80 anos do massacre de Babi Yar: de políticas de silêncio à construção da memória

Com o telefonema que recebi do embaixador Tronenko, nasceu a ideia do projeto educativo brasileiro para a criação de um material online gratuito (em português e acessível) para professores

Memórias são construídas diariamente. Cada narrativa, iniciativa ou decisão influencia como elas serão erguidas ou apagadas. É um processo contínuo, infinito e que não depende apenas de uma vontade. O caso do massacre de Babi Yar, durante a ocupação nazista em Kyiv (Kiev), é mais um exemplo de como o “lembrar” está imerso nesse processo cotidiano complexo e em conflito constante.

Tudo começou muito antes da ligação cordial que recebi do embaixador da Ucrânia no Brasil, senhor Rostylav Tronenko, em janeiro deste ano. Para entender a importância da parceria inédita entre o Museu do Holocausto de Curitiba e a embaixada ucraniana, é preciso elucidar as nuances da construção da memória de Babi Yar (ou Babyn Yar) no país europeu.

Um apagamento físico e ideológico da memória dos horrores de Babi Yar ocorreu em todo o período em que a Ucrânia foi dominada pela União Soviética. Como destacou o historiador Anatoly Podolsky, havia uma política de silêncio sobre tudo que não se encaixasse na narrativa do regime sobre a 2ª Guerra Mundial, incluindo as vítimas judias do Holocausto. Em outras palavras, a história da Ucrânia soviética do pós-guerra não estava particularmente interessada nos judeus como grupo ou no terrível destino que sofreram por causa dos nazistas. Por isso, os soviéticos sempre desencorajaram qualquer iniciativa que enfatizasse a perseguição, o assassinato em massa de judeus e a eliminação completa de comunidades judaicas, preferindo oficialmente que a tragédia fosse lembrada como um crime cometido contra Kiev e a URSS.

Toda a área da ravina onde ocorreu o massacre de 34 mil judeus – homens, mulheres e crianças – em 29 e 30 de setembro de 1941 foi, nos anos seguintes, literalmente achatada e enchida com lixo industrial. Em 1961, um deslizamento de terra desencadeou o famoso “incidente de Kurenivka”, quando centenas foram mortos no episódio que despejou lama, água e restos humanos de uma barragem nas ruas de Kiev. Mais tarde, o local se transformou em um parque e um complexo de apartamentos. Quando Nikita Khrushchov era chefe do Partido Comunista na Ucrânia, ele se opôs à proposta do escritor judeu ucraniano Ilya Ehrenburg de erguer um monumento às vítimas. O poeta Yevgeny Yevtushenko tratou sobre o tema, em versos que foram aclamados mundialmente: “não existem monumentos para Babi Yar”.

Projeto do Centro Memorial do Holocausto Babyn Yar (BYHMC).

Foi somente depois que a Ucrânia conquistou a independência, em 1991, que o massacre entrou definitivamente no debate público e nos livros escolares – mesmo com o desconforto com a participação de colaboradores ucranianos nos assassinatos. Histórias foram reveladas, incluindo de vítimas ciganas (roma), além de pesquisas que sugerem que o número de mortos teria sido pelo menos três vezes maior.

Em setembro de 2016, no 75º aniversário da chacina, membros de uma ampla coalizão internacional se reuniram em Kiev para anunciar o compromisso de criar um novo centro educacional e memorial na Ucrânia. Cinco anos se passaram quando, dias depois do telefonema do embaixador Tronenko, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky inaugurou um monumento e destacou os esforços no projeto do Centro Memorial do Holocausto Babyn Yar (BYHMC), que prevê a construção de um museu, um memorial com nomes das vítimas, um espaço religioso (incluindo sinagoga, igreja e mesquita), um centro de pesquisa educacional e científica, uma biblioteca e uma plataforma multimídia. Um escritório de arquitetura austríaco venceu o concurso que escolheu o projeto, que vai se desenvolver ao longo de uma rampa descendente com paredes que “escoltam” o visitante ao espaço expositivo, implantado vinte metros abaixo do solo.

Era 27 de janeiro de 2021, Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, quando o presidente discursou em Babi Yar. “A cerimônia de hoje marca o início de nossas comemorações do octogésimo aniversário da tragédia do massacre de Babyn Yar. É nosso dever nacional e moral lembrar as vítimas do Holocausto que foram assassinadas aqui na Ucrânia e na Europa Oriental”, afirmou.

Projeto do Centro Memorial do Holocausto Babyn Yar (BYHMC).

Com o telefonema que recebi do embaixador Tronenko, nasceu a ideia do projeto educativo brasileiro para a criação de um material online gratuito (em português e acessível) para professores. A iniciativa, que prevê a tradução de poesias ucranianas (de nomes expressivos como Liudmila Titova, Mykola Bazhan, Olga Anstei e os já citados Ehrenburg e Yevtushenko, dentre outros), vai abranger textos, imagens e propostas pedagógicas. Temas como a vida judaica em Kiev nos séculos anteriores à guerra, a Operação Barbarossa e a atuação dos Einsatzgruppen serão mescladas com histórias individuais tanto de vítimas quanto de salvadores (Justos entre as Nações) ucranianos – sem fugir da incômoda colaboração de civis.

A construção da memória de Babi Yar, o olhar da nação ucraniana sobre a tragédia hoje e a comunidade judaica contemporânea em Kiev também serão abordados no material, que contará com o apoio do Museu da Memória Judaica e do Holocausto na Ucrânia, e da Tkumá – Instituto Ucraniano para os estudos do Holocausto, tendo ainda o Yad Vashem como fonte primária das pesquisas. O material será lançado no mês de outubro.

Este projeto é mais uma ação que reforça o compromisso do Museu em construir parcerias com órgãos públicos, universidades, coletivos, organizações sociais, instituições internacionais e representações diplomáticas. Nossa experiência nos mostra que a construção da memória coletiva universal do Holocausto e a luta contra o racismo e os extremismos precisam ser travadas de forma socialmente conjunta.

É preciso unir forças entre grupos que trabalham individualmente e criar narrativas consonantes nos debates públicos sobre a intolerância. Temos que mergulhar nos lugares de fala, criar parcerias e juntar esforços entre pessoas e identidades que, mesmo possuindo suas próprias pautas, têm em comum a luta contra o ódio. Precisamos nos engajar em todas as lutas, de todas as minorias, não apenas restritas ao antissemitismo, para formarmos uma ampla voz, contribuindo para a construção de memórias diversas e combatendo seus silenciamentos. Assim, aumentariam a pressão e o clamor social para que ocorram mudanças de comportamento e que movimentos de cunho antissemita, autoritário ou fascista sejam constrangidos, calados e percam qualquer tipo de amplitude.


Para ir além

Fundação e Centro da memória do Holocausto BABYN YAR.

Exposição virtual “Babyn Yar in Search of Memory”: iniciativa do Museu de História de Kyiv e do Comitê Público de Babyn Yar com o apoio do Instituto Ucraniano de Memória Nacional e da Iniciativa beneficente canadense “Encontro Ucraniano-Judaico”.

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