Ave Lola faz com Shakespeare o que o bom cozinheiro faz com o coentro

"Sonho de uma noite de verão", dirigido por Ana Rosa Tezza, é uma delícia de se assistir

Não é de hoje que observo um comportamento muito particular do fazer teatral curitibano. Uma cidade com uma cena teatral tão vasta, com grupos e escolas espalhados em tantos cantos da cidade – alguns, infelizmente, ainda distantes do já distante público espontâneo – observa uma produção de espetáculos autorais, dramaturgias experimentais, criações coletivas e tantas outras denominações bonitas e próprias do vocabulário do povo das artes ao passo que é difícil ver o nome de uma peça da dramaturgia de repertório sendo encenada por aí.

A notícia da montagem de “Sonho de Uma Noite de Verão” pelo Ave Lola acendeu o radar. Já é difícil mexer com clássicos na cidade, aí a trupe aparece com Shakespeare. E Shakespeare é o coentro do teatro. Não é só sobre gostar ou não. Aliás, gostem. É bom demais. De Shakespeare e de coentro. Mas é acima de tudo sobre saber usar. Afinal, com quem Ricardo III dialoga hoje? Hamlet já desvirginou o anti-herói moderno. Seu conflito permanece no homem contemporâneo? Para que realizar o resgate da métrica shakespeariana para os ouvidos cheios de urgência de uma audiência que possivelmente acelera as mensagens de áudio?

Ítalo Calvino diz que “A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”. Eu não vou ser petulante de contradizer Calvino. A iconoclastia dessa pedra tem parâmetros. Talvez “Sonho de Uma Noite de Verão” não traga pra nossa gente nenhuma grande reflexão para além do simples fato de parar por três horas para admirar as desventuras de Puck.

Desacelerar pelo deleite de fruir histórias de amores não
correspondidos, desilusões, as derivas dos sentimentos. A encenação do Ave Lola é uma estado de celebração. O texto bom não é nada se não bem contado. É difícil contar Shakespeare – tal qual usar coentro. Coentro é bom quando adicionado fresco, me disse um amigo cozinheiro. Se cozido, o coentro acentua qualquer coisa que confere notas polêmicas ao sabor da comida. Ana Rosa Genari Tezza sabe o que faz. Sempre soube. A direção é primordial. O entendimento da trama, das matizes de cada núcleo, do tom de cada cena, das poesias visuais propõem frescor e pungência em uma obra que sobe ao palco com as cores da plateia que assiste. Encenar é também traduzir.

O trabalho dos atores é poesia. O encontro preciso com a sonoplastia, feita ao vivo por uma dupla de músicos que parecem uma orquestra, é um delírio. Figurinos e adereços são personagens próprios que se tornam ainda mais deslumbrantes debaixo de uma luz de Beto Bruel.

Por mais difícil que seja ver um cânone da dramaturgia montado na cidade, a notícia boa é que vem pela mão de quem sabe cozinhar receita antiga na mesa do agora. Em novembro o Ave Lola estreia “Romeu e Julieta”. Olhos já atentos e a pedra já no estilingue.

Esta coluna no Plural não vem para servir de mais um instrumento de adulação à carente e delirante classe teatral curitibana. Quis a casualidade do tempo que a estreia da Pedra viesse para falar sobre uma obra que beira o irretocável. A sensação é levemente controversa, mas no fim deleitosa e animadora. Quase um coentro. E renovadora de esperanças para que a produção da cidade continue proporcionando um teor amoroso de uma pedra que, desta vez, repousa tranquila e serena à espera do próximo terceiro sinal.

Serviço
A temporada de estreia fica em cartaz até 23 de abril, terça, às 19h30 no estacionamento da sede, na Rua Marechal Deodoro, 1227. A bilheteria funciona no sistema “pague quanto vale”, o que é uma crueldade pois a sensação é de que estamos contribuindo com menos do que gostaríamos. A esse respeito, a diretora da Trupe Ave Lola tranquiliza nossos corações ao início do espetáculo lembrando que o “quanto vale” também é compreendido como “quanto pode”. Teatro bom não precisa – e nem pode – ser inacessível.

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