Homens que colecionam mulheres: o risco de se relacionar com um perverso

Eles estão em toda parte - da política aos sitcoms - e geralmente passam impunes. As vítimas é que sofrem

Quem cresce numa sociedade estruturada em bases machistas mal se dá conta de que o comportamento do piadista Barney Stinson, de How I Met Your Mother, é bastante nocivo. Ao longo da série, o personagem se envolve com mais de duas mil mulheres e se gaba dos relacionamentos que mantêm em paralelo. Sua preferência, diz, é pelas bêbadas e vulneráveis. 

A objetificação é tamanha que, em certo episódio, Barney chega a dizer que trocou uma mulher por um carro

Na vida real, histórias similares também suscitam piadas. Como quando, no ano passado, a internet caiu nas graças do “Bacurau 11”. Mas para as vítimas, o caso do jornalista Leandro Beguoci, que mantinha pelo menos sete relacionamentos, não é motivo de risos.

É o que afirma uma de suas ex, a jornalista Lívia Vasconcelos, que falou publicamente sobre o assunto, na época.

“A grande questão é que as pessoas transformaram isso numa piada, e isso nunca foi uma piada. (…) Eu sempre tive um quadro de ansiedade, mas com tudo o que aconteceu, deu uma agravada. Eu procurei um psiquiatra e comecei a ser medicada. Tive medo de sair de casa, de trabalhar, pra eu andar na rua era um sufoco, era horrível. (…) Comecei a receber mensagens de pessoas que me xingavam, falavam que eu era uma vagabunda, uma piranha e estava fazendo isso de propósito.”

O caso foi parar na justiça, mas não porque a vítima quis assim. Beguoci entrou com uma queixa-crime, alegando difamação e exposição de sua vida privada. O Plural teve acesso à decisão do juiz Luiz Guilherme Angeli Feichtenberger, que rejeitou o processo. Ele destacou que o jornalista enganou várias mulheres – não havia comum acordo – e chegou a confessar o fato. Portanto, não se trata de poliamorismo nem difamação.

Além disso, Leandro era casado. E o artigo 1.566 do Código Civil diz que a fidelidade recíproca, a mútua assistência e o respeito são deveres dentro do matrimônio. “Com esse raciocínio, não há intimidade a ser protegida àquele que, de má-fé, ludibriou diversas mulheres. O direito não protege quem age de má-fé.”

O juiz ainda deixou a reflexão: “Questiono-me: numa sociedade, ainda – infelizmente -, essencialmente machista, qual dignidade ou decoro do autor foi ofendido? Ou qual reputação foi ofendida? Tristemente, a sociedade não vê isso como fato ofensivo, tanto é verdade que o autor não teve, durante os múltiplos relacionamentos clandestinos, qualquer espúrio em sua manutenção”.

Sob o olhar da psicanálise

De acordo com o psicanalista Willian Mac-Cormick Maron, o ato de manter várias relações abusivas em paralelo pode ser visto como uma tendência perversa. E o ônus às vítimas costuma ser tão grande que algumas consideram o suicídio, após serem maltratadas pela sociedade machista.

É importante ressaltar que o profissional não se propõe a analisar casos isolados, que precisam ser avaliados individualmente em terapia.  Discute-se, aqui, o perfil comportamental. Acompanhe a conversa.

Plural: Quem é o perverso?

Maron: Na psicanálise nós temos três estruturas psíquicas: a neurose, a psicose e a perversão. A neurose é vista como mais comum ou ordinária. A maioria de nós seríamos neuróticos, já que entendemos a lei, sentimos culpa, remorso, empatia etc. Temos os psicóticos, que têm uma estruturação diferente em relação à realidade, então são vistos como os esquizofrênicos e os loucos. E, por fim, vêm os perversos. Não é uma patologia. É uma forma de funcionamento desse ser humano que desemboca em outros desdobramentos, como a psicopatia e a sociopatia. Isso coloca esse sujeito em uma relação precarizada com a lei. Ele entende a lei, sabe que existe, mas se vê acima, usa dela, goza. Todos estamos sob a lei, mas ele se sente superior. Falo de lei não como uma lei jurídica, mas de ordenação social. 

Plural: Por que ele é frequentemente abusivo? 

Maron: O assédio, seja ele moral verbal, virtual, psicológico ou sexual, é a tentativa da manutenção uma relação de dominação e obtenção do poder sobre outro humano. Assediar também é uma forma de se valer de seu poder (seja ele qual for), buscando a dominação do outro sobre forma sistemática de controle, violências verbais ou psicológicas, humilhação, constrangimento, depreciação, uso da força física e perseguição. Visando assim obter algum tipo de vantagem e atentando contra a dignidade do outro. É uma relação de poder perversa e mal empregada.

Plural: Como o perverso consegue fazer tantas vítimas em relações amorosas?

Maron: Eles são personagens dotados de um poder de sedução, em geral articulados e inteligentes e, por tal, muitos se vêem facilmente envolvidos. Muitas vítimas tornam-se facilmente seduzidas e sugestionadas pelo discurso perverso, pois encontram uma promessa de amor ideal, de acesso a um gozo direto, irrestrito, total, que faz parte de um jogo manipulatório e mentiras sistemáticas bem contadas. 

Plural: Por trás desses casos há também o machismo estrutural, concorda?

Maron: Sim, se faz importante pensar e lembrar que ainda estamos dentro de um machismo estrutural incrustado na sociedade que se mantém vivo e repassado pela cultura em forma de desigualdades, repressões, piadas, atitudes depreciativa e até atos mais diretos e menos sutis de violência como atentados contra o corpo, liberdade e dignidade do outro. 

Plural: Por que a sociedade naturaliza esse comportamento?

Maron: Sobre o homem está depositado um modelo de uma moral de dominação social que se transfere do modelo biológico (natural) para a cultura (negação impossível da natureza). No processo civilizatório haveria uma perda do poder viril de uma natureza em troca da cultura, e nesse trajeto busca-se recuperar esse poder, que é facilmente ameaçado pelo desejo feminino, retornando à ideia da naturalização do desejo masculino que não se sustenta mais em uma civilização que pensamos como “avançada”. Essa ideia primitiva vive na esperança da promessa de um gozo total e irrestrito. É a história do machismo. Precisamos parar de naturalizar o desejo masculino, a força física e seu ímpeto de dominação como sempre foi, como algo tido como banal ou esperado pois “homens são assim mesmo”. 

Plural: Do ponto de vista psicológico, o machismo é nocivo? 

Maron: O machismo, repito, é uma fantasia identitária frágil e perversa de dominação masculina. Facilmente abalada e igualmente repressiva. A fantasia do macho não está à altura do desejo feminino. O desejo feminino sempre foi a principal ameaça à fantasia de dominação do machista. Por isso, o grande objetivo do machismo é aniquilar e mortificar (por palavras, atos, rótulos) o desejo feminino para que sua fantasia continue imperando. A fragilidade dessa identidade viril pode buscar compensações no uso força física, no domínio das relações, na violência das palavras e de atos empregados aos que têm desejos diferentes dos deles (no caso gays), no assédio e no “Don Juanismo”, ou seja, em obter uma lista extensa de amantes e parceiras.

Plural: É possível identificar um perverso para se proteger de um abuso?

Maron: Eles são bons mentirosos, articulados e inteligentes. Muitas vezes utilizam de uma oratória, uma retórica, bem articuladas – e mentem. É muito complicado conseguir prever isso. Às vezes a gente passa por perversos na nossa vida e só entende que são perversos quando nos tornamos vítimas deles ou testemunhas de casos, porque alguns gostam de exibir seus gozos. É complicado ter uma receita para prever, a questão é que são tão sedutores que por mais que deem dicas ou mostrem algumas falhas ou pistas, eles conseguem reverter a situação.

Plural: Quais são as consequências de se relacionar com um perverso?

Maron: Muitas vítimas se vêem, a partir desses relacionamentos abusivos, com uma visão de si mesmas e das relações extremamente deteriorada e descrente. Muitas desenvolvem quadros ansiosos, depressivos e de pânico, mostram isolamento e medos que as afastam de uma vida esperada. Algumas apresentam ideações suicidas, pois não encontram lugar de fala na família, sociedade de nas leis. 

Plural: Como a sociedade trata essas vítimas?

Maron: A gente precisa cuidar de quem passa por vítima disso e dar um apoio. Um lugar de fala, sem julgamento. Há sempre muito julgamento: foi trouxa, foi enganada, deixou, quis, enfim. Muitas mulheres se sentem inibidas de falar sobre isso por vergonha ou por culpa. Isso mostra, bem claramente, que a sociedade está invertendo alguns valores, não? Doente está a sociedade na qual quem adoece, sente-se culpada porque adoece. Violenta é a sociedade na qual quem é violentada, sente-se culpada por tal, minimizada. A minimização da história e a culpabilização da vítima são os principais sintomas sociais que reforçam e cristalizam a fantasia de dominação masculina e a ameaça pelo desejo feminino.

Plural: Caso a vítima identifique um padrão de comportamento perverso no parceiro, como agir?

Maron: Quando se trata do perverso, é complicado tomar qualquer tipo de ação que não se afastar. A maioria nem vem pra análise, porque não se vê como um problema, acha que está acima disso. Para a vítima, é importante buscar lugares de fala e apoio, além de procurar a ajuda de um profissional da área: um psicólogo ou psicanalista.

Plural: E como os perversos agem quando são descobertos?

Maron: Quando são descobertos, são incapazes de culpa, remorso ou qualquer sentimento em relação à vítima.

Plural: Por serem tão sedutores, é comum ver perversos em cargos de poder?

Maron: As pessoas que têm esses traços, essas características perversas, são muito sedutoras, mas também muito seduzidas ao poder. Os vemos muito na política, direito e outros segmentos de grande visibilidade. Porque há um extremo gozo, uma satisfação de usufruir desse poder e ter poder sobre outros. A grande questão do perverso é que ele reduz o outro a objeto de satisfação, que é descartável quando já não é mais útil, e sem culpa ou remorso. Ele não está muito preocupado se o outro vai sofrer ou chorar. Por isso as mentiras e essa relação de laço utilitarista. Então, esses traços podem aparecer tanto na vida particular quanto na vida pública, mas com formas diferentes. Por exemplo: alguém que goza de ter um cargo de poder, mas utiliza das mulheres para ter um tipo diferente de gozo. Um é mais visto do que o outro.

Plural: Todos os perversos são criminosos?

Maron: As pessoas taxam psicopatas, sociopatas ou perversos como criminosos. Mas tem vários deles que passam a vida ser cometer crimes, mas usam o outro, tripudiam do outro, riem, zombam sem remorso. Não cometem crimes apenas do ponto de vista legal.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Homens que colecionam mulheres: o risco de se relacionar com um perverso”

  1. Tenho uma sugestão para a Jess (observando os temas dos seus artigos*):

    já te ocorreu falar/discutir sobre relacionamentos abusivos entre pessoas do mesmo sexo?

    Discute-se mais (e, estatisticamente, com razão!) sobre os relacionamentos heteronormativos — principalmente em relação aos abusos de homens, praticados contra mulheres.

    Mas acredito que o abuso em relacionamentos homoafetivos ainda precisa ser muuuuito verbalizado e debatido — e não só entre homens, mas também entre mulheres! (uma vez até passei por um silenciamento em uma página do Instagram, quando tentei sugerir este tema em uma página sobre “amores” abusivos)

    *Gosto muito dos seus textos, e acredito que você seria a pessoa mais que adequada pra escrever sobre esse tema.

  2. Muito boa matéria e esclarecedora!
    Pensando bem, essas pessoas são mais infelizes que suas vítimas, se elas conseguissem olhar para dentro de si e perceber o mal que exalam, transcendem e transbordam, mascarados, de bom vivãm, simplesmente não se suportariam, teriam repugnância de si próprios, mas infelizmente, a perversidade é tamanha, que os cega, à sua triste realidade!
    Eesses seres desumanos, estão em toda parte do mundo, o prazer deles, é desistimular, incapacitar emocionalmente é psicologicamente suas vítimas e, qdo já não lhes serve, procurar outra vítima para satisfazer seus egos diabólicos.
    Enfim, vigiemos e oremos para não cair nas garras desses perversos manipuladores!

  3. Adorei a máteria Jess! parabéns! é mais comum do que imaginamos, e a entrevista com o Maron foi bastante esclarecedora!
    conteúdo muito necessário, vou compartilhar e divulgar 😀
    um beijo

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