Dia da Mulher: Ela enquadrou o prefeito que não acredita em racismo

Numa Câmara de maioria governista, vereadora petista emplacou a principal vitória política de 2021: a lei de cotas em concursos públicos

Era início de dezembro de 2020, no rescaldo do resultado das eleições municipais em todo o Brasil, quando o prefeito recém reeleito de Curitiba, Rafael Greca, apareceu no programa da Andrea Sadi na Globonews. Em transmissão para todo o país, Greca falou da pandemia, da reeleição, da cidade, mas o que ficou foi um comentário sobre outra candidata eleita: a primeira vereadora negra da capital, Carol Dartora (PT).

“Eu discordo da vereadora que em Curitiba exista racismo estrutural”, cravou o prefeito. Como prova de que a capital não tem racismo, Greca – como é comum em suas digressões públicas – citou a história familiar. O pai dele, contou, tinha como colega Enedina Alves Marques, que ficou conhecida como a primeira engenheira negra do Brasil e que se formou na Universidade Federal do Paraná.

Nos quatro anos do mandato anterior, Greca havia mantido uma espécie de “tradição” dos prefeitos da capital: com maioria esmagadora de vereadores na base do governo, ele esmagou qualquer chance de um parlamentar da oposição conseguir aprovar qualquer item relevante. Claro que isso impede a ação dos parlamentares do bloco, mas prejudica bastante a promoção de projetos dentro da Câmara que não tenha a chancela do prefeito.

O que resta para quem não está na base governista é aprovar projetos mais inócuos, como dar nome a logradouros, criar datas comemorativas ou de conscientização e a indicação de pessoas e instituições para prêmios e títulos. E, claro, forçar a prefeitura a se explicar, denunciar problemas e impedir que as iniciativas do executivo sejam tratoradas até a aprovação em plenáriono legislativo.

A vereadora do PV, Maria Letícia, sabe bem como isso funciona. Eleita em 2016 para seu primeiro mandato, Maria Letícia integrou inicialmente a base do prefeito na Câmara. Como parte da base, conseguiu emplacar vários projetos de lei significativos, como o que uniformiza os procedimentos das UPAs.

Em 2017, em seu primeiro ano na Câmara, ela aprovou 13 leis, apenas três dos quais eram referentes a datas comemorativas e nomes de rua. A situação mudou em 2020, quando ela deixou a base, passou um período como independente e depois se juntou ao pequeno bloco de oposição, que na época era formado pela Professora Josete (PT), Noemia Rocha (MDB), Professor Silberto (MDB), Goura (PV) e Marcos Viera (PDT).

Dali em diante, o sucesso de Letícia no plenário ficou quase inteiramente restrito a projetos de nomes de rua, datas comemorativas, programas de conscientização (como o projeto que “Institui a Campanha Municipal Informativa para Empresas sobre Epilepsia”) e indicações para prêmios.

Cotas raciais

Foto: Tami Taketani

Janeiro de 2021 foi intenso para muita gente em Curitiba. As primeiras doses da vacina contra Covid-19 começaram a chegar na cidade na segunda quinzena, enquanto o número de casos aumentava de forma preocupante. Na Câmara de Curitiba o trabalho dos novos vereadores permaneceu virtual.

A vereadora Carol Dartora tomou posse como a primeira negra a ocupar uma vaga na Câmara, o que ela considera sua maior conquista naquele ano.

“É estranho que uma conquista coletiva significa para mim uma conquista individual. Como sou muito atrelada a causa negra, se fosse outra mulher preta estaria me sentindo contemplada também.”

Carol Dartora, vereadora (PT).

Além de Dartora, a Câmara já teve outros vereadores homens, como Mestre Pop (PSC) e Herivelto Oliveira (Cidadania). Em 2020, além dela, de Oliveira, a população também elegeu Renato Freitas (PT). No entanto, se a Casa fosse ter um número de parlamentares negros proporcional a população negra, parda e indígena da cidade, seria necessário pelo menos o dobro.

“A população negra aqui vive a exclusão diariamente. Estar aqui num espaço que nos foi negado a tanto tempo é simbólico”, diz. Justamente por isso Dartora colocou entre suas prioridades como vereadora aprovar “uma política de reparação”. E essa política de reparação ganhou nome e sobrenome no dia 29 de janeiro: cotas em concursos públicos municipais.

O projeto de lei apresentado por Dartora pedia uma reserva de 20% das vagas em concursos públicos do município para pessoas que se declaram negras, pardas e indígenas. No papel, era a implantação de uma ação com pelo vinte anos de história no país, quando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro determinou a reserva de 50% das vagas das instituições de ensino superior do estado para alunos de escolas públicas e, um ano depois, determinou que 40% dessas vagas fossem reservadas para pessoas negras.

Não foi sorte

Enquanto comemorava a eleição para a Câmara e lidava com as primeiras ameaças de morte, Dartora continuava o que vem fazendo há um bocado de tempo: articulação política. Para quem não acompanha o movimento negro na cidade, a eleição dela pode ter sido uma surpresa, talvez sorte.

“Dói muito quando dizem que é sorte. Foi uma construção.”

Formada em História, Dartora começou o curso em Curitiba, mas terminou na UERJ justamente quando as primeiras turmas das cotas raciais estavam se formando. Ela decidiu então ir para a Europa para estudar e trabalhar. Acabou ficando dois anos entre a Itália e Bélgica. “Voltei mais inconformada ainda”, conta.

Nascida em Curitiba, a vereadora diz que sempre sentiu um incômodo. “Aqui ou você é da Bahia ou é haitiana [se é negra]”, diz. Não que ela quisesse abrir mão de seu lugar. “É minha cidade, nasci aqui, cresci aqui”, afirma. Filha de pais militantes, Dartora começou sua atuação política no retorno ao Brasil.

“Fui dar aula, fui para o sindicato. As pautas vão se somando: o feminismo, o movimento negro”, continua. Para ela, o desejo de mudança foi o que a levou para a educação e, eventualmente, para a Câmara. Um desejo de transformação, “de ver mais pessoas negras em locais de poder”. Até que um dia, numa reunião do movimento negro, alguém disse: aqui nunca teve uma vereadora negra. “Então temos que eleger a primeira vereadora negra, falei. E comecei a militar por isso.”

Não foi uma ação isolada. Em todo país havia movimentos de construção de lideranças negras. “Há um tempo histórico [de construção de lideranças] que as pessoas não enxergam”, diz.

O caminho da vitória

Uma vez na Câmara, Dartora estava ciente que o caminho para aprovar uma política de cotas raciais na cidade não seria fácil. Mas a aposta era numa legislação com histórico sólido, cujos impactos foram bastante analisados e detalhados. “Apostava na força da própria política”, explica, ela mesma uma beneficiária das cotas na UERJ. “Não acho que exista uma mulher negra eleita que não tenha sido impactada pelas cotas”, afirma.

O primeiro passo foi relativamente tranquilo, com uma aprovação unânime do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que analisa a legalidade e a adequação da proposta ao escopo do trabalho legislativo municipal. Mesmo a vereadora Indiara Barbosa (NOVO), que apresentou um voto em separado pedindo mais informações, acabou também votando pela aprovação.

A situação ficou mais complicada na segunda comissão, a de Educação. Lá a relatoria ficou com outra vereadora do Novo, Amália Tortato, que num primeiro parecer pediu mais esclarecimentos a prefeitura de Curitiba a respeito do percentual de pessoas pretas, pardas e indígenas no serviço público municipal atual.

Num segundo parecer – que como o Plural denunciou à época continha trechos inteiros plagiados – Tortato foi mais longe: alegou que as cotas raciais não seriam adequadas e que deveriam ser substituídas por cotas com critérios econômicos. O NOVO acabou sendo o principal adversário do projeto na Casa e ambas vereadoras do partido votaram contra, dois dos cinco votos contrários contra 30 favoráveis.

Na Comissão de Educação o parecer da vereadora foi aprovado, o que levou o projeto de lei a tramitar com um substitutivo. “Isso acendeu um alerta”, lembra. A reação foi “politizar” o assunto e continuar com as articulações. “A gente percebeu que a base [do prefeito] estava sensível”, conta. A politização veio com as audiências públicas e a mobilização de entidades em torno do projeto.

Dartora ouviu do proeminente advogado e filósofo, autor de inúmeros livros sobre racismo, Silvio Almeida, uma dica fundamental: “A gente tá indo pela conversa, mas isso é guerra”, Almeida teria dito a vereadora.

A mobilização, que contou até com entidades internacionais, deu resultado. Foi quando Dartora pressentiu algo que ia contra a avaliação de muita gente: a prefeitura iria fazer um concurso público. “Fui uma voz sozinha. Sabia que iria acontecer e se tivesse mais um concurso sem cotas, seria o fim da picada”, diz.

Pesou aí a provocação de Greca em dezembro do ano anterior. “O prefeito de uma cidade com célula neonazista, uma das mais desiguais do país. Pegou muito mal. Chamou a atenção do Brasil [para cá]”, avalia. Um ano depois de dizer que não há racismo estrutural em Curitiba, Greca sancionou o projeto de lei que reserva vagas para negros, pardos e indígenas em concursos municipais. O primeiro concurso já sob a lei deverá ter inscrições abertas em abril.

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