Há duas semanas, o Plural revelou que um mural do artista Poty Lazzarotto faz parte de uma casa prestes a ser demolida no bairro do Batel, em Curitiba. Especialistas ouvidos pela reportagem observaram que o painel de 3,6 metros por 2,4 metros havia sido retocado. E era preciso saber detalhes a respeito da restauração para avaliar a integridade da obra. No entanto, a autenticidade do painel não estava em questão: trata-se de uma obra feita por Poty (1924–1998).
Após a publicação da matéria no dia 20 de abril, profissionais responsáveis pelo restauro entraram em contato com o Plural. Para começar, o mural tem um nome: “Lendas brasileiras”.
Ele fica numa parede estrutural da casa que pertencia à dona Eunice da Paz. Para alguém que nasceu em 1972, o mural exibe um viço invejável. O tempo teria sido estranhamente generoso ao manter quase intactas as cores e os contrastes da pintura, feita no subsolo da construção. O espaço onde ficam as “Lendas Brasileiras” sempre esteve sujeito aos usos cotidianos de uma casa, que abrigou primeiro uma família e depois uma empresa.
Amadeu Colombo Cavalcanti tinha comprado o imóvel de Dona Eunice e o transformou na sede do Grupo Jufap, que atua nos segmentos de telecomunicações, produtos asfálticos e agropecuária. A empresa possui até uma usina solar, de acordo com informações de seu site oficial. Assim, o ambiente onde estava o painel de Poty passou a ser utilizado para treinamentos e reuniões. Com isso, ganhava “novos traços” assinados por esbarrões da mobília e limpezas bem intencionadas (mas nem sempre bem orientadas).
A restauração
Foi o Grupo Jufap que contratou, para avaliar o estado e recuperar o mural, em 2017, a Caniatti Conservação e Restauro. O ateliê tem um portfólio de respeito, com restaurações em pinturas de Miguel Bakun, um dos pioneiros da arte moderna no Paraná; em telas de Guido Viaro, artista ítalo-brasileiro; e em murais e estuques da Igreja Matriz de Nossa Senhora Imaculada Conceição em Videira, Santa Catarina, assinados pelo pintor imigrante italiano Gildo Scaranari.
Após o mapeamento dos danos existentes, as profissionais Carolina Burigo de Mendonça e Ana Eliza Caniatti Rodrigues (que faz parte da Arco.it, a Associação de Restauradores e Conservadores de Bens Culturais) iniciaram a restauração propriamente dita. “Os danos se localizavam nas extremidades da pintura, onde era possível visualizar a perda da camada pictórica em pequenas áreas”, diz Rodrigues. Era onde o mural estava mais danificado: na base azul, e não nos desenhos em branco. “No restante, a obra apresentava pequenas manchas amarelecidas quem eram superficiais e puderam ser removidas com a higienização química da obra.”
Onde existia perda da camada de tinta, as restauradoras fizeram a proteção das bordas e o nivelamento e reintegração da cor com pigmentos minerais em resina. Todo o processo se deu conforme técnicas e produtos consagrados no segmento de restauração, com intervenções mínimas e, importante, todas elas reversíveis. “Esses produtos podem ser removidos sem que a obra sofra danos, isto é, o restauro não prejudica a integridade da obra”, diz Rodrigues. Tudo foi documentado e fotografado para compor o relatório técnico do processo, que ainda apresentou instruções para a preservação futura da obra.
Integridade da obra
Segundo o advogado Luiz Gustavo Vidal Pinto (ou Vidal, diretor do Museu Alfredo Andersen), a integridade da obra é respeitada quando se busca um restaurador competente e profissional. “Ninguém faz restauração para modificar a obra. Ao contrário, faz-se a restauração para buscar que ela [obra] volte ao seu estado original”, diz. Questionado sobre a interferência de um restauro nos direitos autorais, Vidal explica: “Não é preciso chamar a cada restauração o detentor do direito para dizer ‘sua obra está sendo restaurada’. Você pode chamar por uma questão ética.”
Estudo posterior
A autenticidade da obra nunca foi questionada por Rodrigues. “Não houve motivos para afirmar que a obra não tenha sido realizada pelo artista Poty Lazzarotto”, diz. Além disso, após a restauração, ela e o historiador Leonardo Matuchaki foram contratados pela Jufap para desenvolver um estudo sobre o mural, que envolveu pesquisas e entrevistas.
Agora, o mural “Lendas brasileiras” tem um futuro incerto porque o terreno onde está a casa é propriedade da construtora Porto Camargo e servirá de base para um prédio. A remoção da parede é uma possibilidade, mas trata-se de um procedimento caro e arriscado.