O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Maria, após anos de casada com Francisco, encorajou-se e decidiu denunciar as agressões físicas, verbais e psicológicas sofridas durante a sua relação. Procurou a Delegacia mais próxima de seu bairro. Constrangida e envergonhada, contou sua história e o ciclo de violência a que foi submetida para o Delegado de Polícia. Em seguida, foi encaminhada ao sistema público de saúde. Um médico rapidamente garantiu o seu atendimento e fez o tal exame.

Passados alguns meses, o oficial de justiça bate à sua porta e Maria descobre que precisaria comparecer ao fórum da cidade. No dia da audiência, Maria detalhou como foi vítima das mais variadas formas de violências perpetradas por aquele que escolheu se casar. Na sala, um advogado lhe representava como vítima. Outro advogado defendia o réu. A acusação ficara a cargo de um promotor de justiça e o julgamento sob responsabilidade de outro homem. Ao sair do Fórum, olhou um quadro que possuía o símbolo da Justiça, a Deusa Têmis, e pensou: se a Justiça é uma mulher, porque não a encontrei?

Têmis, infelizmente, não foi ao encontro daquela jovem vítima de violência doméstica!

O texto dessa semana inicia com uma situação frequentemente vivenciada por muitas mulheres nos fóruns espalhados pelo país e no Estado do Paraná não seria diferente. Os nomes aqui utilizados são fictícios, mas os fatos, lamentavelmente, verdadeiros em todas as suas nuances. Além das violências experimentadas por alguns corpos na vida em sociedade, o sistema de justiça prioritariamente é formado pelos personagens atuantes neste enredo.

A Constituição Federal de 1988 afirma que todas as pessoas são iguais em direitos, obrigações e os seus interesses legítimos devem ser protegidos pelo Estado. A igualdade entre homens e mulheres está assegurada no rol dos direitos e garantias fundamentais. A realidade, todavia, é outra.

Maria, desde que resolveu pôr fim ao ciclo de violência a que foi submetida e ao percorrer o sistema de justiça, sai daquele edifício pomposo e se dá conta da inexistência dessa igualdade entre todas as pessoas na vida cotidiana. A jovem vítima de violência doméstica, assim como muitas pessoas, logo percebe que essa pretensa igualdade oculta, produz e reproduz o domínio de homens sobre as mulheres, de pessoas brancas sobre as pessoas negras e ainda provoca a marginalização de identidades não heterossexuais.

A pergunta formulada por Maria e que também interroga outras mulheres e demais pessoas plurais escancara as disparidades de gênero existentes no Brasil e denuncia que as decisões do Estado são, majoritariamente, proferidas por homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais.

A história de Maria desnuda um Brasil inserido no contexto capitalista retroalimentado pelo neoliberalismo que ainda impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Na vida social, aos homens são atribuídos papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídas características menos valorizadas com impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam.

Neste contexto, as mulheres majoritariamente são responsáveis pelos afazeres domésticos e o trabalho materno. Aos homens são destinados os postos laborais mais valorizados e bem pagos. Há uma divisão sexual do trabalho estabelecida de modo a acarretar dependência financeira e emocional delas diante de seus maridos e companheiros.De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas-ONU estima-se que serão necessários 300 anos para se alcançar a igualdade de gênero entre homens e mulheres em todo o mundo.

O enfrentamento às estruturas patriarcais é urgente. O Brasil é formado por pessoas diversas e as mulheres somam 51,5%, da população, sendo a maioria delas negras. A Justiça, porém, é feita por homens brancos e heterossexuais. Maria vivenciou na própria pele as diferenças de papeis sociais. Uma sala de audiência repleta de homens e ela, vítima de toda essa violência. Embora o acesso à carreira de juiz de direito seja igualitário, por meio de concursos públicos, não se pode negar que em razão da cultura patriarcal as mulheres enfrentam barreiras muito maiores do que os homens para chegar à aprovação e ascender na carreira. Quando já aprovadas, exercem múltiplas tarefas por serem juízas, mães e gestoras do lar. E, ainda, profissionais negros e plurais têm que enfrentar o racismo e a homofobia cotidianas.

A composição do sistema de justiça, englobando-se também o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia espelham a fundação da sociedade brasileira colonialista de subalternização de corpos negros, femininos e não heterossexuais.Na segunda década do século XXI, a busca por essa diversidade bateu às portas do Poder Judiciário que é um dos três Poderes da República e, portanto, tem o dever de espelhar a sociedade brasileira composta em sua maioria por mulheres.Os juízes de todo o Brasil, desde o ano de 2022, durante os seus julgamentos, já devem promover a igualdade e a não discriminação das pessoas, em especial daquelas do gênero feminino para que as diferenças não se perpetuem, constituindo o Poder Judiciário um espaço de rompimento com a cultura de preconceitos.

Em setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça apresentou uma nova política afirmativa de gênero e que pretende alcançar a igualdade entre os juízes e as juízas no Brasil.Assim, deverão ser abertas vagas para o acesso aos tribunais de 2º grau por meio de editais, na promoção por merecimento, exclusivos para mulheres, até que se alcance a proporção de 40% a 60% por gênero no respectivo tribunal.

A paridade de gênero, em perspectiva étnica e racial, também precisa ser observada no exercício de atividades administrativas e típicas do Poder Judiciário. Os membros do sistema de justiça pouco adeptos às mudanças afirmam que não há disparidade de gênero dentro das carreiras do Ministério Público e da Magistratura, concorrendo todos os membros em pé de igualdade. Para além dos números acessíveis em todos os meios de comunicação, a realidade vivenciada na audiência de Maria e o desencontro com Têmis comprovam que essa igualdade ainda, de fato, está bastante distante. É bom lembrar que, em razão do domínio masculino enraizado na sociedade brasileira, as mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto há pouco mais de 90 anos, em 1932.

A força do discurso masculino permitiu somente em 2010 uma mulher ser a primeira Presidenta do Brasil. Na história republicana do Poder Judiciário, apenas 03 (três) mulheres foram nomeadas Ministras do Supremo Tribunal Federal, a primeira delas em 2000. Toda essa falta de representatividade e diversidade contribui para que, desde 2015, mais de 10.000 mulheres fossem assassinadas apenas por pertencerem ao gênero feminino, mesmo com o advento de uma lei que tornou mais grave o referido crime.

Além disso, muitos desses feminicídios foram justificados pela “legítima defesa da honra” masculina até março de 2021, quando o Supremo Tribunal Federal considerou tal tese inconstitucional. Sem contar que, desde 2008, o Brasil é o país mais perigoso para as mulheres trans e as travestis em todo o mundo, sendo que elas têm uma expectativa de vida de apenas 35 anos de idade. Esses são alguns dos vários exemplos do quanto as disparidades de gênero produzem e reproduzem efeitos nefastos em face do corpo físico, da saúde mental, psicológica e da vida das mulheres em todas suas especificidades. É preciso, pois, feminizar a sociedade e, acima de tudo, os espaços de poder. Voltando ao caso que iniciou essa reflexão, conclui-se que Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro!

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