A pandemia colocou em marcha a política genocida do governo

A condução deliberada de uma política que sabota, abertamente, medidas que podem salvar vidas, com o propósito de criar um ambiente de instabilidade política e fragilidade social, é uma prática genocida. E seus perpetradores não merecem ser chamados por outro nome, que não o de genocidas

No domingo (14), milhares de brasileiras e brasileiros entraram em seus carros e foram às ruas manifestar seu apoio ao presidente Jair Bolsonaro, e protestar, uma vez mais, contra as medidas de combate à pandemia. Não bastasse a ostentação da insensibilidade e da indiferença à morte de outras milhares de pessoas – quase 280 mil no final de semana –, há relatos de crueldades que ultrapassam o limite do abjeto.

Em algumas cidades, as carreatas estacionaram em frente a hospitais, perturbando profissionais, pacientes e familiares com buzinaços. Em Vitória, capital do Espírito Santo, manifestantes levarem seu protesto barulhento contra as restrições adotadas pelo governador Renato Casagrande, à casa de sua mãe, uma idosa de 88 anos que padece de diversas comorbidades.

No mesmo dia, em Brasília, a médica cardiologista Ludhmilla Hajjar se reunia com o presidente, um de seus filhos – o deputado federal Eduardo Bolsonaro – e outros membros do governo. Cotada para substituir o ainda ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello – também presente ao encontro –, ela não precisou defender seu currículo ou apresentar um esboço de suas ações caso aceitasse o ministério.

Eduardo Bolsonaro participou de reunião com médica cardiologista Ludhmilla Hajjar: preocupação com aborto e porte de armas. Crédito da foto: Câmara Federal.

Na “sabatina” a que foi submetida pelo deputado Bolsonaro, a médica teve de responder o que pensava sobre aborto e porte de armas. Não sobre suas estratégias para tentar frear a pandemia, mas sobre aborto e armas. O pai, por sua vez, foi claro: nada de lockdown no Nordeste, para não “foder” com as chances de reeleição por lá.

Exceção, parece, à própria Ludhmilla, a prioridade dos demais não era quantas vidas o governo pode salvar, mas quantas ainda precisaremos perder para que o projeto de poder da família Bolsonaro e seus asseclas não seja comprometido. Há quem argumente, com razão, que a essas alturas perdemos o direito à inocência, e que a cardiologista deveria supor, pelo menos, o que a esperava quando aceitou ser recebida pelo presidente.

O pressuposto vale, igualmente, para as cidadãs e cidadãos que participaram das manifestações de domingo. Nenhum deles ignora a política de morte conduzida pelo governo. E, ao o apoiarem, aceitam sua cumplicidade na gestão da barbárie, indiferentes e insensíveis não apenas aos quase 300 mil cadáveres, e aos sobreviventes que choram suas perdas, mas à tragédia social e o caos econômico agravados pela pandemia e a inércia criminosa do presidente. 

Um histórico de sabotagens

Para Jair Bolsonaro, lockdown no Nordeste iria “foder” as chances de reeleição dele na região. Crédito da foto: EBC.

Desde a “gripezinha”, são inúmeros os exemplos do negacionismo de Bolsonaro. Ele já chamou de “histeria” e “fantasia” a preocupação com o avanço da doença; sugeriu cessarmos com o “mimimi”; perguntou até quando pretendíamos chorar nossos mortos; avisou que não era coveiro; mandou que deixássemos de ser um “país de maricas”; que fossemos comprar vacina “na casa da sua mãe”; e já anunciou o “finalzinho da pandemia” meia dúzia de vezes.

O boicote não foi apenas discursivo. O presidente incentivou e participou de aglomerações; o governo estimulou, produziu e disseminou o uso de medicamentos ineficazes; falou e agiu contra o distanciamento social; espalhou mentiras sobre a vacina e o uso de máscaras. Quando estourou a crise em Manaus, em janeiro, o Ministério da Saúde montou e financiou uma força-tarefa para atuar a favor do “tratamento precoce”.

Em reportagem de fevereiro da revista Piauí, a jornalista Malu Gaspar refaz os passos do presidente para, nos bastidores e em público, sabotar a vacina que agora o governo alega ser a “nossa arma”, divulgando, nas redes sociais, uma versão miliciana do Zé Gotinha. Em meados do ano passado, o governo recebeu ofertas do Butantan e da Pfizer para a aquisição de milhões de doses de suas vacinas. As propostas sequer foram respondidas.

Eduardo Pazuello foi substituído no Ministério da Saúde após o país alcançar a marca de 280 mil mortos por Covid. Crédito da foto: José Dias/PR.

A Pfizer voltou a tentar uma negociação em setembro, mas só em janeiro desse ano o governo a respondeu, negando a compra. O caso do Butantan é ainda mais grave, porque o Executivo se recusou a firmar uma parceria com o instituto paulista, alegando que não pagaria, com “seu dinheiro”, pela “vacina chinesa”, para não prestigiar seu desafeto político, o ex-bolsonarista João Doria.

O recuo veio com a pressão do número de mortos, de governadores e prefeitos, também eles abertamente sabotados pelo presidente, que entre outras coisas, agiu para barrar um projeto de lei que autorizava os governos estaduais e municipais a negociarem, diretamente com laboratórios, a compra de vacinas.

Cumplicidade e responsabilidade ética

Nada disso era desconhecido dos que saíram às ruas para buzinar em apoio ao genocídio em curso no Brasil. Exagero? Não. Ao propor analogias possíveis entre as políticas de extermínio do Estado nazista alemão, nos anos de 1930, e a “doutrina de Segurança Nacional” da última ditadura argentina, o sociólogo Daniel Feierstein defende, de maneira pertinente, o genocídio como uma “prática social”.

Seu sentido, argumenta, reside principalmente na destruição do “poder social e da identidade existencial” dos grupos vitimados. O fim último desse processo, é a reorganização da vida social, com fins a legitimar ou simplesmente reproduzir, criando as condições para tal, um projeto político autoritário. Nessa perspectiva, a definição do que é uma “prática genocida” extrapola o aniquilamento físico baseado, por exemplo, em critérios étnicos, como no caso da Alemanha nazista.

A condução deliberada de uma política que sabota, abertamente, medidas que podem salvar vidas, com o propósito de criar um ambiente de instabilidade política e fragilidade social, isso a que assistimos desde o ano passado, é uma prática genocida. E seus perpetradores não merecem ser chamados por outro nome, que não o de genocidas.

Mas a continuidade e eficácia dessas práticas carece de uma base de apoio social disposta não apenas a defendê-las, mas a validá-las como legítima, como o fizeram os que protestaram, motorizados, no domingo. Hannah Arendt afirmou, sobre o burocrata nazista Adolf Eichman, responsável pela logística dos trens que levavam os judeus aos campos de extermínio, que ele incarnava, exemplarmente, o que ela definiu como “banalização do mal”.

Hannah Arendt: “banalização do mal”. Crédito da foto: arquivo.

De acordo com a filósofa alemã, Eichman era o tipo de pessoa comum que, por obediência cega aos superiores, a uma ideologia, ou a ambas, aceitou assumir tarefas terríveis sem medir – na verdade, escolhendo ignorar – as consequências de cada ato, de cada assinatura sua em um pedaço de papel. Um mecanismo que, disseminado socialmente, ajuda a entender o mecanismo pelo qual tantas e tantos normalizaram o massacre judeu.

O argumento de Arendt, pertinente, tangencia, no entanto, um dado fundamental: se Eichman não foi responsável direto pelos crimes de que foi um facilitador, como um especialista em logística, isso não diminui sua responsabilidade ética: não havia como ignorar as mortes, em escala industrial, resultado de sua adesão burocrática a um projeto de extermínio. Todo genocida tem seus cúmplices. No domingo, Bolsonaro viu os seus ganharem as ruas.


Para ir além

Nas redes virtuais, o bolsonarismo produz mortes reais

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