Bolsonarismo, a nova face do fascismo brasileiro

O bolsonarismo emergiu em um contexto de fragilidade democrática, e como reação à retomada democrática do período pós-ditadura. Fenômeno político contemporâneo, ele extrapola o governo Bolsonaro, e provavelmente sobreviverá a ele

Em outubro de 2018, Daniel Silveira, Rodrigo Amorim e Wilson Witzel, depredaram uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, do PSol, brutalmente assassinada em março daquele mesmo ano pela milícia carioca. O gesto era carregado de um simbolismo aterrador: além de vilipendiar a memória da parlamentar – mulher negra, nascida e criada na periferia, e lésbica –, ele expressava, indiretamente, a simpatia do trio pelos seus assassinos.

O ato contribuiu para catapultar os então candidatos à Câmara dos Deputados, à Alerj e ao Palácio do Guanabara. Witzel sofreu impeachment no final do ano passado, caído em desgraça na corte bolsonarista depois de romper com o presidente. Na noite de terça (16), a PF prendeu Daniel Silveira, cumprindo um mandado do ministro do STF Alexandre de Moraes. A prisão foi ratificada por unanimidade pela corte. A mesa diretora da Câmara optou por representar contra o deputado no Conselho de Ética da casa.

Como parlamentar, Silveira fez de seu mandato extensão da truculência que exibiu ao vandalizar a homenagem a Marielle Franco. Blindado pela imunidade, consumiu recursos públicos invadindo escolas; ameaçando desafetos; bradando, em seu canal no YouTube e nas redes sociais, contra a democracia; disseminando mentiras; pregando a violência e defendendo a ditadura brasileira e seus mecanismos de terror.

O ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão preventiva de Silveira. Crédito da foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Ironicamente, durante todo o dia de quarta (17), parlamentares e formadores de opinião de extrema-direita vieram a público defender o deputado contra o que chamam de “ditadura togada”. No tom calculadamente espalhafatoso, característico do grupo, e que oscila entre o denuncismo paranoico e conspiracionista e a simples grosseria, transformaram um apologista do AI-5 em um mártir da liberdade de expressão.

O artifício narrativo, que transforma em vítima um propugnador da violência do Estado, não é novo. Ele é parte de uma estratégia que está no cerne do bolsonarismo: apresentar seus protagonistas como em um constante combate contra o “sistema”. Pouco importa se ele, o “sistema”, se personifique em uma corte de magistrados ou em uma pandemia de proporções mundiais e que já matou mais de 240 mil brasileiros e brasileiras.

Na lógica bolsonarista, que é a da guerra de uma maioria silenciosa, contra uma minoria privilegiada, mentirosa e corrupta, é preciso também transformar cada batalha em espetáculo, como fez o próprio deputado ao se deixar filmar, por um de seus assessores, agredindo e ameaçando verbalmente uma policial civil na sua chegada ao IML para o exame de corpo delito.

Uma placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, foi destruída por Daniel Silveira. Crédito da foto: Renan Olaz/Agência Câmara do Rio de Janeiro.

Nesse sentido, a prisão de Daniel Silveira é emblemática para entendermos melhor o que é e como funciona o bolsonarismo, um fenômeno político contemporâneo que extrapola o governo do presidente que lhe dá nome, e que provavelmente sobreviverá a ele quando, algum dia – e esperamos que esse dia não demore – seu governo tiver um fim.

Radicalismo de direita

Em uma conferência de abril de 1967, “Aspectos do novo radicalismo de direita”, recentemente publicado no Brasil, Theodor Adorno chamava a atenção para o fato de que alguns dos pressupostos sociais que engendraram o fascismo nos anos de 1930, permaneciam vivos e atuantes na Alemanha do pós-guerra.

Ele identificava, entre outras, duas propriedades comuns aos velhos e novos apoiadores do fascismo: uma reação – ele chama de “medo” – aos “desenvolvimentos gerais da sociedade”, de que é parte o aprimoramento das instituições democráticas e dos direitos e liberdades individuais; e o que define como uma “extraordinária perfeição dos meios”, especialmente os propagandísticos.

Theodor Adorno: filósofo alemão apontou o risco de subestimar os grupos neofascistas em função de seu baixo nível intelectual. Crédito da foto: arquivo.

O filósofo alemão apontava ainda o risco de se subestimar os grupos neofascistas em função de seu baixo nível intelectual ou a ausência de teoria. Nesse vazio de ideias, argumentava, residia parte de sua força centrípeta. Não apenas porque o novo fascismo, como o velho, se assenta também no anti-intelectualismo, mas porque, se a intenção é mobilizar afetos, palavras de ordem são mais eficazes que uma retórica articulada e racional.

No Brasil, o bolsonarismo emerge em um contexto similar ao descrito por Adorno. A começar pelo passado autoritário, nunca devidamente confrontado. Assinado em 2009, o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) prometia “acompanhar, discutir e articular” iniciativas de revogação das leis remanescentes do período ditatorial, além de defender a implementação de políticas públicas de memória.

Em 2010, o mesmo STF que mandou prender o deputado bolsonarista e que o investiga pela participação em atos antidemocráticos, julgou improcedente o processo da OAB que pediu a revisão da Lei de Anistia. No mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro a punir, por crimes de tortura e assassinato, agentes da ditadura. O governo reivindicou a lei de 1979 para lavar as mãos e justificar a impunidade.

Em 2010, o Supremo julgou improcedente o processo da OAB que pediu a revisão da Lei de Anistia. Crédito da foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil.

No ano seguinte, o alto comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas pediu ao governo brasileiro a revogação da lei, no que foi solenemente ignorado. Mesmo levando-se em conta o trabalho, exemplar, da Comissão Nacional da Verdade, o fundamental restou por fazer: nenhum dos governos eleitos a partir de 1989 enfrentou o imenso edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura política contemporânea.

Esquecimento e fragilidade democrática

O bolsonarismo é fruto dessas “políticas do esquecimento”, que estão no âmago do processo de retomada democrática. Ele é uma reação raivosa, violenta e autoritária aos frágeis processos de mudança vividos pela sociedade brasileira nas últimas décadas. Sem uma cultura democrática capaz de consolidar uma percepção da política como gestão das diferenças, assistimos a emergência de um movimento que opôs, ao débil aperfeiçoamento da democracia, a objeção de grupos que se sentiam ameaçados pela mera possibilidade de uma sociedade mais aberta e plural.

A exemplo de líderes autoritários do passado, como Hitler ou Mussolini, Bolsonaro não deu início a esse movimento. Mas teve o senso de oportunidade de perceber a direção que ele tomava, e chamou para si o papel de o encarnar, de lhe dar um corpo e um nome. Eleito, aparelhou o Estado e, por meio dele, potencializa uma liderança messiânica, em um caso emblemático de um presidente que gere o sistema, mas se apresenta como, e é visto pelos seus sequazes, como antissistêmico.

Jair Bolsonaro: eleito presidente do Brasil, aparelhou o Estado e potencializa uma liderança messiânica. Crédito da foto: Marcello Casal jr./Agência Brasil.

Algumas das suas medidas nesses poucos mais de dois anos reforçam seu apelo e identificação com as massas. É a elas, a seus medos e ansiedades, que ele se dirige quando insiste na “agenda dos costumes”, hostiliza as chamadas “minorias”, ou reaviva o fantasma da ameaça comunista.

Por mais que o acesso às armas de fogo mire outros objetivos e interesses que não os da segurança pública, as medidas anunciadas na semana passada, que facilitam o comércio e afrouxam a fiscalização e o controle do porte de armas, são apresentadas como um meio de proteção do “povo” contra as muitas ameaças que o cercam. Inclusive como um meio de defesa contra as muitas investidas do “sistema” ante a impotência dos homens e mulheres de bem.

Nessa estrutura, Daniel Silveira desempenha um papel importante. Não ele, literalmente, mas o que ele representa: policial militar, um desconhecido até o episódio em que aparece rasgando a placa com o nome de Marielle Franco. Alçado a uma cadeira na Câmara dos Deputados, se torna uma das vozes, ruidosas, impacientes e combativas, que dão forma e direção aos afetos autoritários que ensejam a indignação das massas bolsonaristas contra “tudo o que está aí”.

Massa e Poder, Elias Canetti. Editora Companhia de Bolso, 624 páginas.

Em Massa e Poder, Elias Canetti emprega a ideia de “descarga” para se referir ao momento em que os indivíduos, massificados, superam suas diferenças e agem de forma unívoca e coordenada contra um inimigo comum. Na densidade da massa e na superação das distâncias, diz, os indivíduos vencem o medo da morte e da aniquilação, porque fortes e capazes de derrotar as forças que os coagem.

Quarta (17), em defesa do deputado, seus cúmplices acusaram a ditadura em curso do STF, a usurpar a liberdade do parlamentar. Mesmo que essa liberdade signifique, na prática, ameaçar a liberdade de outros, daqueles que são diferentes. No horizonte de expectativas do fascismo, e do bolsonarismo, está não apenas a sobrevivência dos iguais, mas o sonho de um poder irrestrito. Inclusive, o poder de destruir nossa pálida experiência de democracia.


Para ir além

Precisamos parar de subestimar Bolsonaro

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