Curitiba mudou. Aceita que dói menos

Fiscalização feita nos bares materializa a ideia que alguns têm da cidade como um Palácio de Versalhes imaginário

A Curitiba de antigamente, aquela tão saudosa para tantos de seus habitantes, definitivamente não existe mais. Seja pelo seu tamanho quase quadruplicado, pela saturação/obsolescência do sistema Lerner, ou pelo influxo de novas correntes migratórias, o fato, queiram ou não seus citadinos, é que mudou.

A existência de comércios e fruições emergentes e espontâneas, bem diferentes das calculadas pelas administrações que já passaram pela cidade, com suas estátuas, música clássica, fogos de artifício e pompa do Versalhes imaginário nunca frequentado, divergem e muito. E as ações da Prefeitura têm deixado isso muito claro.

AIFU

A ideia higienista de um uso uniforme da urbe, pautado pelo insuperado imaginário comportado do passado, tem se materializado de maneira muito concreta nos dias de hoje, em especial quando falamos da AIFU (Ação Integrada de Ação Urbana). Os órgãos que formam a iniciativa, que serve para fiscalizar sob diversos aspectos o funcionamento administrativo e legal dos estabelecimentos comerciais da cidade, são frequentemente acusados de abuso de sua autoridade e de aplicar punições desproporcionais aos estabelecimentos que fiscalizam.

Para se ter uma ideia, suas ações deram um salto de 3.438% em quatro anos. Em 2018, foram 36 fiscalizações; em 2019, subiram para 84 e explodiram na pandemia. Em 2020, foram registradas 531 ações e, no ano passado, 1.274, uma média de mais de três por dia.

Em nota, a Polícia Militar, respondendo a uma reportagem do Plural, diz que “o planejamento e a condução das fiscalizações observam os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, primando rigorosamente pelo interesse público. Os responsáveis pelos estabelecimentos fiscalizados e eventualmente notificados recebem todas as informações e esclarecimentos relacionados, o que inclui os caminhos para apresentação de recursos e até mesmo reclamações”. Infelizmente nem todo mundo está de acordo com essa conformidade que alega o comunicado.

Truculência

“Uma coisa que sempre chamou muita atenção nesse tipo de fiscalização é que são feitas ações midiáticas, e nós concordamos com os nossos clientes que muitas vezes são feitas à base de truculência”, conta Alexandre Pesserl, doutor em direito pela UFPR e sócio do escritório Wypych Advogados. “Muitas vezes são questões ligadas à fiscalização que sim, de fato a prefeitura tem o direito de fazê-la. Não só ela, mas os órgãos do estado também. Porém, um alvará vencido pode ser discutido em horário comercial, não se deve esperar a casa estar cheia, numa sexta-feira à noite, para chegar com holofotes ligados, fazendo todo aquele barulho e fechando o estabelecimento.”

Com experiência no setor, o escritório em que trabalha Pesserl defende vários bares que já foram autuados pela prefeitura. Uma situação muito comum que causa problemas com a vizinhança é o barulho e/ou a execução de música ao vivo nos bares e restaurantes. “A gente tem uma situação de anomia, ou seja, a falta de uma legislação específica, porque para você conseguir o alvará de música ao vivo, você tem que ter o isolamento adequado, por outro lado, você tem a legislação de emissão sonora que estabelece um limite de decibéis que você pode emitir durante determinados horários”, explica Pesserl. “Eles argumentam que não liberam o alvará de música ao vivo se você não tiver o isolamento completo, o que é inviável para a maioria dos estabelecimentos. Em São Paulo ou no Rio de Janeiro você pode fazer uma feijoada, com um sambinha, num lugar aberto, num sábado à tarde. Em Curitiba, isso pode ser impossível. A gente costuma dizer que quem manda na cidade é o vizinho.”

Numa conversa com donos de bares e restaurantes aqui da cidade, rapidamente chegamos a testemunhos de atrocidades cometidas por aqueles que também são responsáveis por uma boa vida comunal. Várias transgressões, muitas bastante graves, foram cometidas por vizinhos insatisfeitos com seus vizinhos. Desde que a institucionalidade corrente abraçou a cruzada moralista em que vivemos, a intolerância parece ter suplantado a consciência de que a vida em coletividade requer que sejamos tolerantes com aqueles ao nosso redor. De perseguições a agressões, passando por acosso, assédio e litígios judiciais, os exemplos são aterrorizantes.

Um dono de bar no centro já teve fezes atiradas no seu pátio, num sábado à tarde, pois um vizinho estava supostamente incomodado com o barulho de crianças em um pula-pula. Outra proprietária, de origem nipônica, após uma perseguição implacável do síndico do condomínio de seu estabelecimento, restaurante e bar, pediu para que ela deixasse de produzir sua comida “nojenta” ali e fritasse pastel em outro lugar, numa referência que não poderia ser mais xenófoba. Portanto, no círculo vicioso que se estabelece entre a postura da municipalidade que encoraja os munícipes e vice-versa, criminalizando a diversão, quem perde é a civilidade.

Críticas

De volta à AIFU, a iniciativa, que a priori é legítima e válida, pode ser criticada sob diversas óticas. “A AIFU parece concentrar muito os pequenos poderes. Você tem muito poder de decisão na mão de um pequeno número de servidores, que no meu entender agem com abuso de autoridade, aplicando punições que são absolutamente desproporcionais ao tipo de infrações encontradas”, explica Pesserl.

O advogado vai além, “o dono do bar não quer problema com o entorno, não quer ter esse tipo de questão. Do outro lado você tem a municipalidade que não chega a uma definição legal. Faz 15 anos que esse problema da AIFU se repete e a prefeitura simplesmente continua mantendo e autorizando esse tipo de situação. Tem que ser discutido isso na política, tem que ser levada essa questão para a câmara dos vereadores, chamar a prefeitura para se posicionar e estabelecer uma regulamentação do que AIFU pode e o que a AIFU não pode. Porque hoje eles podem tudo”, conclui o doutor em direito.

Há de se pensar no efeito prático dessa arbitrariedade. Ainda que muitos julguem eficazes essas medidas drásticas, o fechamento de empreendimentos atinge não só os empresários, mas também seus funcionários, em uma já fragilizada economia. Além disso, que tipo de autorização social é essa que legitima tanto a prefeitura quanto os munícipes a cometerem arbitrariedades como se não estivessem sujeitos a dividir o mesmo espaço comunal com o resto da população? Curitiba mudou e prefiro pensar que esse é o grito desesperado de uma época que é quase página virada, a pensar que é a essa caretice que a cidade deseja se reduzir!

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