Nas redes virtuais, o bolsonarismo produz mortes reais

A pós-verdade apela para aspectos emocionais de uma narrativa de fundo realista, exagerando, adulterando ou violentando seus conteúdos e significados. Bolsonaro é pródigo em produzi-las, usando a mentira como estratégia de poder

Quarta-feira (3), o Brasil bateu um recorde trágico: 1.910 pessoas morreram, vítimas da pandemia que há um ano assola e amedronta o mundo. Com o número de óbitos chegando aos 260 mil, apenas 3,3% da população vacinada, e os sistemas de saúde à beira do colapso, ou já colapsados, no final da semana passada governadores decretaram o lockdown, ou algo próximo a ele, entre outras coisas, suspendendo aulas presenciais e a abertura de atividades não essenciais.

Quarta, Bolsonaro se pronunciou a respeito. Como de costume, falou aos seus seguidores, sem máscara, e acusou governadores e veículos de comunicação de aterrorizarem a população. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, de ‘fique em casa’. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?”

O “lamentamos” no meio da frase, é só retórica vazia mesmo. Desnecessário dizer que, talvez, Bolsonaro lamente de verdade que o filho, o senador Flávio Bolsonaro, tenha comprado, justo agora, uma mansão em Brasília por módicos R$ 6 milhões, temendo que uma eventual repercussão negativa prejudique seus negócios com o Centrão.

As mortes, os enfermos que esperam nas filas de UTIs superlotadas, os sobreviventes que carregarão sequelas talvez pela vida inteira, uma campanha de vacinação emperrada pela incompetência de um general alçado ao cargo de ministro da Saúde, a economia em frangalhos, os milhões de desempregados…

Bolsonaro não lamenta nada disso, porque não lhe diz respeito que pessoas estejam morrendo, de fome, depressão ou sacrificadas por uma tragédia que poderia ser minimizada se o governo agisse nesse sentido.

Flávio Bolsonaro comprou uma mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Crédito da foto: Alerj.

Apesar disso, o apoio ao governo nas redes sociais segue não apenas estável. A impressão é que cada fala, ou medida que se poderia chamar “impopular” em outro contexto, gera na militância virtual efeito contrário, produzindo um engajamento ainda mais combativo e raivoso. E não falo de robôs, mas de gente comum, como você e eu, à frente de suas telas e teclados, legitimando e reproduzindo o negacionismo presidencial.

Desde o ano passado, analistas sugerem que Bolsonaro fez a opção pelo seu projeto autoritário, em detrimento das medidas de combate à pandemia. Em outras palavras, combater os efeitos da Covid-19 e tentar frear o número de óbitos, representava um risco que ele não pretendia, e não pretende, correr porque isso implicaria, basicamente, governar.

E governar nunca esteve nos planos. Nesse sentido, a mobilização das suas redes de apoio é fundamental, e ela depende, em larga medida, de atacar poderes e instituições, transformando-os em inimigos, e desacreditar, mais que apenas as medidas de prevenção e combate, a própria extensão da pandemia, se não colocando em dúvida sua existência – “é só uma gripezinha” já não se sustenta –, pelo menos seu potencial devastador.

Como em toda ação coordenada, diariamente, no Facebook e no Twitter, o batalhão de militantes bolsonaristas repete invariavelmente as mesmas perguntas (“por quê a mídia insiste em falar apenas dos que morreram e silencia sobre o número de sobreviventes?” ou “só se morre de covid agora?”) e comentários de que são emblemáticos aqueles “furos” que, direto dos plantões de notícias do WhatsApp, provam que as vacinas já estão matando mais, mundo afora, que o próprio vírus.

Pós-verdade e negacionismo

Essas manifestações têm em comum, além do negacionismo, repercutirem, distorcendo e alterando seus sentidos, informações factuais. É a pós-verdade, que se diferencia das fake news em uma característica, principalmente: estas não têm necessidade de apresentar fatos verídicos em uma notícia – lembram da mamadeira de piroca e do kit gay na campanha de 2018?

Para Jair Bolsonaro, a pandemia não passava de uma “gripezinha”. Crédito da foto: Agência Brasil.

A pós-verdade, por outro lado, apela para aspectos emocionais de uma narrativa de fundo realista, exagerando, adulterando ou violentando seus conteúdos e significados. É o caso da ameaça da “ideologia de gênero”, da doutrinação nas escolas, do fantasma do comunismo e do famigerado Foro de São Paulo.

Bolsonaro é particularmente generoso em produzi-las. A cloroquina é um remédio eficaz na prevenção e tratamento da malária e de algumas doenças autoimunes; o presidente incentiva desde o começo da pandemia seu uso no “tratamento precoce” ao Sars-CoV2, contrariando pesquisas científicas e recomendações médicas.

Em abril, o STF decidiu que os estados têm autonomia para adotar medidas de prevenção e combate ao coronavírus, uma decisão que nunca eximiu o governo federal das suas responsabilidades. Ele poderia (e deveria), por exemplo, desenhar e coordenar diretrizes de isolamento a serem seguidas nacionalmente, além de executar e monitorar políticas e campanhas de prevenção, em parceria com as secretarias estaduais da Saúde.

Apesar dos inúmeros desmentidos, ainda impera nas redes a versão mentirosa de Bolsonaro de que sua inércia irresponsável frente à pandemia, sua indiferença pelos milhares de mortos, é culpa do Supremo Tribunal Federal.

Não há novidade na falsificação e distorção, com fins políticos, de fatos e informações. O novo é que, hoje, essas narrativas são turbinadas pelas redes sociais, onde o crescimento é viral e o efeito do compartilhamento massivo de boatos e mentiras, exponencialmente explosivo. Além disso, o algoritmo das redes faz com que usuários tendam a receber informações que corroboram seu ponto de vista, formando verdadeiras “bolhas ideológicas”.

Roberto Simanowski, filósofo alemão autor de Metáforas do Digital. Crédito da foto: divulgação.

Elas seguem uma temporalidade nova, diferente da que pauta as mídias noticiosas, mesmo depois da migração para a internet. Como mostra o filósofo alemão Roberto Simanowski em Metáforas do Digital, algoritmos não sabem ler nas entreli­nhas nem distinguir nudez de pornografia, e contex­tualização demais sobrecarrega a lógica da replicação automática de informações.

Não por acaso, na cruzada de Bolsonaro e do bolsonarismo contra o “sistema”, os veículos de comunicação foram eleitos inimigos preferenciais. A opção do presidente por se comunicar diretamente com seus seguidores nas suas lives semanais ou pelo Twitter, segue uma lógica clara e danosa: mesmo o melhor argumento deve sucumbir ante o número de likes e compartilhamentos.

Em termos políticos, portanto, a pós-verdade cumpre uma função importantíssimo no projeto de poder de Bolsonaro e seus sequazes: desorientar o leitor no seu processo de formulação de conhecimento e de formação de opinião, mobilizando afetos em prol de suas pretensões políticas autoritárias. Trata-se de assumir que qualquer noção de verdade tem uma importância cada vez mais secundária; o enganosamente simples prevalece sobre o honestamente complexo.

Mas à medida que esse comportamento se espalha e se consolida, os próprios fundamentos da democracia estão em risco. E em meio a uma pandemia, ele serve também para encobrir e, no limite, justificar, a omissão do governo, às custas de milhares de vidas. Nesse contexto, a estratégia de Bolsonaro e do bolsonarismo não é apenas mentirosa e antidemocrática, mas criminosa.


Para ir além

Bolsonarismo, a nova face do fascismo brasileiro

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima