estranho”. Já tinham um bom motivo para ir embora, faltava uma boa desculpa. E como só a arte salva, Mariana entrou no curso técnico de teatro no Colégio Estadual do Paraná, foi a deixa para se mudarem com destino ao Centro da cidade. Bina tinha 14 anos e foi a contragosto.

Bina poderia ser qualquer coisa, até a ‘dona da boca’

Bina Zanette

Hoje, aos 43 anos de idade, solta risadas enquanto admite que sair do Capanema foi a virada decisiva: “Não sei se estaria aqui hoje ou se iria ser dona de uma boca”. Bina é uma daquelas mulheres inquietas com tamanha força que poderia ser qualquer coisa, até a ‘dona da boca’. A vinda para o Centro garantiu caminhos melhores, mas nada fáceis, por muito tempo a comida na mesa veio do vale-alimentação recebido como menor aprendiz na Caixa Econômica Federal.

A produção se tornou uma carreira possível pela força feminina da família. Surgiu nas andanças com Mariana (atriz e produtora) ao redor do teatro curitibano – quando conviveu com artistas como Enéas Lour, Fiani, Nena Inoue, César Almeida, Paulo Biscaia Filho, entre muitos outros – e da fé que a mãe tinha em tudo que as meninas resolveram fazer. O endereço de chegada, na rua Francisco Torres, também colocou no mapa das proximidades o Teatro da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, o Teatro Guaíra e o Lala Schneider, o Café do Teatro…  O universo da irmã mais velha ainda influenciou Marcela, que se tornou musicista, e Augusta, atualmente artesã, costureira e figurinista; entretanto, Bina teimou um pouco para ver que o seu lugar era ali. 

Pensou até em estudar Medicina, porque os médicos resolvem a vida das pessoas (de repente, se dá conta que o trabalho com produção é bem isso). Seria muito difícil, então o vestibular foi para Biologia, não passou e entendeu que faculdade não era o que desejava fazer. Completou 18 anos de idade agarrando o touro à unha, fez ‘freela’, ‘taxa’ em bar e um mundaréu de outras coisas.

Suas paixões sempre foram intensas. Num desses encontros marcados pelo destino, viu o fundador do Centro Cultural Boqueirão Márcio Roberto fazer malabarismo com bolinhas e achou legal; logo treinava de 8 a 10 horas por dia, transformou-se em uma artista de circo respeitável. Com o amor pelo músico que foi seu primeiro companheiro, veio o estudo da música e, como não poderia ser diferente, estudou teatro. 

A “tentativa de ser artista” que tropeçou na timidez. Ainda criança ela foi uma esportista promissora, em diferentes modalidades se destacava nos treinos. Já nos jogos, era só angústia; passava mal por estar em foco. Esse mesmo desconforto sentiu no palco, mas saiu dali sem qualquer frustração, estava seduzida pelos bastidores da arte.

Ela fez e faz um mundaréu de coisas

Bina encontrou a melhor escola da profissão aos 21 anos, quando foi trabalhar no Mundaréu – grupo de música popular do Norte e Nordeste comandado por Itaercio Rocha. Aprendeu muito do ofício com Daniela Gramani, produtora deles na época. Foi essa trupe que viajou pela primeira vez de avião, de Curitiba para o Maranhão, depois ninguém mais a segurou. Passou pelo Brasil inteiro em turnês e entendeu algo que defende até hoje: “o trabalhador da cultura é um trabalhador do todo dia, muitas vezes não tem emprego fixo e tira tudo do nada”. 

Bina Zanette

Ela começou quando nem existia uma lista com telefones dos espaços culturais, a internet era discada e cara, o império das gravadoras ainda fazia eco na música. De lá para cá, o ritmo incansável de quem não tem preguiça de ir atrás do conhecimento e nem se encolhe diante dos perrengues a levou para a estrada com diferentes artistas, bandas, bem como para os bastidores de inúmeros shows e para as equipes de grandes festivais. O currículo tem Denorex 80, Karol Conká, Guinga, Alexandre Nero, Brasis no Paiol (em parceria com Heitor Humberto), Tribaltech, Curitiba Jazz Festival, Lupaluna, Virada Cultural (Paraná), Favela Sounds (Brasília-DF), The Town (São Paulo-SP), uma década de direção de produção do Psicodália (Santa Catarina). Se for listar certinho tem ainda uma infinidade de eventos aqui.

No meio de tanta coisa feita para os outros e para seus próprios projetos, não faltaram convites, bem dizer ela nunca pediu trabalho. Isso não tem nada a ver com orgulho, vem da postura empreendedora e da agenda cheia, contudo pintou uma crise e trouxe a vontade de experimentar outros ares. Nas produções com Eveline Hort, conheceu o vice-presidente do Rock in Rio, Paulo Fellin, a conversa rolou bacana e tudo indicava que ele gostou do trabalho de Bina. O timing foi perfeito, mandou um e-mail para ele contando de sua trajetória e se arriscou na pergunta sobre fazer parte da equipe do festival, um dos maiores do mundo. Meio estupefata, recebeu a resposta: “Aham, vou te ligar.” A chance era para descascar o pepino da logística artística do palco Sunset, não era uma grande especialista na função, mas sabia como era o trabalho. Depois ouviu a pergunta sobre como era o seu inglês, sem medo, respondeu na lata: “É horrível!” 

Está no Rock in Rio até hoje, mas subiu para o cargo de coordenadora de logística do Sunset, onde, no ano retrasado, quase saiu da postura absolutamente profissional por alguns minutos. Ela fez questão de receber pessoalmente e ver de perto um artista, ninguém menos que Gilberto Gil. A tietagem parou ali, Bina não entra em camarins com as estrelas, nem com as grandes nem com as pequenas: “Eu sou uma trabalhadora de trás do palco, sei exatamente o meu lugar.” Ah, o inglês melhorou muito com o passar dos anos. 

“Eu não me submeto a homem”, fala Bina

Nem precisava, mas Bina afirma: “Eu não me submeto a homem.” A frase é dita com um tom de naturalidade que não foi conquistado facilmente. Para seu trabalho ser respeitado quando começou a coordenar equipes formadas na maioria por homens, precisou se impor e reagia na mesma moeda do que sofria. Contudo, a mulher que parece inabalável se machucava com o peso do esforço em dobro para provar sua competência. Por vezes ouviu de chefes que, apesar de ser a melhor produtora entre muitos, era muito sensível, devia ser “mais fria”. 

Bina Zanette

Nunca se intimidou, escolheu manter a sua essência. Para quem duvidava, agora a produtora mostra que a sensibilidade é uma qualidade fundamental para estabelecer uma relação horizontal com todos, desde quem está no palco até quem limpa os banheiros. Fora não se tratar de uma característica apenas feminina. O sofrimento acabou, com inteligência criou seus próprios mecanismos para combater a misoginia e consegue se fazer entender de maneira não agressiva em qualquer lugar. 

Nada para esta mulher? 

Bina diz que não é, mas parece incansável. Parar, não para, só que a vida impõe pausas às vezes. A alegria quando recebeu com o companheiro a notícia de sua gravidez foi imensa, os olhos brilham ao contar sobre o filho, já muito amado antes de nascer e depois, mais ainda. Todavia o ritmo frenético do trabalho não diminuiu com a maternidade. Estava trabalhando como produtora de um palco, em seguida como coordenadora, logo como diretora de produção e de repente estava cuidando de um festival inteiro ainda com o filho recém nascido (certas vezes alimentado com leite materno tirado e congelado nos eventos, para seguir de van até as mãos do pai ou da avó). Veio a Síndrome do Burnout, uma fase que já passou. 

Pode parecer um pulo na história falar do Festival de Curitiba agora, mas confia porque faz sentido. A Mariana já trabalhava no evento e Bina tinha feito umas coisas para o Fringe quando foi chamada pela diretora de produção da mostra principal naquele tempo, Caroll Teixeira, para cuidar de alguns espaços e da festa de abertura. Aceitou e continuou fazendo isso até 2022, ano em que tomou conta do Teatro Guairão, então recebeu uma nova ligação, agora da diretora do Festival de Curitiba Fabíula Passini com o convite para assumir a direção da Mostra Lúcia Camargo (atualmente o pacote incluí Guritiba, Interlocuções, Mostra Surda e Temporada de Musicais).

“Eu sou muito a fim, só que temos algumas questões…” A primeira era que, depois de 25 anos de carreira, as pretensões de Bina mudaram, não basta ser executora em um projeto dessa grandeza é preciso ter autonomia para tomar decisões e fazer transformações importantes na área. Recebeu a carta branca. 

O segundo ponto era exatamente a pausa. Para quem já esqueceu, a produtora vestia branco quando nos encontramos, é a cor das sextas-feiras sem exceção; e, de vez em quando, girava o anel enfeitado por um búzio, o símbolo de Exu estava em outro anel. Os sinais estavam dados, o que faz Bina parar um pouquinho são as obrigações com o Candomblé. Para afastar dúvidas quanto à devoção, basta saber que o endereço onde os compromissos são cumpridos não é perto. Nem teria como ser, ela é filha do terreiro jeje mais antigo do Brasil. Ele fica em Cachoeira, no Recôncavo Baiano.

O caminho cruzado até lá deixa qualquer um admirado. Passou pelas mãos de um vizinho chamado Rômulo Miranda (ela o via sempre de branco às sextas, mais tarde ele cuidou dela por muitos anos e se tornou um amigo) e seguiu até a porta do Roça do Ventura (Seja Hunde). Novos filhos sequer eram aceitos ali, mas Bina não é qualquer um, a chegada da curitibana era esperada. A forte conexão pode ser fruto, entre outros motivos, do espírito destemido dela, bem-vindo na religião que sofre preconceitos por ser vista como maligna enquanto a verdadeira morada do mal está nos intolerantes – aqueles que até incendeiam terreiros; outra motivação certamente é a potência feminina da casa fundada por mulheres com ritos tradicionais da nação jeje (africanos escravizados vindos para o Brasil do reino de Daomé, protegido pelo exército de guerreiras Ahosi). 

Voltando ao festival, a equipe precisava aceitar a substituição dela por um bom período em uma data relativamente próxima a do evento, ou nada feito. Com a benção dos voduns, o acordo deu certo e a filha de Bessém – cobra que morde a própria cauda e faz a roda do mundo girar – voltou ao teatro em Curitiba como quem completa um belo ciclo. 

Uma mãe contra o patriarcado

Desafiar o patriarcado também passa pelos afetos da vida, atravessando questões de Bina com a maternidade e a criação do filho Chico. Ela não se encaixa no modelo “mãe tradicional”, cuidadora da casa, do marido e da família, e bancou todas as escolhas que fez: deu de mamar com o computador na mão, seguiu na lida fazendo de tudo com o filho no colo, sempre se virou. Nada disso a poupou de perguntas sobre quem estaria cuidando do menino enquanto ela trabalhava, ou porque ele estava com a avó e não com o pai. O guri tinha três anos de idade quando o casal se separou.

Muito rápido você saca que a mantenedora das despesas é Bina, e apenas Bina. Os cuidados também ficam a cargo dela na maior parte do tempo, mas ter uma rede de apoio liderada pela mãe, com a presença de amigas e certas participações do pai, tornou possível conciliar o mundo profissional com o materno. Hoje Chico tem 13 anos, torce pelo Corinthians é um adolescente amoroso que enfrenta ao lado da mãe os embates da vida. Claro que os confrontos existem, ela não pode entrar no quarto dele sem permissão, mas o filho vai dormir no quarto dela sem qualquer cerimônia, a fase pede que se estabeleçam limites. O garoto também pede atenção, sabia do horário reservado para a entrevista, mesmo assim pediu que a escola ligasse para ela por causa de um desses perrenguinhos do dia a dia (e está tudo bem, tem horas que nada é melhor do que um carinho da mãe). Por enquanto, Bina ainda é a super-heroína que resolve todas as coisas dele.

O projeto futuro 

Sempre em movimento, projetos não faltam. Agora, por exemplo, ela está produzindo o maior deles: a mudança nos ambientes de trabalho, para que a diversidade entre em cena. E vem fazendo o que muitos só falam, está capacitando pessoas enquanto desenha processos, aproveita a posição e as parcerias que conquistou para buscar transformações profundas. Não é a menina curiosa e inquieta que está na gestão disso, é a mulher inteligente e determinada que traça os novos caminhos da cultura. 

Mesmo para quem parece ser capaz de fazer o impossível, mudar o cenário não é simples. Bina até já rompeu com o feminismo quando entendeu que ele não dá conta de todas as mulheres, principalmente das negras. As questões raciais são caras para ela na profissão e no campo dos afetos, estuda muito antirracismo e letramento racial e procura ser cuidadosa, sabe que sua pele branca jamais sofrerá o que colegas e amigos negros vivem diariamente. Enquanto admite que o mercado cultural é mais receptivo à comunidade LGBTQIA+, com menos espaço para homofobia, a indignação surge estampada em seu rosto ao afirmar que nós, brancos, somos racistas.

Contudo ela não nunca se encolheu diante de dificuldades e não fraqueja na hora de trazer mais mulheres, mais negros, mais pessoas trans, mais aprendizes inexperientes para compor ambientes de trabalho diversificados. Tá na briga para tirar os preconceitos de cena, puxa os temas sensíveis que já chegaram aos palcos para aos bastidores, se esforça para que as minorias passem a encontrar identificação nas equipes técnicas e também nas posições de comando. Aqui os olhos ganham brilho novamente ao falar que a maior motivação no trabalho são as conquistas por espaços mais justos: “Eu vejo acontecendo, é uma satisfação absurda.”

No fundo, o sonho tem tudo a ver com o que um bom produtor faz, ela quer resolver a vida das pessoas. Deseja deixar como legado, para o filho e para todos, relações profissionais com mais equidade ao menos nos espaços onde atua, uma contribuição que ajuda a transformar o mundo em um lugar melhor, com mais aceitação, afeto e amor. Cumprida a missão, Bina vai agradecer e ir “envelhecer no meu terreiro, para cuidar da cabeça”.

Bina Zanette

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