Leandro Narloch, feitor de escravos e coach do movimento negro

Colunista da Folha agora insinua que negros escravizados não prosperavam por pura falta de vontade

Dizem que foi Pedro Malan quem falou que no Brasil até o passado é incerto. Pode não ter sido, o que só dá mais razão à frase e a seu possível autor. Fato é que nas guerras culturais que vivemos, há todo um esforço para dizer que o passado não foi como foi, que tudo que sabemos sobre o mundo está errado. Ninguém faz isso de maneira mais vil do que Olavo de Carvalho, mas ele não está sozinho.

Conheci Leandro Narloch antes de ele ser quem é hoje. Na época, parecia só mais um aluno de comunicação na UFPR: inteligente, brincalhão e com um jeito de quem passava as tardes na indolência. Cometi o erro de ser condescendente com ele em seu primeiro livro, um manual da história do Brasil de um ponto de vista “politicamente incorreto”. Achei que teria o mesmo peso das brincadeiras que fazíamos na cantina da faculdade e escrevi um texto até dando uma força, que foi parar na quarta capa do livro (tomara que não esteja mais lá, morro de vergonha).

Mas aquilo não era uma brincadeira. E a série de livros politicamente incorretos teve um impacto considerável nas guerras culturais. As bobagens que o Leandro enumerava, que seriam inócuas na cantina da Santos Andrade, hoje são usadas por gente como Jair Bolsonaro em seus discursos e nas justificativas de suas barbáries.

Nesta semana, Leandro cometeu mais uma de suas barbaridades na Folha de S.Paulo, um jornal que perde um pouco de prestígio a cada coluna dele. Na vontade de aumentar sua pilha de bitcoins, Narloch, insiste em ser um enfant terrible mesmo depois dos 40. Mas seu alvo, ao contrário do crítico corajoso, nunca é alguém com poder. Ele gosta é de bater nos pobres, nos ferrados, nos miseráveis que a vida já deixou no chão. Trata-se, afinal, de um covarde.

Ele já perdeu um emprego por falar algo profundamente homofóbico. Mas não aprendeu porque não lhe interessa aprender. A coluna desta semana é sobre um dos temas prediletos de Leandro: o escravo. Narloch chicoteia o escravo morto, do século 19, mas com a declarada intenção de fustigar o negro de hoje.

Pouco importa a Leandro a realidade. Ele não está nem aí para o que diz, na verdade, desde que cole com o público branco que acende charutos cubanos com notas de euro. Os pretos são maioria nas favelas, são vítimas ainda hoje de preconceitos, morrem e apanham nas mãos da PM, ganham menos e trabalham mais? Dane-se. Ele quer é se aproveitar dessa gente para comprar mais um apê em Sampa.

A maldade dessa vez é a seguinte: baseado num livro de Antônio Risério, ele ressalta a vida das sinhás pretas no século 19, que prosperaram não só a ponto de comprar sua alforria como também chegaram a comprar seus próprios escravos. Diz Leandro, sempre embasbacado com a riqueza, esse eterno eleitor de Amoêdos: deixavam joias em seus testamentos.

Para alguém que só se interessa por dinheiro, esse é o padrão de tudo. Houve negras que enriqueceram. Sendo assim, a escravidão talvez não tenha sido tão má. Parece patético? E é, evidente. Parece que estou exagerando? Mas não.

Leandro diz que os historiadores (esses fantasmas que neuróticos e espertalhões gostam de ver como subversivos) são uns desinformados, meros militantes que criam um falso esquema dualista dividindo o mundo em oprimidos e opressores. Algo que não encontra amparo na realidade. Sério.

Numa sociedade escravocrata, diz ele, não há dualismo. Esse lance de senhores e escravos, poxa, não criava uma divisão tão funda assim. Quem diz isso são maniqueístas, são esses comunistas das universidades.

No passado que Leandro quer criar, os negros podiam prosperar sim. Se houve as sinhás negras, essa divisão só pode ser falsa. Os outros negros decerto não prosperaram porque… Bom, cada um complete a frase como quiser. Mas é o que está implícito no raciocínio.

Zombar da escravidão é parte da origem da riqueza de Leandro. Ele gosta de achar exemplos de negros que venderam negros; de negros que compraram negros; e Deus nos proteja para que ele não ache um indício, ainda que falso, de um negro que manteve um branco como escravo.

A ideia é pegar a exceção, o bizarro, ou aquilo que é passível de distorção, para mostrar que o mundo não foi tão cruel assim. No passado de Leandro, ninguém sofreu: nem negros, nem mulheres, nem ninguém. No mundo dos Narlochs e Amoêdos, só quem sofre são os empreendedores e o pessoal do politicamente correto.

Leandro, o jovem da UFPR, se tornou um feitor profissional de escravos mortos. Mais do que isso: branco de olhos claros, filho da classe média que nunca sofreu um mililitro de preconceito, quer ser coach do movimento negro. Mandou um discurso motivacional para os ativistas: eles devem evitar ficar falando tanto assim de sofrimento (que coisa mais deprê, hein?) e que passem a falar do exemplo dos escravos que foram protagonistas de seu destino.

Escravos que foram protagonistas de seu destino. Oxímoro? Dane-se. Vai render likes e uma grana para investir em uns empreendedores brancos na Faria Lima.

A chibata de Narloch é antiga. Vibra nas costas dos negros há séculos. Mas está disfarçada de algo Novo. Pois assim gira o mundo, sempre com algum esperto para tirar vantagem da situação.

Leandro é filho de brancos; eu sou descendente de negros. No nosso caso ele tem razão: não havia obstáculos para que nenhum de nós prosperasse. Ele ficou rico por uma diferença apenas – topou pegar na mão a chibata e bater ainda mais sobre os lanhos que já estavam abertos.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima