“micélio”

“o vô parece a nossa tv quando volta a luz depois de uma tempestade. fica indo e vindo. indo e vindo. indo e vindo”

quando entrei no quarto do vô veio um cheiro ruim de. não sei. um cheiro ruim de coisa morta. de coisa morrendo. dos negócios que a minha tia irmã da minha mãe deixa na janela fermentando. o que é fermentando? a cortina fechada. a janela também. porque será? penso. que lugar claustrofóbico. o que é claustrofóbico? não tem como uma pessoa viver aqui. a porta que dá pro outro quarto está meio aberta e o barulho do rádio mal sintonizado incomoda pra caralho com uns chiados estridentes que parecem uma nuvem de gafanhotos. a vó mãe do meu pai deixa o rádio ligado o dia inteiro numa rádio de deus que ela adora com um copo de água na frente pra receber as orações do pastor três vezes por dia. tem uma bíblia em cima do copo que fica aberta sempre na página que o pastor manda. às oito da manhã tem a primeira missa e aí acontece a benção da água e ela bebe tudo e depois enche o copo de novo. depois de tarde tem também e aí de noite antes de dormir. ela sempre diz o corpo e a alma ficam fortes por causa dessa água abençoada. olha o teu vô! ela aponta pra cama no quarto ao lado. nunca foi na igreja comigo. não bebe. não fuma. sempre trabalhou direito e ó como ele tá. deus que me perdoe sofrer desse jeito. ela diz fazendo o sinal da cruz. se bebesse da minha água não ficava assim! HUMPF! bufa e se cala por um instante. parece que por um segundo alguma coisa falou com ela. seus olhos se fecham. ela respira fundo. aí diz tá na hora do remédio. ela resmunga e vai até a cozinha e começa a mexer nas coisas e abrir e fechar portas fazendo barulho pra chamar a atenção. volto pro quarto ao lado e meu vô pai do meu pai tá lá deitado com um monte de tubos saindo do seu corpo. todos os buracos tem um tubo. e ainda fizeram mais dois buracos pra pôr mais tubos. parece um polvo. ele é a melhor pessoa do mundo. o cara mais legal da terra. chego perto dele. pego sua mão. cadê o gorro que o vô te deu? ele pergunta. tá lavando. minto. quando você vem dormir de novo com o vô? a mãe disse que amanhã é sábado e que eu posso vir dormir com você. minto de novo. mas foi a mãe que mentiu pra mim e eu só passei a mentira adiante. mentimos juntos. somos uma família de mentirosos. tudo bem. ele diz quase apagando. o vô parece a nossa tv quando volta a luz depois de uma tempestade. fica indo e vindo. indo e vindo. indo e vindo. acompanho ele navegando mais um pouco. o senhor tem câncer. diz o médico. e já está em estágio avançado. de repente o vô pai do meu pai começou a ter dificuldades pra mijar. sentia uma dorzinha quando o xixi saía e não deu bola. aí começou a doer mais. e depois a doer pra caralho. aí acharam que era pedra no rim e ele foi no médico. fez um exame dois exames três quatro e. já tomou a bexiga e está no rim rumo ao fígado. a vó mãe do meu pai nem se mexeu na cadeira. até os pássaros e as árvores pararam por um tempo. pararam porque havia muito amor e respeito entre eles. os bem te vis sempre vinham até a janela do vô contar alguma coisa pra ele. são os mais fofoqueiros. ele dizia. devem ter duas línguas. e ria muito. as árvores já são diferentes. falam só o suficiente. sempre que você tiver uma dúvida encoste numa árvore bem alta e faça uma pergunta pra ela. as mais altas e grossas são as mais velhas. sabem tudo essas danadas. e me punha no colo perto da janela e apontava pra todas as coisas e dava nome a elas e me ensinava porque as coisas existem e qual o papel de cada uma delas no mundo. ele tinha um carinho especial com os pássaros. o nome do teu pai foi um bem te vi que deu. a gente não morava nessa casa. a gente morava num bairro lá longe e teus tios tinham saído pra brincar e a tua vó tava com a barriga explodindo pronta pra parir aí eu subi no quarto pra pegar umas coisas e um bem te vi muito bonito parou na janela e cantou pra mim é o levi! é o levi! é o levi! e era o teu pai que tava vindo. na mesma hora a bolsa da sua vó rompeu e fomos pro hospital porque ela não queria fazer o parto em casa. ela disse que o pastor falou que o nome dele ia ser moisés e eu falei tudo bem. fui lá registrar e pus levi. hehe! foi o único nome que eu quis de fato. o resto é da tua vó e do pastor. mas não foram os pássaros e as árvores que pararam. foi o vento. o vô olhou pela janela e percebeu que os cabelos das pessoas não estavam mais se mexendo e que ficou muito quente de repente. então ele abriu a janela e o vento pediu que ele tocasse a terra. ele encostou a mão na terra e um micélio veio e se enrolou em seus dedos e disse pra ele não se preocupar que tá tudo bem. ele se acalmou coçou a testa e disse humm. sentou de novo na cadeira do consultório e o que eu devo fazer doutor? perguntou ao médico já sabendo a resposta. ali ele já tava pensando em como anunciar isso pra toda a família. o vô nunca foi de ir ao médico. ele gostava mesmo era da terra e dos bichos. sempre cagou pra medicina ocidental e cultivava um monte de coisas em todos os cantos da casa. ele sempre tinha uma dica de como fazer as coisas crescerem melhor. aí veio uma dor horrível pra mijar e a vó encheu tanto o saco dele que ele foi no médico. câncer. ele ficou estarrecido por um milésimo de segundo. depois passou. foi pra casa. reuniu todo mundo ao redor de uma fogueira como ele gostava de fazer quando queria contar uma história e tenho câncer. vou morrer em breve. levantou e foi pra dentro de casa. ficou todo mundo com os olhos arregalados. eles só tiveram filhos homens e essa coisa de homem não chorar naquela época fez com que todos ficassem apenas de olhos arregalados. o pai que é o mais sentimental e romântico de todos engoliu uma pedra e levantou correndo e foi lá pra dentro falar com o pai dele e o vô estava bem de boa vendo o noticiário da tv. teu time não ganha uma! hahaha! disse oferecendo uma xícara de chá pro meu pai. o pai ficou quieto. a vó entrou logo atrás. oito horas. vou beber minha água. por causa dela não fico doente. humpf! já teu pai… ela disse virando o rosto e sumindo lá pra dentro. dava pra ouvir o pastor aos berros abençoando a água da vó. o pai foi lá pra fora se despedir dos irmãos e aí fomos pra casa. o vô morreu em um ano. depois do enterro o pai foi dar uma volta pelo jardim do pai dele porque o vô não deixava ninguém entrar lá e encontrou no meio de uns pés de tomate alguns cogumelos. o pai riu. colocou um na boca e. melhor não. deixa pra lá. jogou na terra de novo. não comeu e nunca contou pra ninguém. e nem tinha o que contar porque uma semana depois a vó foi morar num outro bairro e a casa que era alugada foi abaixo. veio uma construtora que quebrou tudo e fez um prédio. aqui é assim. disse meu pai olhando um trator entrar no terreno. se não vira igreja vira estacionamento ou prédio. virou prédio. uma vez o vô me contou uma história sobre um tecido mágico que recobre a terra inteira e que vez ou outra sai com seu periscópio à procura de amigos. ele disse que se um dia eu topasse com um que guardasse ele com carinho porque a nossa vida depende dele. no final o desejo do vô de ser cremado e enterrado em seu jardim não foi respeitado pela vó e hoje o que restou dele / e dela também / está no jazigo 33 do cemitério.

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