Cristovão Tezza escreve sobre o amor em tempos líquidos

#paratodosverem A imagem em preto e branco mostra o autor Cristovão Tezza.
“Beatriz e o poeta” usa como cenário a pandemia e o Brasil atual, e coloca a protagonista entre dois amores

No romance mais recente do escritor Cristovão Tezza, “Beatriz e o poeta”, a heroína de outros dois outros romances dele (“A tradutora” e “Um erro emocional”), está diante de um dilema pessoal: assumir o interesse por um crítico, que vive na Espanha (também já conhecido do leitor) e a quem conhece apenas virtualmente, cujo texto ela traduz, ou deixar-se levar por um flerte “real” com um jovem poeta da mesma cidade, Curitiba. O cenário é a pandemia e o governo atual. Tais facetas e nuances do amor não são novidade na obra do escritor (veja-se a Doroti – nome retirado de “O mágico de Oz” – de “Juliano Pavolini” e as elocubrações sobre o amor romântico do herói).

Colocada desse modo, a situação parece bastante simples e até adolescente. No entanto, há mais nas entrelinhas da escrita de Tezza do que se pode observar numa primeira olhada. Seria interessante observar primeiro a estrutura pensada para o romance e depois sua escrita e em como as muitas citações (principalmente autores da literatura) funcionam como um catalizador de sentidos. Tal estratégia (a da citação) já foi usada em romances anteriores, mas aqui ela ganha força e presença. Se lá em “Trapo” ele citava Faulkner, vamos ver como aqui essa estratégia funciona.

Investigador da literatura

Não perca de vista que há um Autor em busca de estratégias de escrita, um autor que vem da linguística, em particular de uma área da linguística preocupada com o “discurso”, há um narrador, que interfere para mais ou para menos no discurso das personagens, a depender do livro, e personagens, a maioria delas às voltas com modalidades distintas da linguagem: um escritor, uma tradutora, um poeta, um crítico, um fotógrafo, um datilógrafo, professores etc. Para o leitor que não é da área talvez isso não importe, verdade seja dita. Porém, para o investigador da literatura, esse cenário, esse universo, esse conjunto de discursos é fundamental.

Líquido

Há uma expressão usada repetidas vezes ao longo do romance (“líquido/a”) que remete ao sociólogo de origem polonesa Zygmunt Bauman, que tem grande parte da obra traduzida no Brasil e que se tornou coqueluche na maioria dos cursos universitários, em anos recentes, quer pela discussão que faz sobre a sociedade de consumo contemporânea, quer pelo discurso criticado por alguns como “divulgador” da sociologia ou da filosofia (não vai aqui nenhuma crítica: eu mesmo já usei muito Bauman em minhas aulas justamente porque seu pensamento é de interesse e acessível). Para o bem ou para o mal, Bauman discute situações bem caras ao universo contemporâneo – e ele, obviamente, não é o único. Tem seguidores, coetâneos e antecessores, similares ou não, para além das divisões entre direita e esquerda, e bem para além das bases teóricas envolvidas, como Byung-Chul Han.

A expressão utilizada no livro de Tezza pode, na obra de Bauman, referir-se ao tempo, à própria modernidade e ainda ao amor. Em vários livros, Bauman lança mão dessa ideia, a de um “mundo líquido”, expressão que, a despeito de ser usada hoje por vezes sem se entender o significado, ele a decalcou da famosa frase do Marx de “O manifesto comunista”: “Tudo que é sólido desmancha no ar”, expressão que foi nome de um livro famoso nos anos 1980, de autoria de Marshall Berman.

Para Bauman, em particular, não vivemos mais o mundo sólido que se podia desmanchar no ar. Vivemos (n)um mundo de “liquidez”, de certa fluidez que lembraria a água e não o sólido das estruturas investigadas por Marx, tampouco a rarefação apontada por ele, e tomada por uma série de autores posteriores, justamente como é o caso de Berman.

O homem sem qualidades

Em “Tempos líquidos”, por exemplo, ele comenta que, no mundo “desenvolvido”, “algumas mudanças de curso seminais e intimamente conectadas (…) criam um ambiente novo e (…) sem precedentes”, e em “Amores líquidos” ele cita a obra de Robert Musil, “O homem sem qualidades”, cujo protagonista é um sujeito sem “nítidas capacidades pessoais”, tendo de criá-las ele mesmo a partir de sua argúcia e habilidades, embora ele – Ulrich é seu nome – não pudesse garantir que “num mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, tivesse garantia alguma de êxito.

Lembre-se que o protagonista de Musil pertence a uma década de outros grandes romances que discutiram situações similares, fosse o tempo, fossem as relações humanas, fosse a arte e a própria estrutura do romance. Quem me acompanha aqui deve ter lido algum texto meu sobre os grandes romances da década de 1920 que tratam disso. Mas Bauman vai além: nós não vivemos mais a década de 1920 e seus zepelins, seus novos modelos de carros, seu cinema, o colonialismo selvagem ainda em curso e seu medo de outra guerra mundial, e sim vivemos (n)uma época em que a tecnologia nos atravessa, seja no discurso, seja nas práticas sociais, sendo que hoje as pessoas podem acabar um relacionamento enviando uma mensagem pelo Whats. Em paralelo, grande parte da humanidade toma medicamentos que “preveem uma felicidade”, parte da sociedade come muitas mais calorias do que necessita etc., utiliza a internet como campo de guerra e de divulgação de discursos de ódio… e fazia tempo não tínhamos tantos líderes mundiais abertamente ligados à direita radical, como é o caso do Brasil. Beatriz não vive apenas os resquícios do mundo de Ulrich, o herói de “O homem sem qualidades”, pois vive o desenrolar disso, com avatares, sites de relacionamento, aplicativos de fofoca… e, em particular no Brasil, o desmonte do Estado por um dos piores governos já vistos.

Desgraças contemporâneas

Sem desejar fazer um resumo da obra de Bauman e das desgraças contemporâneas, nesse universo atravessado por toda essa sorte de discursos – eu diria, de práticas não discursivas também, mas muito contundentes, o que seria outro tipo de mecanismo de controle social – é que está Beatriz, portanto. E ela, como todos, vive uma pandemia de proporções nunca antes vista. Então, não é simples sua interação com um sujeito “real”, um poeta da mesma cidade dela, Curitiba, muito possivelmente praticante de sua “visão de mundo”, e outro sujeito, a 9.000 km de distância, que ela apenas conhece virtualmente, culto, famoso e com certo discurso que flerta com o conservadorismo. Já falo do discurso propagado por ele, que aparece ao longo do texto intercalado aos demais.

Então, a estrutura do livro, ao optar por alternar a narrativa sobre Beatriz e a voz direta do poeta, digamos que ecoa seu dilema entre os dois homens. É como se houvesse uma dicotomia, um antagonismo, uma antinomia, terrível e equivocada marca das guerras discursivas atuais, que enxergam apenas a superfície dos grandes conflitos, imaginando-os em terrenos opostos, ou como um jogo de damas, em claro e escuro, sem lhe dar a devida profundidade.

Agora vejamos como se dá a linguagem escolhida pelo escritor para seu narrador. A intercalação citada acima tem a ver, também, com os discursos propostos pela obra.

Infantojuvenil

Sobre a linguagem, preciso abrir um adendo ou fazer uma digressão. Nos anos 1990, uma colega de mestrado escolheu, como objeto de investigação, “Juliano Pavolini”. O professor do programa perguntou a razão de ela escolher uma obra infantojuvenil e se não seria melhor que ela migrasse para outra linha de pesquisa. É curioso observar que tanto “Trapo” quanto “Juliano Pavolini” eram assim tomados e recebidos por alguns estudiosos da área de Letras. Nunca mais vi tal discussão e creio mesmo que não interessa definir, escolher, apontar um adjetivo para essas obras que não diga mais do que algo apenas opaco. De “Trapo” para cá, obviamente, o autor escreveu tantas outras coisas, entre textos teóricos (sua tese foi publicada pela Rocco), e talvez sua obra mais famosa, “O filho eterno”, era e continua sendo alvo de discussões bem adultas, se o leitor me permite essa dicotomia entre “infantojuvenil” de um lado e “adulto” de outro. Nem mencionarei que obras infantojuvenis (na hipótese de Tezza ter pensando num público mais jovem para elas) podem discutir temas muito profundos, como a morte. Feita essa digressão, voltemos.

A narração

Logo no início de “Beatriz e o poeta”, principalmente para quem não leu as demais obras do autor, em particular as obras em que Beatriz é a heroína, o leitor encontrará períodos como esse “viu o pequeno frasco de gel sobre a mesa, e ajeitou-o ao lado do cardápio”, “abriu a geladeira pela terceira vez (…)”, “(…) a caixinha com foto de queijo derretido despertou sua fome”. Por um lado, essas frases simples (de conteúdo simples; em verdade são períodos compostos, em sua maioria, em termos gramaticais), ajudam a caracterizar a personagem e o contexto. Faz parte do fazer literário a descrição, afinal. Ela escolhe máscaras, a rua por onde chega ao café, abre o computador etc. Por outro lado, o leitor poderá se perguntar por que raios o narrador descreve ações (aparentemente sem importância) em grande profusão. A narração “sobre” o que faz Beatriz e principalmente a voz em primeira pessoa de Gabriel, o jovem poeta, lembram tanto a linguagem de um diário jovem quanto a linguagem “mais solta” dos aplicativos e das redes sociais, em que descrições simples, quase aleatórias, são comuns ao gênero. Evidentemente, trata-se apenas de um “lembrar” (lembrar que estamos numa pandemia, que estamos num café, que estamos na rua e vemos pessoas sem máscara), já que a linguagem do autor, literária (e de um autor com décadas de experiência) é extremamente pensada e repensada.

Caso o leitor se dê ao trabalho de comparar o “estilo” do Autor com outras obras dele, como “O fotógrafo”, perceberá sutis diferenças. Nesse romance em particular, até pela idade do herói (não se trata, portanto, de discussões entre jovens, sobre amores possíveis, virtuais ou “reais”), essa mescla, essas pausas, essas inserções, dão a impressão de um acabamento melhor.

Tenho falado muito disso em meus textos de análise literária e espero que isso ajude um pouco a discussão. Tenho defendido que grande parte da produção cultural contemporânea sofre um processo de “infantilização”, ou, para quem não gosta da adjetivação (sim, sei, é um substantivo), sofre um processo de “facilitação”. Assim, grandes temas e grandes pautas da atualidade, como a causa negra, a situação LGBT, o masculinismo e a grave situação da mulher, o de(s)colonialismo, o aquecimento global etc., são absorvidos pelo capitalismo e pelo mercado de forma brutal, eficaz e conservadora. Brutal, porque as grandes pautas são minimizadas em produtos culturais com falso discurso de pertencimento, empoderamento, atenção à voz alheia (aconselho Bell Hooks, para quem não está acostumado a essa discussão); eficaz, porque, ao dissolver grande parte da importância das pautas das minorias, dos subalternizados, dos vulnerabilizados, colocando-os em falsa evidência, faz com que se pense que tais questões estão resolvidas; conservador porque as pautas citadas são mais profundas, e lutam por resoluções “atualizadas” das questões e não por conquistas já garantidas, embora sempre em perigo. No caso de “Beatriz e o poeta”, não creio que as descrições arbitrárias e aparentemente desconexas sejam uma fuga aos grandes temas e sim um “modo de escrita”, uma escolha pessoal para o caso específico de Beatriz. (Volto à comparação com “O fotógrafo”.)

Talvez isso – a facilitação e a infantilização – fique mais fácil de ver em respostas culturais, sendo exemplo disso programas de televisão, como novelas, séries, programas de auditório. Talvez fique mais fácil de ver no grande mercado da música popular, num mercado que abrange música sertaneja, música pop, gospel, funk, rap, a fusão de tudo isso, em cantores tão variados como Jão e Anavitória. Talvez seja menos visível em certas publicações que diluem a discussão filosófica numa roupagem de grande erudição (em palestras, cursos, programas de mestrado/doutorado). E fica bem difícil de localizar em grande parte da produção culta/erudita.

Mais profundo

De modo a propor uma diferenciação, citarei alguns autores que lidam com os grandes temas atuais talvez de modo mais profundo, a despeito de serem autores de grande consumo: Murakami, McEwan e Houllebecq são exemplos disso. Com grande presença na mídia, ao menos conseguem levar discursos mais aprofundados para grandes massas (sabe Deus com que resultados). E há autores mais raros, como Cārtārescu, conhecidos apenas por um grupo seleto de leitores. (A linguagem do autor romeno é difusa, complexa, mesclada, quase um pesadelo em alguns trechos, e difícil de ler, mesmo.)

Mas creio piamente que o mercado editorial tenha dado espaço a autores com linguagem “facilitadora”, o que não quer dizer que não discutam temas ditos universais ou ainda temas de extrema relevância na atualidade. Talvez seja um sinal dos tempos e um modo de os autores agradarem às editoras e aos leitores. Esse raciocínio está em andamento e nem mesmo eu cheguei a uma conclusão fechada sobre isso. Só para esclarecer, mesmo no meio acadêmico, quando meus textos são avaliados por pares, eles sempre duvidam de minha capacidade de ler tantos autores. Eu que lute.

Confuso? Aberto em demasia? Abstrato? Bem; não posso discordar. Pelo sim, pelo não, se o narrador de Tezza consegue captar isso, a escolha de linguagem é genial. Das duas, uma: ou a escolha é consciente (e me faz pender para isso a comparação com outras escritas/gêneros de escrita do próprio livro, como o discurso do teórico que Beatriz precisa traduzir) ou é inconsciente, e aí teríamos mais um autor lidando com discursos tomados pela superfície ou pelas beiradas. Acho difícil crer nessa segunda hipótese em um autor que traduziu Bakhtin para os alunos (junto com outro professor da UFPR, Carlos Alberto Faraco), que tomou pelos chifres o círculo de Bakhtin para defender uma tese, e que entende muito bem a diferença entre intertextualidade e interdiscursividade. Então, isso me faz crer que as citações, os trocadilhos, as interferências, a escolha por duas vozes, a inserção de trechos d’outrem, tudo isso têm um peso discursivo a ser avaliado pelo leitor. E o leitor poderá, também, ler apenas a superfície, mais uma aventura amoroso-filosófica de Beatriz.

Essa visão da escrita e do fazer artístico literário me leva a crer que as dezenas de autores citados e recitados ao longo da obra, então, não está ali em vão, não é arbitrária e escolhida a esmo, Bauman, por exemplo, já explicado acima. Wittgenstein, que aparece num pensamento esparso de Beatriz. Dante, Byron, Wallace Stevens etc., entre outras personalidades, como Bruegel.

Frases longas

Em paralelo, as estruturas sintáticas escolhidas por Tezza me remetem a certa discussão feita por Michel Pêcheux, outro autor muito caro aos colegas da UFPR, do mesmo círculo de Tezza, que estudam o fenômeno do discurso. Se Tezza opta por estruturas longas, por frases, períodos, orações longas, intercaladas com comentários (para isso ele precisa lançar mão de um sem número de conectivos, vírgulas, travessões, orações ditas independentes, elipses, pausas, interferências), ele não faz isso à toa. Há muito aí a ser discutido. Há o acontecimento, no entender de Pêcheux. E o acontecimento é a pandemia em pleno governo de extrema direita, um dos mais corruptos que o Brasil já viu, um dos mais perversos.

Sem entrar na seara das análises fenomenológicas, o que nem combinaria com o autor e seu círculo, as orações longas, com descrições de objetos e pequenas ações cotidianas, ainda remete à confusão mental de Beatriz, ao pensamento do dia a dia, que é variegado e indisciplinado, à sua busca pelas coisas do mundo. Talvez aqui haja menos de Ponge e mais de Claude Simon. (Na dúvida, releia do primeiro o poema sobre o pão e do segundo o último romance dele, “O bonde”.)

O uso de frases longas não é novidade na literatura. Aliás, o uso de elementos longos não é novidade alguma na literatura dita ocidental. Proust, Thomas Mann, Cārtārescu, Bernhard, Claude Simon, Saramago usaram tal mecanismo, cada qual com um objetivo diferente: revelar ou esconder, explicar ou apontar, mostrar o fluxo do pensamento, rir da noção do tempo, crer (numa leitura estropiada de Einstein) na relatividade, mostrar as dubiedades do inconsciente etc. O estratagema de Tezza talvez frequente todas essas possibilidades, mas nesse livro em particular estamos às voltas com uma heroína que vive parte de sua vida inserida no meio virtual. E a pandemia obrigou a (quase) todos a isso.

Bakhtin

Se auxilia no entendimento as escolhas de Tezza, separei dois trechinhos do teórico estudado por ele e por seu círculo. Diz Bakhtin, sobre os gêneros do discurso: “Todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana”. E também, em “Notas sobre literatura”: “A ironia entrou em todas as línguas da Idade Moderna, entrou em todas as palavras e formas (sobretudo as sintáticas)”.

As inserções de outros discursos nas falas das personagens criam um efeito curioso: ora a personagem fala consigo mesma, ora com o leitor, ora com o interlocutor. Ora é a personagem que fala, ora o narrador. Nesse momento e nessa intersecção é que surgem vozes alheias, de personagens conhecidas (que fazem parte do romance ou dos demais romances onde Beatriz é a heroína), de personagens alheias ao romance (escritores, no geral), de ditos populares e referências diretas, indiretas, entrecruzadas: “onde se ganha o pão não se come carne”, “lasciate ogni speranza”, em referência a Dante, “como diz fulano, como diz fulana”, “como se diz por aí, como se já ouviu em algum lugar”. Algumas são infames (uma das faces da ironia) e repetidas ao longo do romance. Sobre tal infâmia, seria de interesse fazer um comentário: em algum ponto da narrativa, alguém comenta que certos comentários são desnecessários, “como aqueles do tio do pavê”, mas o recurso do narrador é o mesmo, o que provoca uma dúvida: “quem fala aqui?”. Bom que não se confunda, em termos bakhtinianos, personagem, narrador, Autor, vozes, discurso. Fica aí para você decidir. Nem me arrisco. Não conheço o Autor, e por mais confessional que seja essa breve análise, não posso adivinhar.

Vozes

A fala de Beatriz, que abre a geladeira, escolhe uma máscara, pede café, é, então, intercalada com a do poeta mais jovem que ela, em alternância A + B, A + B. E ambas são, por sua vez, intercaladas com a voz alheia, digamos assim, visível ao leitor, já que todo discurso carrega a voz alheia de modo não visível. Já trato dessa juventude e de como isso tem peso nesse romance.

Inseridas nesse vai-e-vem, há as vozes que citei no parágrafo anterior, mas em particular a fala do crítico catalão, que surge em itálico, em trechos esparsos, mas os quais o leitor poderá juntar para ter uma visão mesmo que turva desse “famoso crítico europeu” (há também uma longa fala de um “comentarista” de site, que dá à fala de Beatriz e à do crítico um contraponto de interesse para o todo do romance). Uma das questões discutidas por ele é justamente a identitária, que parece criticada por ele, e não apenas por ele: se fortalecem na Europa ferrenhas críticas ao que se pode chamar de “questão identitária” e Roudinesco é o primeiro nome que me vem à mente enquanto escrevo isso. A crítica dela é duramente, por sua vez, criticada, e assim a guerra discursiva (expressão importante para os linguistas curitibanos dessa linha de investigação do discurso) se dá. No livro de Tezza não há exatamente um desdobramento dessas “guerras discursivas”, mas eu apontaria essa faceta do romance como uma das mais importantes, que transcende em muito o dia a dia vulgar da heroína, o das descrições aparentemente arbitrárias.

“Jovens”

Creio piamente que a situação desses “jovens” merece atenção especial. Beatriz não é tão jovem. Ela seria uma balzaquiana até meados do século passado. Gabriel, por sua vez, tem uma estranha visão de si mesmo, fazendo supor, muitas vezes, que a voz do menino que conheceu Beatriz como professora fale mais alto que a voz do adulto que ele é. Ele diz que “sua barba é precoce” – e isso aos 25 anos. Algo digno de nota. Nos anos 2000, choveram discursos (pseudo)sociológicos sobre uma nova noção de idade no mundo pós-moderno (na esteira de pesquisas muito sérias, como a de Philippe Ariès, que lidou com a noção de “família” e de “criança”), hipermoderno, ou, como aqui se prefere, líquido. Noções como as de “betweens” e “kidults” frequentaram a mídia como um modismo – e exemplos não faltavam e não faltam. Os primeiros seriam as crianças que não são mais crianças e que não são ainda adolescentes. Deseja um exemplo recente? Os heróis da primeira temporada de “Stranger Things”. Essas crianças salvam o mundo – e depois voltam ao shopping. Os outros seriam adultos que ainda guardam semelhanças e práticas ditas “de criança” ou “de adolescentes”, como é o caso de mães que se vestem como as filhas, de mulheres de 40 ou 50 anos que fazem festa de aniversário com temática infantil, as produções recentes da Marvel, o humor apatetado da novela das sete, os desenhos da Pixar, roupas, produtos etc. O que seria cultural num país como o Japão, por exemplo, com mascotes engraçadinhos para cidades, times e até religiões, passa a ser uma novidade comum por aqui, “um novo normal”.

(Se você gosta de literatura e quer mergulhar mais nessas questões, seria interessante comparar como isso é lidado por autores atuais do Japão e da Rússia, em particular. Compare com os brasileiros e veja o choque!)

Seriam Beatriz e Gabriel (com algo entre 25 e 30 e poucos anos) mais um exemplo disso? Os discursos (em sua forma de acontecimento, retirando a opacidade das estruturas sintáticas) e as estruturas (recheadas de blagues, ditos populares, interferências da memória, de uma ironia repetitiva e cansativa) seriam atravessadas, por sua vez, por outros discursos de “nossa época”? Seriam as escolhas do narrador um modo de apresentar tudo isso, utilizando os dispositivos de controle do discurso (em termos de outro pensador do discurso, Foucault, o que é verdadeiro, a vontade da verdade, a diferença entre razão e loucura, o direito privilegiado da pessoa que fala, os gestos etc.) para moldar uma narrativa que é a cara de nossa época? Seria a narrativa a de uma Rachel Cusk brasileira, que começa uma trilogia com uma frase banal do tipo “Antes do voo, fui convidada a almoçar num clube londrino com um bilionário (…)? Se o momento presente estendeu a inocência infantil para a vida adulta ou se o momento presente sequestrou do adulto sua capacidade – ou sua obrigação – de tomar decisões, somente os historiadores do futuro poderão dizer. Ocorre que há uma diferença bastante grande entre Beatriz e Gabriel. Ela, órfã, vive outra situação de vida. Ela precisa tomar decisões sozinha. E é mulher, numa sociedade extremamente masculinista, no “Sul maravilha”, lugar-que-vota-em-você-sabe-quem.

Voz feminina

Uma amiga muito lida comentou comigo que sente falta de uma voz “mais feminina” na obra. Não sei se Rachel Cusk ou Elena Ferrante são mulheres (espero que sim), mas tenho a impressão de que é uma voz feminina que fala em suas obras, assim como eu arriscaria dizer que é uma mulher que fala nas obras de Annie Ernaux e nas obras de Ana Paula Maia. Confesso que a discussão sobre a existência “verdadeira” de vozes femininas (embora alguns orientandos meus tenham feito excelentes trabalhos nesse sentido) me soa estranha. No entanto, posso afirmar que há obras em que as discussões se dão e outras em que as discussões não se dão. É possível que o leitor de “Beatriz e o poeta” tenha a impressão de que as vozes masculinas sejam mais completas que as femininas no livro, no caso, a voz de Beatriz. Se isso é uma escolha do Autor/artista e do narrador, veja você, leitor(a). Mas observe, de fato, que Beatriz sempre toma as coisas pela epiderme, como se não tivesse dores, desejos, medos, dúvidas femininas. Não há um mergulho nessa alma, e talvez a ausência diga muito mais que a presença. Quando Gabriel discute assuntos como gênero ou sexo, isso parece mais palpável, como no trecho à página 88 da edição em papel publicada pela Todavia. Veja-se a discussão que Beatriz faz consigo mesma (num momento em que menciona “fato estético”, numa alusão a Bakhtin: “crítico russo da moda com um h depois de um k”) à página 104. Ou as escolhas do Autor/narrador evidenciariam numa personagem feminina o “mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível” de Bauman, eco do homem sem qualidades de Musil?

Informalismo curitibano

Sempre me vêm à mente, ao analisar um escritor próximo (por amizade, geografia ou área do conhecimento), os guerreiros de Xian. Enfileirados, eles olham para o mesmo ponto, mas cada um ali é cada um. Os leitores-guerreiros dos textos críticos olham para um mesmo ponto: alguns odeiam o que leem porque discordam totalmente; outros concordam em parte e chegam a ser indiferentes; e há os que adoram porque se sentem representados. Todos têm algo em comum: desbotam quando trazidos à luz, assim como os leitores têm algo em comum, o texto que leem. E a coisa para aí, porque os entendimentos diferem mesmo, de sujeito para sujeito.

Como começar, no caso de um livro de Tezza? Bem; começo pelo lugar-comum de que “santo de casa não faz milagre”. Há muitos leitores – e eu já fui um desses – que olha para a literatura local (sua cidade, seu estado, seu país, seu idioma) com certo desprezo. Há aí a ilusão de que apenas o feito fora do local, do seu espaço geográfico e sociocultural, é bom. E há também os bairristas, os que não conseguem perceber que algo é apenas ruim, ou mediano, ou ainda menos interessante artisticamente que outras coisas, feitas em outros locais. Não construo uma dicotomia, tampouco acredito em pares opostos. Entre os primeiros e os posteriores há um mundo. E no meio de todos eles há toda sorte de sentimentos. Mas precisamos crer em algo – e uma tarefa do crítico talvez seja focalizar (para o bem, para o mal) alguns pontos.

Em “Beatriz e o poeta”, Cristovão Tezza, que é radicado em Curitiba, retoma uma personagem já conhecida do leitor. Não se trata exatamente de uma trilogia, tetralogia (ou série maior, ao menos por ora), mas aqui teremos a Beatriz do título envolta em situações que ora remeterão a livros anteriores, ora não. O leitor poderá ler um ou mais dos livros, como ocorre com Balzac ou Elena Ferrante, pois não terá em mãos uma “Angélica”, cuja leitura precisará percorrer algo como 13 longos volumes (26 no Brasil, dependendo da edição) para se descobrir o fim da heroína popular. Algo que me veio à mente – e constantemente penso nisso para livros seriados, com os mesmos personagens – é a noção de cronotopo emprestada a Bakhtin. O filósofo russo diferencia romances com base numa ideia de cronotopo. Para ele, o “romance grego” seria um tipo de romance com um cronotopo particular: nesse tipo de romance, as personagens não envelheceriam ao longo dos romances seriados, e percorreriam grandes distâncias e viveriam situações variadas. Sempre me pergunto se os romances modernos com mesmas personagens não são uma leitura (uma revisão, em verdade) desse tipo de romance e de cronotopo, a começar por romances mais populares.

Tezza é um homem conhecido na cidade. Essa aproximação, mesmo que deixe de lado o que se pode chamar de uma “amizade”, pode atravessar a leitura, algo similar, mesmo que distante, que ocorre com Dalton Trevisan. Os leitores sabem onde Dalton mora, assim como devem saber que Tezza mora próximo à reitoria, local de onde saiu há alguns anos e onde lecionou. Pessoas mais próximas deverão saber de suas amizades próximas e que Beatriz é o nome da filha de um grande amigo seu, também professor da mesma área… e conhecido tradutor. Um ou outro ainda sentirá mágoa do professor que “abandonou o curso de Letras” para se aproximar do curso de Jornalismo (algo similar ao que se diz de professores como Luiz Costa Lima, professor da UERJ). Almas maldosas falarão da aproximação entre Tezza e Kenzaburo Oe, não tendo lido um, outro ou ambos, dado que há diferenças oceânicas entre a escrita e abordagem dos dois escritores sobre delicados temas de vida.

Romancista experiente, Tezza já publicou duas dezenas de narrativas ficcionais. Afora isso, tem publicados textos não ficcionais, tanto teóricos quanto em outros gêneros de escrita, como a crônica e ainda livros sobre a própria escrita, não literária, no caso, para universitários. Outros professores de seu círculo trabalham com isso também. Deixando de lado o que seus ex-alunos possam dizer sobre ele, foi um dos primeiros professores a lidar com a complexa teoria bakhtiniana. Sua tese de doutorado lida com o complexo pensamento do círculo de Bakhtin e o formalismo russo, e conto isso porque o leitor mais experiente, e mais próximo das teorias linguísticas, vai se perguntar: o que haverá aqui nesse livro que ecoa o professor de linguística que leu Bakhtin e que “abandonou o curso de Letras para abraçar o curso de Jornalismo”? O que haveria de linguagem juvenil e o que haveria de outras linguagens, experimentos que a escrita romanesca permite fazer?

Num certo momento da narrativa, Gabriel se pergunta se ele e Beatriz não seriam “dois solteiros à noite numa pandemia”. A alusão parece ser à peça de Plínio Marcos, “Dois perdidos numa noite suja” e talvez ao filme de mesmo nome. Tanto na peça quanto no filme há uma relação altamente destrutiva (de amizade e amor, não sei dizer), que não pode acabar bem. No livro de Tezza, estamos, como disse, em plena pandemia e governo fascista. Trata-se, então, de um romance que discute as coisas do seu tempo, do nosso tempo, seja monológico, polifônico, heteroglótico, sei lá. É um romance de muitas vozes presentes, que ecoa outras, não muito visíveis. Ou você opta por ler o romance como uma historiazinha de amor em tempos líquidos, cheia de dúvidas líquidas.

Livro

“Beatriz e o poeta”, de Cristovão Tezza. Todavia, 192 páginas, R$ 69,90. Romance.

Sobre o/a autor/a

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