O bolsonarismo é um projeto autoritário e provinciano

Se o bolsonarismo mobiliza imagens, narrativas e afetos, não é para outra coisa que não a sua permanência e do seu grupo no poder. O horizonte de expectativas não é a construção de uma “civilização”, mas a manutenção de uma aliança entre o governo, o Centrão e setores do mercado

O depoimento da advogada Bruna Morato ontem (terça, 28), à CPI da Covid-19 no Senado, foi estarrecedor. Representante de um grupo de 12 médicos que trabalharam para a Prevent Senior, durante mais de sete horas Morato detalhou o funcionamento de uma espécie de “laboratório da morte”, corroborando suspeitas e denúncias feitas ainda em março do ano passado, no início da pandemia.

A nos pautarmos pelo dossiê que veio à luz semana passada, em reportagem da Globo News, a empresa conduziu estudos sem a anuência dos envolvidos, mandava desligar o oxigênio porque “óbito também é alta”, adulterou prontuários e ocultou óbitos, transformando em cobaias pacientes cuja integridade e vidas, deveria preservar.

Além dos interesses econômicos – o faturamento líquido da companhia, em 2020, foi de R$ 4,3 bilhões, um crescimento de 19% em relação ao ano anterior –, a empresa firmou uma “parceria de sucesso”, na expressão do jornalista Matheus Pichonelli, com o governo, mediada, possivelmente, pelo “gabinete paralelo”.

A pesquisa, fraudada, da Prevent Senior, foi inúmeras vezes mencionada pelo presidente Bolsonaro e seus sequazes, como evidência da eficácia do “tratamento precoce” ou do “kit covid”, o coquetel formado principalmente pelo uso da hidroxicloroquina e da ivermectina, no tratamento do coronavírus.

O comprometimento entre a empresa e o governo tinha, como pano de fundo, a intenção de boicotar o isolamento social e impedir um lockdown a qualquer custo, em nome da recuperação econômica. De acordo com os médicos, a Prevent Senior, alinhada aos interesses do Ministério da Economia de Paulo Guedes, vendia o “tratamento precoce” como alternativa às medidas preconizadas, entre outros, por organismos como a OMS.

Se “a esperança tinha um nome: hidroxicloroquina”, sabemos hoje o preço que estamos pagando por ela: além das 600 mil vidas perdidas, uma economia em frangalhos e sem perspectivas de recuperação no curto prazo.

O problema das comparações históricas

Ultrapassa as raias da ingenuidade supor que o presidente e seus cúmplices desconheciam os procedimentos fraudulentos, e macabros, adotados pela Prevent Senior. Todos sabiam, é óbvio. Mas é preciso resistir à tentação e tomar cuidado com as comparações que, desde ontem, começaram a ser feitas com o nazismo e o genocídio judeu, mais especificamente com Auschwitz e os experimentos realizados pelo médico alemão Josef Mengele.

Se é possível falar, em relação ao governo Bolsonaro, de fascismo ou mesmo de uma prática genocida, especialmente na condução da pandemia, o problema de alargar demais as comparações históricas, é perder de vista as especificidades da nossa barbárie – além do risco de banalizar as tragédias passadas.

Há, inicialmente, um problema de escala, mas não se trata apenas disso. Tampouco é inédita a aliança entre médicos e projetos autoritários de governo. Nas décadas de 1910 e 20, antes da ascensão do nazismo, milhares foram esterilizados como parte da política eugenista do governo norte-americano, amplamente aceita pela medicina da época.

Médicos acompanhavam sessões de tortura nos porões, e assinavam atestados de óbitos forjados durante as ditaduras latino-americanas. Os chamados “métodos especiais de interrogatório”, utilizados por militares dos EUA nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo, foram elaborados seguindo orientações médicas.

Os limites do bolsonarismo

A questão central, me parece, é não perder de vista os objetivos que moldam a política de morte do governo brasileiro. Falecido recentemente, o filósofo francês Jean-Luc Nancy argumentou, em livro escrito com Philippe Lacoue-Labarthe, O mito nazista, que uma das características do nazismo residia na tentativa de conformar o mundo à sua própria imagem, explorando, de maneira racional, planejada e sistemática, as funções mobilizadoras do mito em favor da construção de uma utopia (ou distopia, se preferirem), a construção da civilização ariana.

Algo distinto ocorre com o bolsonarismo, e por pelo menos três razões.

Primeiro, porque seu projeto nada tem de mítico e utópico. Se o bolsonarismo mobiliza imagens, narrativas e afetos, não é para outra coisa que não a sua permanência e do seu grupo no poder. O horizonte de expectativas não é a construção de uma “civilização”, mas a manutenção de uma aliança entre o governo, o Centrão e setores do mercado dispostos a afiançar o morticínio bolsonarista em troca das benesses do Estado.

Além disso, se o nazismo aniquilava o outro, o diferente, especialmente judeus, sob o pretexto de preservar a vida alemã, o bolsonarismo é uma máquina de produzir e justificar a morte dos semelhantes. Na semana passada, por exemplo, Bolsonaro voltou a afirmar, em entrevista a um canal da extrema-direita alemã no YouTube, que os números de óbitos no Brasil foram superdimensionados, e que boa parte dos que morreram já tinham alguma comorbidade e a Covid apenas “encurtou” suas vidas em alguns dias ou semanas.

E não menos importante: exceção feita, esperamos, para o Tribunal Penal Internacional, Bolsonaro é irrelevante no contexto político internacional, e tem consciência disso, o que ficou ainda mais patente em seu discurso na ONU, quando ocupou uma tribuna mundial para falar a seus cúmplices como se estivesse em suas lives semanais no Facebook.

Bolsonaro não quer “conformar o mundo à sua própria imagem”. Apesar do projeto reacionário em curso não ser exclusividade brasileira, porque parte de uma aliança que inclui outros países, partidos e movimentos de extrema-direita, Bolsonaro não tem a pretensão de ser um líder mundial. Ele não tem capacidade política de articulação, competência para gerir alianças, nem disposição para trabalhar. O projeto político de Bolsonaro e do bolsonarismo é autoritário, corrupto e genocida. Mas é, também, provinciano e medíocre.

Bolsonarismo, a nova face do fascismo brasileiro
A pandemia colocou em marcha a política genocida do governo

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