Camila Fabro vence tragédia de sofrer AVC aos 34 anos com livro “Desmiolada”

Textos publicados pela colunista do Plural falam dos desafios e dos sentimentos vividos por uma AVCista

O primeiro livro de Camila Fabro, “Desmiolada”, chega ao prelo e logo estará nas mãos dos leitores. Poderia se tratar apenas da realização de um sonho, comum a outros formados em Letras, mas se trata de muito mais. Os textos são parte do caminho traçado para ressignificar uma tragédia, um acidente vascular cerebral (AVC) que ela sofreu aos 34 anos. Na verdade, um não, foram três seguidos.

Foi então que escrita surgiu, como ferramenta para superar os sintomas da deficiência adquirida, e promoveu a descoberta de sentimentos compartilhados com outros que já passaram por AVCs. O encontro com esses sobreviventes mudou tudo. Segundo a escritora, seu corpo foi salvo pelos médicos, contudo, quem salvou sua alma foram os outros sobreviventes.

Quando se vê diante do questionamento sobre a ideia para a publicação, Fabro diz que seu primeiro livro nasceu com sua morte. É uma afirmação forte de se ler, entretanto fica mais leve com a sinceridade impressa nos textos pela autora. Foi essa voz que ampliou o grupo de interessados por sua produção, no qual atualmente se incluem leitores que foram vítimas de outras tragédias. A identificação, aos olhos dela, se deve porque o sofrimento não respeita um calendário para ser superado, falta acolhimento e sobram críticas.

“Desmiolada” é como a autora, que também é colunista do Plural, se intitula nas diferentes plataformas onde escreve. O termo surgiu quando tomou conhecimento do que havia acontecido em seu cérebro, se autorreconheceu assim ao quase se “enterrar viva”. Agora, o adjetivo marca o nascimento de um novo capítulo nessa história de superação com o livro “Desmiolada” – em pré-venda pela Kotter Editorial. Fabro, em entrevista feita por e-mail ao Plural, conta um pouco de sua trajetória e fala sobre o seu primeiro livro.

De onde veio a ideia para escrever “Desmiolada”?
Sempre tive o sonho de escrever um livro. Acho que a maioria dos formados em Letras anseiam por isso, mas confesso que o “Desmiolada”, meu primeiro livro, nasceu com a minha morte. Ele começou a ser estruturando no início da minha reabilitação cognitiva após os AVCs. Naquela época, a minha memória era muito falha, então a minha terapeuta me incentivou a escrever o que estava sentindo. Foi nas redes sociais que minha escrita teve o primeiro impulso, tanto pelas pessoas em geral como pelos sobreviventes de AVC, que estavam sentindo o mesmo que eu. Com o tempo, minha escrita foi se aprimorando e no meu primeiro “aniversário de AVC” eu montei o blog “Desmiolada”. Logo veio o canal no Facebook e o Instagram. Depois o conteúdo do blog foi migrado para a coluna Desmiolada, no Plural.

O livro é uma coletânea?
Tudo começou no ano de 2020, em 29 de outubro: o dia mundial de combate ao AVC. Esse dia é muito importante para nós, sobreviventes, porque é nele que temos a chance de falar para o mundo sobre o AVC e lutarmos por mais respeito e qualidade de vida. Só que, geralmente, a imprensa não dá muita atenção. Então, nas semanas anteriores, liguei para todos os jornais e mídias que consegui pedindo uma reportagem sobre o assunto, um deles foi o Plural. Lembro-me de que o jornal me retornou admitindo que conhecia pouco sobre o assunto e eu respondi que eu sabia muito sobre o “universo do AVC” e mandei o link do meu blog. O chefe de redação me ligou e pediu para publicar os meus textos no jornal, no ano seguinte fui convidada a participar do periódico como colunista. A responsabilidade fez com que eu escrevesse mais e com que mais sobreviventes entrassem em contato comigo, me proporcionando mais conteúdo. Os textos mais acessados no meu primeiro ano como colunista estão no livro.

São textos com o seu depoimento? Você escreve sobre suas experiências?
São textos de opinião escritos em primeira pessoa, porque todo o meu envolvimento com o AVC partiu de uma experiência pessoal, que está se estendendo de acordo com a minha reabilitação e aprendizado. Acredito que escrever em primeira pessoa também facilita a empatia do leitor com nosso dia a dia marginalizado: um dos meus principais propósitos. Porém, às vezes, deixo minha criatividade fluir e mudo o meu estilo, como no texto “O Fantasma do Sótão”, que tem um tom de fábula e “Reações Adversas” que parece uma bula de remédio.

Para quem você indicaria o livro “Desmiolada”?
Obviamente, o público-alvo são os sobreviventes de AVC, seus amigos e familiares, justamente porque aborda as sensações de sofrer uma lesão cerebral. É o ponto de vista de uma paciente e, exatamente por isso, é mais sensível do que a informação técnica. Porém, a obra transcende esse nicho e contempla todos que sofrem uma tragédia e precisam ressignificar aquela situação. Percebi isso quando leitores do Plural começaram a entrar em contato relatando terem se identificado com algum texto, mesmo não tendo passado por um AVC. Um caso em especial foi o de um pai de uma criança autista, que se identificou com a minha solidão após o acidente – ele sentiu algo próximo após o diagnóstico da filha. Também houve uma senhora que sofria muito com o falecimento do esposo e sentia que o seu longo luto não era respeitado pelos demais, pois já tinha “passado da hora” de seguir adiante. Não é assim que os sentimentos funcionam, eles não se encaixam em um calendário, precisam ser compreendidos e ressignificados. Tudo isso leva tempo e a pessoa precisa ser acolhida ao invés de criticada. Passar por um AVC, sem dúvida, é uma tragédia, mas infelizmente ela não é a única e todas as dores merecem ser cuidadas.

O que fez a diferença na sua recuperação?
Costumo dizer que o médico salvou o meu corpo, mas que a minha alma foi salva pelos outros sobreviventes, pois foram nos grupos de apoio que reestruturei a minha vontade de viver. Foi conhecendo pessoas tão incríveis que me vi sendo incrível também, a ponto de voltar a andar, me vestir sozinha e reconquistar a minha autonomia. Me sinto honrada quando algum AVCista – a gente se chama assim – se identifica com minhas palavras. Nos grupos, recebi tanto amor e cuidado que me senti suficientemente fortalecida para voltar a me cuidar. Foi o presente mais lindo que recebi na vida.

Por que o título do livro é “Desmiolada”?
Foi assim que eu me chamei quando vi a tomografia pós-acidente, com uma parte do meu cérebro destruído. Na hora não foi um pensamento de deboche, mas de muita dor. Acreditei que se a vida estava difícil com o cérebro inteiro, imagine sem parte dele. Antes do AVC estava muito focada na construção de uma carreira e pensei que esse sonho tinha se tornado impossível para uma pessoa com deficiência adquirida e ainda por cima, literalmente, desmiolada. Foi uma época muito difícil, me subestimei e abri espaço para as pessoas me inferiorizarem também. Com as publicações, percebi que, apesar de machucado, meu cérebro ainda poderia realizar muita coisa, então resolvi nomear o blog e o canal com o mesmo adjetivo que utilizei para me “enterrar viva”, mas ressignificado.  Mesmo desmiolada eu ainda posso fazer muito!

“Desmiolada”, livro de Camila Fabro

Kotter Editorial, 152 páginas. No site da editora, o livro está em pré-venda com 50% de desconto (R$ 29,85).

Assista ao episódio da série “Pelos meus olhos”, produzida pelo Plural, com o depoimento de Camila Fabro no canal do jornal, no YouTube.

Atualizado em 20 de dezembro de 2022.

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