O presente de Clarice

No centenário de Clarice Lispector, um conto em homenagem à escritora

Nos últimos dez anos, visitei Clarice Lispector todas as terças-feiras. Na última terça em que estive com ela, ela já estava bastante doente. Lembro-me de que quando cheguei no quarto ela me fez a pergunta de sempre: — Trouxe algum texto novo para eu ler? – Não, ainda não tive tempo de escrever nada esta semana… E, como não tinha mais nada para lhe dizer e ela mal podia falar, prossegui imprudentemente: — Como você está?  – Nada bem… Respirou profundamente e continuou: — Tenho nesta caixinha um presente para você, disse Clarice estendendo a caixinha na minha direção. Agradeci o presente e abri a caixa. Dentro dela estava a menor mulher do mundo! Um ser estranho, meio bicho meio gente, bem como na foto do jornal que noticiara sua descoberta. Senti nojo, medo, mas tentei me controlar e agradeci novamente o presente balançando a cabeça. Logo em seguida uma enfermeira chegou e pediu que eu me retirasse. Sai segurando a caixa com a ponta dos dedos e despejei o dejeto na primeira lata de lixo que encontrei. Fui para casa perturbada e não tive sossego até voltar à lata de lixo para recolher aquele pequeno ser que eu tinha abandonado. Remexi na lata, mas não encontrei a mulherzinha. Perto da caixa, encontrei apenas a metade de uma salsicha de cachorro-quente.    

*O conto integra o livro Ascensão: contos dramáticos. Editora Cultura e Barbárie, 2016.

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