Ian McEwan e o blues do fim dos tempos

Uma crítica feita literariamente ou dos autores críticos

Muitos autores partiram para a crítica. São nomes tão distintos entre si no tempo e no espaço, como Thomas Mann, Danilo Kiš, Tsvetáieva, Virginia Woolf, Bródski. Alguns, meio que ao acaso, outros por necessidades financeiras, outros ainda pela necessidade de fincar a bandeira do seu movimento no território alheio.

Alguns autores chegaram a ficar mais famosos pela crítica do que pelos textos ficcionais. Outros, aproximaram a crítica (vasta como uma floresta – e por isso difícil de definir) dos textos jornalísticos, com colunas que atravessaram décadas, em jornais impressos e, hoje, digitais.

O caminho contrário também é possível, e alguns críticos enveredaram pelos tortuosos caminhos da ficção ou da poesia.

E há os bons oradores. Lê-los e/ou ouvi-los pode ser um prazer e uma descoberta preciosa, de modo que a crítica que fazem ilumina suas obras. Aqui, temos um exemplo pequeno, gracioso e profundo, o de Ian McEwan, que escreveu End of the world blues para um ciclo de leituras da Universidade Stanford, em 2007. Bom situar o ano: as leituras ocorreram antes da grande crise de 2008, mas depois do 11 de setembro, em pleno governo republicano de George W. Bush. O interessante desses textos é o elemento literário que carregam – e por isso a escolha desse livro para a coluna de hoje.

McEwan parte de Susan Sontag, citando seu famoso estudo Sobre a fotografia. As fotografias seriam um “inventário da mortalidade”, afinal as fotos, no futuro, mostrarão os sujeitos do agora como mortos. Dali, ele lembra os profundos estudos de Norman Cohn sobre o “fim dos tempos”, principalmente os estudos do autor britânico sobre os milenaristas. McEwan, assim como já mostrou Umberto Eco, lembra como o milenarismo é um discurso que surge como uma fênix negra ao longo do tempo e com diferentes facetas. As três religiões de mesma origem – judaísmo, cristianismo, islamismo – são pródigas em fabricar todo tipo de sujeito que encontra nos textos sagrados “dados” para prever o fim dos tempos e argumentos para atacar o outro, matar o outro, dizimar o outro. Uns esperam rios de sangue, outros uma novilha vermelha, outros ainda sinais no céu. Em todos os casos, há uma crença numa absurdidade, sem a menor lógica, embasada em teorias da conspiração fajutas, em leituras livres do Apocalipse, em visões.

McEwan mostra que tais discursos não ocorrem apenas nas periferias do mundo, com sujeitos sem estudo, violentos e despreparados para a vida em sociedade. Ele coloca lado a lado William Muller e Ronald Reagan. Mostra como o teor milenarista (entre outros, extremamente perigosos) aparecem de tempos em tempos, atraindo gente de todo o espectro político.

Queria chamar a atenção para alguns pontos desse livrinho: a) o fato de o autor lidar com teóricos americanos e ingleses; isso não causa em mim nenhuma comoção, mas haveria um ganho enorme se “enegrecêssemos” o discurso, por exemplo, lidando com teóricos de outras origens; b) aqui temos um escritor a falar, a apontar com o dedo algumas questões bem conhecidas e divulgadas, sem pacificação, mas que precisam ser repisadas e discutidas; c) depois dele, depois de 2007, vários teóricos trouxeram à tona a situação tenebrosa dos discursos e das práticas milenaristas: andam de mãos dadas com o fascismo, com o obscurantismo (para aqueles que preferem esta palavra e diferenciam, com rigor, o conservadorismo, como algo negativo, do conservadorismo como um discurso legitimador da manutenção de algo que pode ser, inclusive, bom); d) guardadas as devidas proporções, os fenômenos trumpismo, bolsonarismo, entre outros,  não surgiram do nada nos EUA e no Brasil, assim como os fenômenos vistos na Hungria, nas Filipinas, na Bolívia, na Polônia, não surgiram do nada. Eles têm sido gestados. Em alguns lugares, como no Brasil, são projetos em andamento há muito tempo.

O discurso religioso extremista é uma base de grandes proporções: ligada ao despreparo para a vida democrática, à limitação intelectual, ao ódio étnico e racial, ao ódio de gênero, é ao mesmo tempo uma grande arma para líderes poderosos e um grande aliado do neoliberalismo. Cai bem ao liberalismo manter o gado sob cabresto e rédeas curtas.

Creio que McEwan dispense apresentações. Os amantes de literatura devem conhecer suas obras mais famosas, como Reparação e Solar, e o excelente romance mais recente Máquinas como eu.

Eu prefiro as obras mais conceituais dele, que são as obras do Ian McEwan mais jovem e mais afeto à inovação e ao susto e ainda sem necessidade de agradar seus editores e o grande mercado. Então, sugiro Jardim de cimento e Cães pretos.

E nem tecerei comparações com Kazuo Ishiguro ou John Banville. Preciso de amigos e de seguidores. Uma salva de palmas para a Editora Åyiné. Ela tem se especializado em autores raros, em textos críticos, em narrativas literárias não ficcionais, e em edições belíssimas, que dão vontade de colecionar.


Para ir além

Blues do Fim dos Tempos, de Ian McEwan. Editora Âyiné, tradução de André Bezamat, 65 pp. R$ 21,90

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