Mural de Poty ilustra parede de casa prestes a ser demolida

Poty Lazzarotto fez o mural 50 anos atrás para um casal de amigos e poucos tiveram chance de vê-lo. Agora, ele precisa ser protegido de uma demolição

Você deve ter visto fotografias e ouvido histórias sobre ela: a Curitiba de antes. É o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. As ruas não são como as de agora e as casas têm muros baixos. Os bairros são diferentes. Pense no Batel, ali onde nasce o rio Ivo, ainda com ruas de paralelepípedo. Numa quadra calma, na rua Olavo Bilac, há uma casa grande e aconchegante. Essa casa guarda um segredo de 50 anos.

Além de desfrutar da companhia dos anfitriões, dona Eunice da Paz e seu Gil Caldas, quem aparecia na casa podia presenciar a magia dos encontros e festas que aconteciam naquela época. Descendo as escadas, ficava o espaço onde a conversa se dava entre as diferentes cabeças pensantes e criativas da cidade. E não poderia ser diferente, os donos da casa eram amigos de gente importante.

Lá você podia encontrar artistas plásticos como Érico da Silva, Renée Bittencourt e Álvaro Borges. E até ser surpreendida pelo artista Poty em ação, traçando esboços diante de um público estupefato. Era comum que essas confraternizações acontecessem depois do trabalho, na “hora do aperitivo”, versão nacional da happy hour.

Uma parede estrutural, mais difícil de ser removida, serve de base para a pintura. (Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

Mural de Poty

Dona Eunice e seu Gil eram próximos de Napoleão Potyguara Lazzarotto (1924–1998), o Poty, talvez o muralista mais importante de sua geração, com painéis e obras no Brasil e no exterior. Para os amigos da rua Olavo Bilac, ele chegou a fazer um entalhe em madeira para a principal sala da casa. E, em 1972, ele fez também um mural que retrata lendas brasileiras como a do Boitatá e do Saci-Pererê.

O mural de Poty é o segredo da casa.

Trata-se de um painel de 3,6 metros x 2,4 metros pintado em uma das paredes no subsolo da construção. Uma parede estrutural, muito difícil de ser movida. A ideia pode ter sido súbita, mas a execução não foi. Tudo teve de ser preparado e orientado por Poty.

A reportagem visitou a casa onde fica o mural, dentro de um grupo que incluía uma restauradora, uma fotógrafa, um diretor de museu e dois profissionais da construtora Porto Camargo.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

Preservação

Dona Eunice vendeu o imóvel em 2010. A intenção era de que fosse inserida na escritura uma cláusula para documentar o compromisso assumido pelo novo proprietário de preservar o painel. Mas esse documento não chegou a ser feito. Contudo, o comprador à época deu sua palavra de que respeitaria a vontade de dona Eunice. E ele respeitou.

Porém, o imóvel trocou de mãos mais uma vez. Agora, ele pertence à Construtora Porto Camargo, que fez a compra “de porteira fechada”, como se diz no meio imobiliário. Isso significa que a construtora estava interessada no terreno e não na casa (já destruída parcialmente, pelo tempo e por invasores). O plano é construir um prédio de cinco andares. Mas, para começar as obras, é preciso derrubar o teto e as paredes que ainda restam na casa. E uma dessas paredes é assinada por Poty.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

Cifras

O mural de Poty na rua Olavo Bilac vale R$ 110 mil, segundo estimativa feita a pedido do Plural por Liliana Cabral, autoridade em acervos de artistas paranaenses. O valor seria maior se o mural não estivesse no lugar em que está.

Além de desvalorizar o painel, a remoção e o transporte custariam, com certeza, muito mais do que a obra em si. (Se os desenhos foram retocados ao longo dos anos por outras pessoas sem a autorização de Poty, como suspeitam alguns acadêmicos, a obra pode valer ainda menos.)

Sem contar o fato de que mover o painel é um trabalho bastante arriscado. Há sinais de que a parede funciona como um muro de arrimo, apoiada em um trecho de terra maciça. Mesmo tomando os cuidados necessários, ela pode quebrar ou trincar na remoção.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

A lei

Entretanto, o proprietário tem o dever de zelar o máximo pela integridade da obra, segundo a Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (também chamada de Lei dos Direitos Autorais). É o que explica o advogado Luiz Gustavo Vidal Pinto (ou Vidal, que é diretor do Museu Alfredo Andersen), apesar de ressaltar as várias nuances e interpretações dessa Lei.

Você pode comprar um quadro, mas não pode – no limite – atear fogo nele. A única pessoa que pode fazer isso – queimar um quadro – é o autor da obra. Nos termos da lei, diz o Art. 37: “A aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor”. Adquirente, no caso, é quem compra o trabalho do artista. “E muito menos os direitos morais sobre a obra, que são intransferíveis”, diz Vidal. “Esses direitos continuam sendo do autor da obra – ou de seus herdeiros.”

No caso do mural feito por Poty em 1972 – pintado em uma parede estrutural de uma casa que deve ser demolida –, a situação fica um pouco mais complicada.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

Cuidados

Os especialistas ouvidos pela reportagem sugerem, primeiro, a “documentação registral” da obra com fotografias e também por meio de um grande decalque in loco. No processo de decalque, a restauradora usa lápis e papel-manteiga para extrair todos os detalhes da pintura – inclusive os sulcos existentes na parede –, de modo que ela possa ser reproduzida depois.

Em seguida, para seguir com os planos de demolição da casa e construção do prédio, a construtora teria de tentar ao máximo proteger o mural, possivelmente com uma estrutura de aço capaz de sustentar a parede mesmo quando todo o resto da casa vier abaixo. Esses cuidados também devem ser registrados em fotos e vídeos, para demonstrar que não existe falta de cuidado (“desídia”, no jargão jurídico) na proteção da obra.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

Ministério Público

Na hipótese do mural ser parcial ou totalmente destruído, ainda existem alguns desdobramentos possíveis.

Independentemente do tombamento pelo patrimônio histórico e artístico (que não existe no caso desse mural), o Ministério Público (MP) pode, conforme instituído em sua lei orgânica, tomar providências e acompanhar todos os procedimentos adotados pela construtora. O mesmo pode ser realizado pelos herdeiros do artista.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

MON

O irmão de Poty, o cartorário João Lazzarotto, procurou cuidar do legado do artista por mais de duas décadas. Numa dessas coincidências da vida, durante a apuração da reportagem, o governo do estado anunciou que Lazzarotto havia doado cerca de 4,5 mil obras do artista ao Museu Oscar Niemeyer (MON).

A doação, que encerra os esforços do irmão para preservar o acervo, foi oficializada no último dia 29 de março, aniversário de Curitiba e também de Poty.

Sanções

Há outro fator importante. O judiciário não costuma dar conta de sutilezas como as do mundo das artes, seja por falta de peritos especializados ou de juízes com experiência na área. “Não basta interpretar a lei, é preciso entender minimamente de arte e mercado”, diz Vidal. Com frequência, as decisões de questões relativas a direitos autorais surpreendem com sanções amenas.

Na hipótese de um dono de obra de arte desrespeitar a lei de alguma forma, esse dono hipotético pode ser obrigado a pagar uma indenização ou a cumprir penas alternativas – como, por exemplo, doar materiais de desenho e pintura para instituições artísticas.

A família

O Plural entrou em contato com João Lazzarotto, irmão de Poty, perguntando se ele conhece o mural que faz parte do imóvel prestes a ser demolido no Batel. Por meio de sua secretária, via WhatsApp, ele disse não ter conhecimento dessa situação.

(Foto: Alessandra Moretti/Especial para o Plural)

A construtora

A reportagem entrou em contato também com a construtora Porto Camargo. Em nota, a empresa diz ter sido surpreendida pela existência do mural. “A Porto Camargo, curitibana como é, sabe da importância de Poty Lazzarotto na história e na cultura da nossa cidade e, por isso, temos buscado reunir informações sobre sua origem e autenticidade”, informou a empresa.

Colaboraram Alessandra Moretti, Rafaela Moura e Irinêo Baptista Netto.

Sobre o/a autor/a

18 comentários em “Mural de Poty ilustra parede de casa prestes a ser demolida”

  1. Construtora é empresa, e empresa não é gente. Cada um lava as mãos se dizendo responsável só por aquilo que faz a cada dia, e nunca pela m* global quando dá um resultado final desastroso. Não tenho a menor fé de que fariam algo para preservar e que a lei fosse sequer pensada. Na arte como no meio ambiente, ninguém pensa a não ser quando a perda é um desastre de proporções imensas.

    1. Luciana Nogueira Melo

      Olá, Rui. Não temos autorização para divulgar o endereço completo, mas você pode entrar em contato com a construtora e solicitar. Caso tenha outras dúvidas, fique à vontade para questionar nossa equipe.

  2. Parabéns pela iniciativa de preservar mais um belo patrimônio.
    Existem técnicas para salvar esta obra. Desejo que sejam utilizadas para que Curitiba possa guardar mais uma obra, tão interessante como esta do artista, Poty!

  3. Uma obra de Poty merece, sem duvidas ser preservada, se a construtora não assumir o trabalho não seria o caso do mesmo ser de competência da nossaPrefeitura ?

  4. Dinah Ribas Pinheiro

    Esta não é a primeira vez que uma obra de arte realizada em casas particulares de Curitiba corre o perigo de ser inutilizada. Há mais ou menos 20 anos atrás, um mural de Franco Giglio que estava numa residência curitibana, foi salvo pela Fundação Cultural de Curitiba, na época presidida por Carlos Frederico Marés. O mural, criado e montado na técnica de mosaico, foi retirado aos pedaços, identificados e numerados para ser remontado na parede frontal do Museu Municipal de Arte, no Portão. Um trabalho de cuidado e respeito com uma obra de arte. Penso que o mural de Poty pode apresentar mais dificuldades de aproveitamento que o mural do Franco Giglio mas haverá cabeças pensantes em Curitiba para tentar salvar aquele patrimônio.

  5. Jeferson Navolar

    O destino deste belo mural, de autoria do mais renomado artista curitibano, ainda pode ser a sua preservação. Existem técnica e mão de obra a disposição aqui mesmo em Curitiba. São vários os exemplos de salvamento nos últimos anos. Recentemente foi “salvo” um painel de pastilhas de vidro de autoria do reconhecido artista Franco Giglio. Este estava tbem numa residência, na mesma rua Olavo Bilac. Parabéns pela matéria.

  6. Parabéns pela iniciativa e pesquisa. Se não por decisões de publicações corajosas e robustas como essa, imaginem quanto mais não perderíamos no Brasil da nossa arte e história.

  7. Que assunto importante e bem tratado como sempre. Seria legal organizar un movimento e talvez uma manifestação em frente ao local pra pressionar pela conservação da obra.

  8. Bela matéria! Acredito que um movimento dos curitibanos em prol da preservação da obra seja de extrema importância para que esse assunto não esfrie. Quanto às penalidades, a mancha da imagem da construtora caso seja insensível com a conservação do mural seria definitivamente a pior delas. A obra de Poty deve permanecer em pé!

  9. Sandro de Castro

    A construtora deve ser sensibilizada sobre a importância de manter a preservação da obra onde ela está. Que um bom trabalho de preservação pode inclusive ajudar a valorizar o empreendimento projetado por eles.

  10. Ilka Almeida Passos

    Parabenizo a equipe pela matéria tão elucidativa a respeito de obra desconhecida do grande Potty. Lamentável que só o risco iminente de destruição tenha tornado pública sua existência. Oxalá a construtora por seus representantes se conscientize e tome de fato todas as providências possíveis para a preservação do mural.

  11. Suely Deschermayer

    A iniciativa do Plural em levantar a questão da preservação do painel do Poty, vem contribuir para a memória cultural de Curitiba e relevar a importância que se deve dar as obras e aos artistas que marcam a nossa história. Parabéns ao Plural e toda equipe!!!!!

  12. Alessandra Moretti

    O trabalho de peritos deve elucidar se a obra passou ou não por restauro, ao longo do tempo. Quanto a se tratar de um Poty autêntico, tudo corrobora para que isto se confirme: do eloquente traço do artista, ao incontestável depoimento daqueles que viram a gênese do mural, testemunhas oculares e privilegiadas de sua legitimidade.
    O valor artístico, cultural e histórico de uma obra de Poty, sobretudo numa técnica tão rara no escopo de sua produção, é algo que não se pode estimar em termos pecuniários.
    Foi um prazer contribuir e parabenizo a equipe do Plural pela competente matéria.

  13. Leonardo Matuchaki

    Eu, Leonardo Matuchaki, e Ana Caniatti fizemos uma pesquisa bastante significativa sobre esse mural, em 2018, há pedido da empresa que nessa casa funcionava.

  14. Rodrigo Wolff Apolloni

    Matéria importante. Fiquei pensando, aqui, nas técnicas arqueológicas de remoção de mosaicos. Dão um trabalho miserável, mas protegem e resguardam o patrimônio. Fora esse devaneio, é bom trazer o fato à luz – no Brasil maluco atual, é muito fácil “queimar tudo” e jogar as cinzas para baixo do tapete.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima