É preciso politizar a catástrofe

Se as mudanças climáticas são, em certa medida, fenômenos da natureza, a maneira com que escolhemos lidar com eles são escolhas políticas

No começo da semana, com cerca de 80 pessoas mortas e outras tantas desaparecidas, além dos milhares de desabrigados, vítimas das enchentes que assolam o Rio Grande do Sul, o ex-presidente Jair Bolsonaro postou, em suas redes sociais, uma charge sugerindo que Lula desviou, para Cuba, “toneladas de alimentos” destinados aos gaúchos.

No mesmo dia um de seus cúmplices, além de filho, não sei exatamente o número, mas que atende pelo nome de Eduardo, compartilhou uma publicação que acusava o governo federal de investir “rios de dinheiro” no show da Madonna. Outros asseclas completaram a falsa informação, afirmando que Janja, esposa de Lula, foi ao show.

Tudo mentira. Nenhum alimento foi desviado para Cuba, não teve dinheiro federal, muito menos da Lei Rouanet, no show de Madonna, nem Janja estava em Copacabana no sábado. Nem a verdade fática, tampouco o aumento da tragédia – entre mortos e desaparecidos, já são mais de 200, e o número de pessoas atingidas ultrapassa a casa dos milhões –, demoveu a milícia bolsonarista de sua sanha em seguir mentindo, compulsiva e criminosamente, ao longo da semana.

Mentiras foram publicadas nas redes sociais onde, juntos, lideranças bolsonaristas, notadamente parlamentares, somam milhões de seguidores e produzem números estratosféricos de engajamento. Mas elas não estiveram restritas ao mundo digital e foram proferidas, inclusive, nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. 

Por exemplo: o deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), que se orgulha do avô nazista, disse ter provas de que o governo federal dificultou o socorro aos gaúchos. Não as apresentou, claro. Também do Partido Liberal, a catarinense Júlia Zanatta, que mimetiza uma “kinder, küche, kirche” no Parlamento, reclamou que o governo quer investigar quem, com a intenção de “ajudar a população”, segundo ela, espalha mentiras, que ela chama, cinicamente, de “informações”.

E apesar da insistência de alguns colunistas dos grandes veículos, não há simetria entre a extrema-direita e as críticas da esquerda à atuação do chefe da quadrilha, quando essa compara as ações do atual governo à indiferença do miliciano em 2021, quando a Bahia viveu tragédia semelhante, embora em menor proporção. É a versão 2024 da “escolha difícil” de 2018. 

A linha que separa uma coisa da outra é clara: os bolsonaristas mentem. Por outro lado, é verdade que Bolsonaro desprezou a tragédia baiana – como desprezaria, depois, o sofrimento e a morte de milhares durante a pandemia do Covid-19 – e seguiu andando de jet-ski no litoral de Santa Catarina, seu estado preferido. Não seria o desespero de alguns nordestinos, que ele, aliás, odeia, que o fariam encurtar suas merecidas férias. 

Poderia enfileirar, parágrafo após parágrafo, mentiras e mentirosos. Mas, a essas alturas, estamos fartos. Escolhi começar meu artigo citando algumas das imposturas de Bolsonaro e dos bolsonaristas para dizer o óbvio, ainda que uma obviedade rejeitada por um certo bom mocismo ingênuo ou de má fé: sim, podemos e precisamos politizar as tragédias.

Não me refiro à politização baixa e mau caráter protagonizada por políticos e influenciadores de extrema-direita, incluso uma influencer evangélica, Michele de Abreu, que espalhou o amor cristão dizendo que as cheias no Rio Grande são a “ira de Deus” sobre o estado, que tem muitos “terreiros de macumba”. Essa forma de politizar precisa ser denunciada, investigada e condenada. 

Escolher outras políticas

Politizar a catástrofe significa, principalmente, ler a contrapelo o discurso, em larga medida normalizado, de que tragédias como as que atingem o estado gaúcho são “naturais”. É verdade que mudanças climáticas como o aquecimento global, e os eventos decorrentes dela são, ao menos em parte, naturais – ainda que seja necessário discutir as ações humanas justamente na produção dessas mudanças, mas não farei isso aqui. 

Mas se as mudanças climáticas são, vá lá, fenômenos da natureza, a maneira com que as abordamos e escolhemos lidar com elas são políticas. Foi política a decisão do governador Eduardo Leite de alterar 480 pontos do Código Ambiental do estado, em 2019, e engavetar, dois anos antes, um Plano de Prevenção de Desastres que poderia, se implementado, ao menos mitigar os efeitos das enchentes. 

O governo federal não tem feito melhor. Não deixa de ser cômodo para nós, da esquerda, insistirmos na irresponsabilidade criminosa do desmonte das políticas ambientais durante o desgoverno Bolsonaro, com Ricardo Salles aproveitando outra tragédia, a pandemia, para “passar a boiada”. 

Mas como lembrou reportagem publicada pelo “The Intercept Brasil”, a gestão de Dilma Rousseff engavetou, em 2015, o estudo “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”. Encomendado pelo próprio Executivo, o relatório foi considerado alarmista pelo governo, empenhado em colocar de pé a Usina de Belo Monte e impor a todo custo, inclusive ambientais, sua política neodesenvolvimentista.

Também é política, além de econômica, a associação de parlamentares da “bancada do boi” e governadores com o agro, uma aliança que não poupa ninguém. Entre 1985 e 2022, a área ocupada pela agropecuária cresceu 50% – já são cerca de 95,1 milhões de hectares, parte expressiva deles com soja transgênica para exportação. Os impactos climáticos e geológicos se estendem da Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando, obviamente, pelo interior do Paraná, onde áreas imensas de floresta foram desmatadas e substituídas pela plantação de soja.

Apesar da corresponsabilidade dos governos petistas, é inegável que é a extrema-direita quem colabora, porque interessa a ela, para agravar nosso estado permanente de catástrofe. Seja negando as mudanças climáticas e o aquecimento global, ou alimentando a confusão, a insegurança e o medo com a produção e disseminação em escala profissional de mentiras, como nesses últimos dias, os efeitos da relação entre a extrema-direita e neoliberalismo tem nos custado, e ainda nos custará, muito caro.

Desde há alguns anos, intelectuais como David Kopenawa e Ailton Krenak têm nos alertado para o fato de que, se durante muito tempo, a ameaça de extinção afetava os povos e culturas indígenas, ou pelo menos era assim que a percebíamos, hoje, nas palavras de Krenak, “estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”. Em outros termos, a catástrofe é, cada vez mais, uma experiência partilhada. 

Para além das ações mais imediatas e das emergências, talvez uma alternativa seja começarmos a ouvir e aprender com outras culturas e fazeres como, por exemplo, a dos povos originários. O fato é que as escolhas políticas que temos feito, não apenas nas últimas décadas, mas nos últimos dois ou três séculos, nos conduziram até aqui. 

Se quisermos ter um futuro que não esse que nos tem sido oferecido pelos negacionistas, precisamos começar a fazer outras.

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