Maestro – Figura social

O que fecha os ouvidos ao diálogo, termina berrando para paredes, e reproduz comportamentos sem reflexão

Em 1991, há 31 anos, Norman Lebrecht publicou O Mito do Maestro –  grandes regentes em busca do poder. Em 2002 o livro foi traduzido para o português e é uma referência sobre a história dos grandes maestros do século XX. Neste livro, de 573 páginas, Lebrecht apresenta, em 27 capítulos, a figura social do maestro. Traçando o perfil de 44 homens primeiro mundistas, majoritariamente brancos, heterossexuais e de meia idade, em suas trajetórias profissionais, Lebrecht conta histórias de homens de poder. 

O autor explica, desde a introdução a fabricação de um mito, que esse poder não se trata de um poder musical simplesmente, mas de um poder social. Maestros são o que ele entende por heróis dos heróis. A figura do artista que lidera outros artistas em busca de um objetivo em comum, despertou admiração em chefes de estado que declararam publicamente seu apreço por maestros. Ou seja, para Lebrecht o maestro é o artista que representa as pessoas representativas da sociedade, as pessoas que respondem por comunidades e que  decidem situações coletivas.

O século XX foi um celeiro de figuras de poder social. O crescimento demográfico, a revolução industrial, as grandes guerras, o imperialismo, entre outros fatores históricos, tornaram governantes pessoas públicas mundialmente. Foi um período de muitos nomes associados ao poder, e nessa lista de autoridades muitos são os autoritários. 

De maneira ditatorial ou autocrática, durante o século XX houveram diversas políticas autoritárias. Ocorreu uma ampliação nas possibilidades de pensar a sociedade, especialmente ao observarmos a história européia, que passou cerca de mil anos sob o feudalismo, mas em um século produziu o fascismo, o nazismo, o regime soviético e o liberalismo. Políticas marcadas por autoritários – Mussolini, Hitler, Stalin, Thatcher – que estão diretamente relacionados aos seus modos de governar.

Lebrecht aponta que: “cada regente importante pode ser identificado como um filho de seu próprio tempo, condicionado pelo clima social deste e pela personificação de seu ethos dominante”. Isso nos indica que mesmo que pessoas poderosas admirassem os maestros, foi do interesse delas ter um artista que as fosse semelhante no “mundo paralelo da arte”, para que essas figuras poderosas fossem, também, lidas como especiais. 

A via aqui é dupla. Um artista que reproduz posturas autoritárias serve às políticas como exemplo de que até para a sublimação artística é necessária uma figura de poder. Assim como, ter figuras autoritárias na sociedade serve para que artistas entendam que é assim que o mundo funciona, não há para onde fugir. 

O autoritarismo marca o século XX e a postura de maestros na música de concerto. No começo do século XXI ainda colhemos muito do que foi plantado por essas políticas e não estamos livres delas. A autocracia está aí e é uma via de golpe, onde governantes autoritários são eleitos de maneira democrática, mas atuam sob uma lógica de governo pautada em desmontar a democracia. 

Maestros autoritários não representam músicos, assim como políticos autoritários não representam uma sociedade. Tudo que fecha os ouvidos ao diálogo, termina berrando para paredes, e reproduz comportamentos sem reflexão. O poder não pode mais servir ao controle, ele precisa servir ao bem estar coletivo.

Segundo a pesquisa realizada pelo League of American Orchestra há uma maestra para 21 maestros. No livro de Lebrecht as mulheres, os homens gays e as pessoas negras recebem o título de excluídos em um capítulo de 17 páginas que conta suas histórias superficialmente e sobre as mulheres recai em falar sobre suas aparências, as qualificando como bonitas ou feias, mesmo que nenhum comentario assim seja realizado sobre os homens. Não mencionam mulheres negras, não mencionam outras diversidades de sexualidade e gênero. É um livro de 1991, é verdade, mas ele conta a história de um século. Um século de ausência em representatividade no poder.

O Brasil está no 38º presidente e até aqui só tivemos nesse cargo uma mulher e nenhuma pessoa negra. Desses 38 apenas 18 foram eleitos diretamente, menos de 50%. Em Curitiba, onde moro, nunca houve uma prefeita. O único vereador aqui cassado, em 300 anos, é um homem negro. As grandes orquestras brasileiras priorizam maestros internacionais em sua titularidade e também como convidados das temporadas. Hoje nenhuma das orquestras sediadas nas capitais brasileiras têm como titular uma maestra ou uma pessoa negra.

Este texto é um alerta. Nós ainda vivemos em uma democracia onde é possível escolher quem melhor representa os coletivos que pertencemos. Se os regentes são filhos de um tempo, que este tempo possa ser de autonomia, educação e democracia. 

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