A morte incendeia a vida: as mães silenciadas por facções criminosas.

No Dia das Mães, muitas mulheres sofrem por terem perdido seus filhos pela ação do Estado ou de organizações criminosas

Este domingo foi Dias das Mães. Redes sociais inundadas de postagens com fotos e homenagens. Escolas preparam apresentações. O mercado maciçamente incentiva o consumo. Mesa do almoço de domingo posta: fartura, sorrisos, alegria e felicidade. Na vida instagramável: não há conflitos; não há dor; tudo se dissipou.

O cenário festivo tira luz de uma questão cotidiana que destrói a vida de milhares de mulheres que são mães: a morte violenta de seus filhos.

Segundo os dados do anuário de Segurança Pública, no ano de 2023, 50,3% das vítimas de mortes violentas intencionais eram adolescentes e jovens com idade entre 12 e 29 anos. Quanto ao delito de homicídio, 76,5% dos vitimados eram negros. À letalidade da ação de forças de segurança, em muitos meios, se atribui o resultado. E, novamente, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2023, 83,1% das pessoas mortas nos contextos de intervenção do Estado tinham a pele escura. Mas será apenas isso? A questão nos parece muito mais complexa.

Em dezembro de 2020, três crianças negras saíram de casa, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Lucas, Matheus e Alexandre não mais voltaram. Segundo as investigações que foram publicizadas, foram mortas a mando de uma organização criminosa, por terem furtado passarinhos.

As mães de Lucas, Matheus e Alexandre, todos negros, e de tantas outras crianças, mortas quando brincavam, estudavam ou voltavam da escola não têm o que comemorar. Choram silenciosamente a dor e, sobretudo, a impotência. Rememorando os pequenos corpos, que um dia ninaram, quando achados, “cobertos com jornal e ressecados pelo sol”. Os filhos foram, as mães que ficam.

Por isso, os problemas que envolvem a proteção de direitos humanos devem ser lidos, sempre que possível, com lentes de gênero, classe e raça.

Neste ponto, a questão da violência contra a população negra se deve igualmente à ação de organizações criminosas. A dominação de territórios, em que ocorrem os crimes, tem por pressuposto o uso da força, da violência e de uma política de dominação pelo silenciamento e pela morte. Facções criminosas concorrem para a mortandade de juventude negra nas periferias deste país. Escolhem, em tais espaços, quem vive ou não. Já disse Achille Mbembe: “Se é livre para viver a própria vida, somente quando se é livre para viver a própria morte.”

Como é ser mãe dentro de espaços territorialmente ocupados por milícias e facções criminosas? Como é conviver com a falta de acesso a políticas públicas como saneamento básico, moradia, saúde e educação? Como enfrentar a existência de ordens e estatutos próprios que representam o direito e força, não podendo recorrer ao Estado? Como não se deixar cooptar e nem que seus filhos sejam aliciados por eles? Como lhe dar com o medo cotidiano de que a filha, ainda adolescente, não será raptada ou estuprada por membros de tais aparatos? Como retornar para os
espaços dominados em que os filhos foram mortos? Como conviver silenciosamente com o sofrimento e dor diante da violência?

E, ainda, como é reproduzir o chamado da Grande Máquina: produzir, reproduzir, trabalhar, cuidar de si, organizar o serviço doméstico e criar e educar, por vezes sem o companheiro, sem rede de apoio e sem o Estado, os filhos? O quadro é neurótico, desesperador.

Ao contrário do que se dá quando há letalidade por intervenção do Poder Público, em que coletivos de mãe mulheres, vítimas indiretas da violência, se organizam e buscam a verdade e a justiça, como as Mães de Maio, as mães vítimas das facções criminosas não fazem do luto uma luta:

“E os olhos não choram (…) E o coração está seco.”

Não há espaço que possibilite ecoar o brado por justiça. Atrair holofotes e o sistema de justiça trarão mais dor, angústia e sofrimento. Elas são invisibilizadas e condenadas à miséria da desesperança. É necessário um basta. Sem sonhos, não há esperança. E como disse Conceição Evaristo:

“A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. (…) A gente combinamos de não morrer. (…) Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero
contagiar de esperança outras bocas”.

Não há política de direitos humanos sem promoção integral de segurança pública e de justiça social. Para lembrar, todas as condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos são por violação de direitos de vítimas.

Essas mães, nestes espaços dominados por organizações criminosas, são vítimas todos os dias e, igualmente, seus filhos e, em igual razão, toda a população. A partir do olhar da mãe, a quem
se atribuiu o dever de cuidado, de afeto, de proteção e amor, é urgente que o Estado passe a enfrentar, com inteligência e força, as milícias e as facções criminosas. A omissão contribui para o aumento da violência. A matéria é prioritária e deve ser objeto de elucubração de todas as agências formais de controle social.

Desmantelar organizações criminosas, retomar espaços territoriais ocupados, inibir o crescimento em penitenciárias, as asfixiar economicamente, punir e responsabilizar seus membros é promover direitos humanos, sobretudo, conter a escalada de
violência que vítima negros e pobres.

Não há segredo, nem são necessárias leis mirabolantes. O cumprimento efetivo da Constituição Federal, do Código Penal, do Código de Processo Penal e Lei da Execução Penal já transformaria, de forma significativa, a sociedade e livrariam os jovens das amarras da violência, em todos os seus aspectos.

Mas não é só Direito Penal.

Segurança pública e proteção à maternidade, direitos fundamentais, são fenômenos que caminham entrelaçados com os demais direitos sociais.

A quem se impõe o dever de cuidar, também deve-se garantir os direitos humanos básicos: saúde, alimentação, moradia, saneamento básico, lazer, meio ambiente equilibrado, educação. E,
especialmente, amparo e apoio, quando falha a prevenção.

E mais, não é só o Estado.

A sociedade deve entender a importância de sua participação neste cenário, incorporando a filosofia africana Ubuntu: “uma pessoa só é uma pessoa por meio de outras pessoas.” Enquanto
mulheres, mães, sobretudo, negras e pobres, chorarem silenciosamente a morte de seus filhos, nós não somos e não poderemos ser!

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