Vírus ameaçou até o pão de cada dia. Mas a vila venceu

Na ocupação Tiradentes, que já superou despejos e um aterro, projeto educacional garantiu renda para famílias e futuro para as crianças

Carla de Almeida caminha pela Tiradentes com orgulho. Enquanto guia as visitas pela ocupação, seus passos levantam poeira do chão de terra. “Quando cheguei aqui não tinha nada”, ela diz. O início da história foi em abril de 2015: primeiro com barracos eram de lona, depois de madeirite, as pessoas fazendo suas casas e construindo sua comunidade. “Hoje estamos quase uma vila.”

O caminho para o Projeto – a menina dos olhos da comunidade – passa por todo tipo de ruas, umas mais largas, outras mais estreitas, todas com chão de terra. No horizonte, a 500 metros da ocupação, o segundo maior aterro sanitário de Curitiba forma uma montanha de lixo.

As centenas de pessoas que começaram a ocupação sabem o que foi a batalha para evitar o despejo; a luta era para conseguir que o espaço pertencesse a quem precisava ter onde morar, e não ao lixão, que ameaçava se expandir para aqueles lados. Nas várias tentativas de reintegração, muita gente acabou abandonando a vila que se formava no CIC. Mas houve quem ficasse, e outras famílias chegaram depois. Nascia a comunidade.

Amigos são bem-vindos

Carla de Almeida, coordenadora do projeto. Foto: Giorgia Prates/Plural

Viver na periferia tem diversas desvantagens. Para as crianças, principalmente, os danos podem ser irreversíveis. Coisas que em outros bairros podem ser simples, como ir para a escola, se transformam em problemas muitas vezes insolúveis.

Em tempos de aula presencial, por exemplo, as crianças caminham quase uma hora para chegar até a escola. “Não tem transporte escolar, o ponto de ônibus mais próximo fica a quase um quilômetro da comunidade”, conta Carla. “A renda das famílias é pouca ou nenhuma para pagar quase R$10 reais de ônibus todo dia. As mães ficam preocupadas porque a distância é muita. Em dias de chuva forte, a opção é juntar crianças em grupos e rachar o Uber quando dá. É um desafio pra comunidade inteira”.

Carla conta isso enquanto para em frente a uma casa de porta azul que tem tudo a ver com a história. É o caminho que a comunidade achou para melhorar a educação das crianças.

Na entrada, há um aviso: “Amigos são bem-vindos aqui”. Carla, que coordena o Projeto Tiradentes, abre as janelas e a luz do sol vai iluminando o espaço, revelando a biblioteca no canto esquerda da sala, o quadro-negro, as atividades das crianças penduradas no teto, as carteiras. Ilumina também o olhar de Carla ao dizer que, com a chegada do projeto, as crianças não ficavam mais ociosas e passaram a receber mais estímulos e diversidade na aprendizagem.

O projeto nasceu em 2019 e funciona como um contraturno escolar que atende 51 crianças diariamente. Uma equipe formada por quatro mães da comunidade, voluntariamente, se organiza para atender os alunos com atividades de dança, teatro, artesanatos e mais. Para fazer tudo funcionar, foi preciso o apoio de amigos, como o “Sopão Curitiba”, que oferece a merenda.

“As mães e os pais não pagam um centavo por isso. As crianças passam o tempo livre aprendendo. Tudo para que elas possam aprender algo novo, para levar pra vida delas e pra facilitar a vida das mães que estão trabalhando.”

Pandemia: mais um desafio

A pandemia, em março do ano passado, criou mais um desafio para que ninguém fosse deixado para trás. O suporte diante das mudanças repentinas veio através de ações conjuntas entre Carla, as pessoas na comunidade e a diretora da escola local, o Colégio Estadual Eurides Brandão.

Enquanto o país inteiro trocava os quadros pelas telas digitais, a ocupação teve que dar um jeito para que as crianças conseguissem acompanhar as aulas e para que mães não tivessem, no segundo semestre do ano, o benefício do bolsa-família bloqueado por problemas na frequência escolar.

Diante de situações extremas como falta de alimento, dificuldades para garantir a renda mínima familiar e o rodízio de água (que impossibilita a higienização indicada pelos setores de saúde), as pessoas ainda precisam arcar com a improbabilidade de conseguir comprar um computador e de custear serviços de Internet. As crianças não conseguiam entregar as atividades e isso fazia com que elas levassem falta. Muitas mães, criando os filhos sozinhas, tiveram seu benefício bloqueado.

Lilian Feliz, moradora da comunidade, mãe de dois filhos, recebia R$ 1.000 de auxílio. Como a filha mais velha sofreu um acidente doméstico e teve sérias queimaduras pelo corpo, não conseguiu dar andamento às atividades e a renda de Lílian passou a ser de R$ 292 por mês.

No caminho de volta para a casa de Carla, ela conta que a solução veio de uma parceria com a diretora Sandra do Colégio Estadual Eurides Brandão. “A diretora trazia pra mim as atividades e quinze dias depois vinha buscar. As crianças ficavam 15 dias com as atividades, faziam e me entregavam. Todas recebiam os exercícios e faziam com a ajuda dos pais”, diz ela.

As que tinham Internet em casa conseguiam apoio da escola. O número de reprovados foi mínimo. “Nossa, foi bem pouco mesmo. A comunidade conseguiu fazer com que as crianças não perdessem o ano letivo e fizessem todas as atividades necessárias pra passar de ano. Quando as crianças precisam fazer pesquisa, eu empresto o meu celular e elas acessam a Internet lá do projeto. A gente que cuida dos nossos.”

A cada 15 dias, famílias entregam atividades para Carla, que repassa para a escola. Foto: Giorgia Prates/Plural

Sentada na mesa do quintal onde as crianças buscam as atividades, Carla diz que a parceria entre a escola e a comunidade “deu muito certo” e que agora o grande receio é a volta às aulas presenciais. É que o governo diz que haverá medidas de proteção, mas a periferia sabe que quase nunca recebe o tratamento certo por parte dos governantes.

“Se em geral já falta material escolar, uniforme, alimentos nas escolas, imagina a segurança das crianças agora. Estamos apreensivos. Se os professores não estão nos grupos pra vacinação, como vai voltar às aulas? Muito menos as crianças sem vacina. O risco continua como no início da pandemia. E ainda o governo pode usar o benefício da bolsa família como uma maneira de as mães se sentirem obrigadas a levar seus filhos pra  escola.”

A conversa acaba com Carla olhando para o horizonte como quem já visualiza alternativas para o que está por vir. Afinal, ela conhece como poucos a realidade de uma comunidade como a sua: é a vila que cuida dos seus.

Sala tem até biblioteca. Foto: Giorgia Prates/Plural

“Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”. 

Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Vírus ameaçou até o pão de cada dia. Mas a vila venceu”

  1. Matéria linda sobre o espírito solidário. Parece que no Brasil só os humildes entendem a força deste conceito. Como podemos aceitar que crianças não tenham o mínimo? Um país que retro alimenta a miséria para seguir o esquema de exploração e concentração de rendas. Uma desgraça!

  2. Moro em Curitiba há 8 anos e não conhecia a ocupação Tiradentes nem a comunidade, obrigada por divulgar a luta dessas pessoas e trazer o nosso olhar para mais essa parcela da sociedade que sofre com a desigualdade no nosso país. Precisamos entender melhor a realidade próxima para poder agir sobre ela, nem que seja pelo voto em quem poderá trazer mais dignidade e recursos para essa população.

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