Estou atuando como mediador num conflito que envolve, de um lado, diversas aldeias da comunidade indígena Ava-Guarani e, de outro, proprietários rurais que exploram atividades agrícolas em determinada região do Estado.
Ambos exploram a terra a seu modo. Divergem no modo de produção e, especialmente, no que diz respeito às finalidades.
São modos de produção em conflito, cuja solução demanda compreensão, paciência, diálogo interinstitucional e vontade política.
Enquanto os proprietários rurais exploram a terra economicamente, com foco no potencial produtivo e na geração de riquezas, a comunidade indígena enxerga na terra o locus de sua existência. Não obstante tirem o sustento da terra, aquele quinhão tem significado que transcende a produção de riqueza ou alimento. Os indígenas fazem parte da terra, numa ligação ontológica.
A cultura Guarani é centralizada na profunda conexão entre o homem, as plantas, os animais, a terra e a água, de modo que a retirada de qualquer um desses elementos compromete a integralidade de sua existência.
Vem daí a referência à “questão indígena” na primeira parte do título desse texto.
Explico, agora, a razão da segunda parte do título.
Sempre tive muita curiosidade sobre o título de um livro de Karl Marx: “0 18 de Brumário de Luis Bonaparte”. Pesquisa aqui e acolá, descobri que “brumário” diz respeito a um determinado período do ano no qual as brumas cobrem a cidade de Paris. Descobri, também, que, após a queda da Bastilha, os revolucionários franceses resolveram estabelecer um calendário próprio, diferente daquele gregoriano, e atribuindo aos meses uma denominação distinta. Brumário, nesta perspectiva, refere-se a um dos meses do outono europeu e que vai do dia 22 de outubro a 22 de novembro.
Mas o que isso tem a ver com o título desse texto?
Na verdade, absolutamente nada, pois desconheço qualquer episódio recente que possa merecer alguma comparação ou identificação com o título da obra de Marx.
Interessa, contudo, a metodologia criada pelo filósofo alemão para compreender os fatos da história e que foi utilizada com rigor científico no livro “O 18 de Brumário”. Falo do materialismo histórico dialético.
Não sou especialista no assunto, senão um mero curioso que busca apaziguar a ignorância com a leitura, às vezes rasa confesso, de textos sobre o tema. Consegui compreender, então, que a história deve ser interpretada a partir dos fatos concretos que foram se sucedendo ao longo do tempo, mas sempre tendo em mira o modo de produção vigente, ao que se contrapõe um outro modo de produção, estabelecendo uma relação conflituosa que poderia determinar a prevalência de um sobre o outro ou mesmo um novo.
Justifico, assim, a referência ao “18 de Brumário” na segunda parte do título desse texto.
E é a partir dessa perspectiva que pretendo desenvolver o texto.
A pauta indígena é muito complexa: tradicionalidade, culturalidade, marco temporal, esbulho renitente, resgate e reparação históricos, são alguns dos temas que orbitam os diversos conflitos que envolvem as mais diversas etnias e grupos de silvícolas.
Na condição de mediador, fui visitar as áreas ocupadas pelos indígenas (eles se referem a elas como áreas de retomada) e que deram origem a diversos processos judiciais.
Lá chegando, tive o seguinte o diálogo com o cacique de umas das várias tekohas (pronuncia-se “tekorrá” e significa aldeia) que existem no oeste do Paraná:
– Boa tarde cacique. Tudo bem? Podemos conversar?
– Já estamos conversando.
– Ótimo. Meu nome é Fernando. Sou desembargador do Tribunal de Justiça e designado pelo Conselho Nacional de Justiça para tentar compreender e achar uma solução para essa questão das terras ocupadas pelos guaranis. O senhor pode me contar porque ocuparam essa área?
– Não ocupamos nada. Não invadimos nada. Nunca saímos daqui. Meus antepassados viveram aqui exatamente neste lugar onde você está pisando. Apenas voltamos e retomamos o que sempre foi nosso.
Respondi que entendia e fiz uma segunda pergunta:
– Cacique, existe um relato de que muitos paraguaios estão vindo para as terras dos guaranis. Isso talvez possa dificultar na construção de uma solução de consenso. Como isso acontece?
A resposta que recebi é daquelas que servem para a vida toda, principalmente sobre a compreensão e respeito que devemos dedicar aqueles que, em algum momento da nossa história, tiveram seus direitos usurpados e vilipendiados. Disse o cacique:
– Você sabe qual a língua oficial do Paraguai? É o guarani e guarani é o nome do meu povo. Não sou brasileiro e nem meus “parentes” são paraguaios. Somos todos guaranis. Foram vocês que construíram fronteiras e limites. O rio não divide as terras dos guaranis. Ele faz parte delas. Meus parentes não deixam de ser guaranis quando vêm aqui e nem eu deixo de ser guarani quando vou para o outro lado.
Neste momento me dei conta de quanto a questão é, de fato, complexa e merece um esforço concentrado de vários órgãos oficiais que, na medida de suas competências institucionais, possam auxiliar na construção de uma solução justa.
A aldeia que visitamos em nada se assemelhava à visão idílica de indígenas integrados ao seu ambiente natural. Ao invés de habitações tradicionais, feitas com conhecimento milenar e materiais extraídos da natureza, vi barracas de lona preta. A utilização de redes para acomodação indicava um componente cultural importante. Sob o chão de terra batida, lixo plástico e desorganização própria das periferias das grandes cidades.
O acesso à água era precário e a única mina próxima da aldeia estava contaminada, o que deu causa a uma quase epidemia de diarreia e vômito, sobretudo nas crianças. A área ocupada não passa de dois alqueires.
Os alimentos que poderiam coletar da mata existente no local, já havia se esgotado. Não pude deixar de me impressionar com a escassez de alimentos. Sim, a fome estava presente.
A vulnerabilidade é evidente.
Precisam de outras áreas que permitam o desenvolvimento adequado do seu modo de vida e produção. Vem daí a a ideia da “retomada”!
O conflito se dá, então, justamente por conta dessa ideia de “retomada”, isto é, a comunidade indígena ocupa áreas que, em algum momento na história, abrigavam diversas aldeias indígenas.
Ocorre, contudo, que essas áreas são ocupadas, hoje, por pequenos e médios agricultores que, por décadas, vem exercendo ali as suas atividades profissionais, explorando economicamente o espaço e “dali tirando o sustento seu e de sua família”.
São áreas, em sua grande maioria, regulares, com título de domínio válido e que se prestam a um modo de produção próprio da atividade ligada ao agronegócio.
Com as “retomadas” o conflito acontece.
O processo de mediação, que visa a superação desses conflitos, é, como se sabe, necessariamente dialógico e, em razão dessa peculiaridade, assim como conversei com a comunidade indígena, mantive contato com alguns produtores rurais da região.
Depois de explicar os limites das minhas atividades como mediador, ouvi os seguintes relatos e indagações:
– Estou na área há mais de 40 anos. Meu pai comprou e passou para os filhos. Tenho toda a documentação: escritura, matrícula do registro de imóveis, recolhimento do ITR, mapa e o cadastro de imóvel rural no INCRA. São pouco mais de 5 alqueires. Planto soja, milho, algodão e trigo. Minha renda mensal média é de pouco mais de R$ 10.000,00. Tenho filhos para sustentar, compromissos financeiros com bancos e cerealistas. Os índios invadiram quase 25% da minha propriedade e não consigo plantar mais nada no local. Eu produzo. Gero renda e emprego. O que eles fazem? O que produzem? Nada. Não fazem nada. Não produzem nada. Muitos deles só vem para o Brasil porque aqui tem benefícios sociais.
Indago, então, se a venda da área não seria uma solução.
Eis a resposta:
– Vender para quem e por quanto? E depois, o que vou fazer da minha vida? Vou trabalhar onde e com o que? Um alqueire de terras bem pago valeria perto de R$ 200.000,00. Tenho cinco. Do que me serve R$ 1.000.000,00? Vou viver de renda? Consigo com isso sustentar meus filhos e dar a eles um futuro?
Evidentemente não tinha resposta para nenhuma das perguntas feitas.
O conflito, como se vê, não se dá por conta da ocupação pura e simples das terras em disputa, mas sim em razão dos diversos modos de produção adotados.
Como compatibilizar os diversos interesses em jogo?
A população indígena guarani tem uma história permeada de tragédias. São povos que acreditam ter a missão divina de expurgar o mal do mundo e não trazem em sua cultura as práticas de guerra. São pacíficos e gentis por essência. Expulsos de suas terras, foram massacrados e escravizados aos milhares.
Temos, de fato, uma dívida histórica a ser reparada.
De outro lado, os pequenos e médio agricultores da região, ali se estabeleceram dentro das normas editadas pelo Estado brasileiro. Imaginam que contam com a proteção do próprio Estado, até porque dão finalidade social às suas propriedades.
Segundo a metodologia científica expressa na interpretação dos fatos históricos do 18 de Brumário, os modos de produção em conflito podem se sobrepor ou ajustar-se, na sua essência, para um novo modo de produção.
E a mediação, neste caso, busca justamente, esta síntese, que se pretende virtuosa e que contemple adequada e realisticamente, todos interesses envolvidos.
Um primeiro passo é a compreensão da verdadeira tragédia que permeia a história dos indígenas no Brasil e, depois, compreender o já secular modo de vida que os caracteriza como comunidades tradicionais.
É preciso compreender, também, a realidade que hoje experimentamos com a legitimidade das ocupações das terras reivindicadas pelos indígenas, principalmente porque, em boa medida, são regularmente exploradas e não compõem grandes latifúndios improdutivos.
A partir dessa compreensão é possível iniciar um amplo diálogo com todos os envolvidos e que deve contar com o suporte das mais diversas entidades, públicas e privadas, que possam, ao seu tempo e modo, contribuir na construção de uma solução adequada e que possa atender, ainda que minimamente, os interesses de todos os envolvidos.
O Estado, por outro lado, não pode se furtar a contribuir para a solução do conflito.
Espera-se dele o protagonismo necessário, inclusive na condução dos debates e, sobretudo, que vele pela contenção de ânimos e não permita que posições ideológicas sejam o centro e a causa de questão tão complexa.
A despeito da complexidade, soluções existem. É preciso compreensão, paciência, estudo e muito diálogo.
Neste processo de ampla discussão, é preciso atender, de forma prioritária, as necessidades da comunidade indígena, assegurando-lhes infraestrutura mínima que lhes permita viver de forma digna.
A nossa história não precisa contemplar novas tragédias com a superação de modos de produção, ou reproduzir a lógica de explorados e exploradores. A síntese se conforma com a convivência harmoniosa e sem preconceitos entre modelos distintos: basta compreensão, respeito, compromisso com o diálogo e com a dignidade.
Sobre o/a autor/a
Fernando Prazeres
Desembargador, 2º Vice-Presidente do TJPR, presidente da Comissão de Soluções Fundiárias do TJPR, membro da Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do CNJ, especialista em Processo Civil pela Universidade de Milão, especialista em Direito Público pela EMAP