O julgamento no STF sobre a descriminalização do porte de drogas

Entenda como cada ministro do STF votou na ação que pode liberar o porte de pequenas quantidades de drogas

Muito se tem comentado sobre a criminalização (ou descriminalização) do porte de drogas ilícitas para uso próprio. Na contemporaneidade, o tema vincula-se ao modelo liberal econômico que prevalece no mundo, também às políticas públicas brasileiras.

Alguns acreditam que a comercialização de maconha e outras drogas (para as mais diversas finalidades: medicinal, social, industrial, alimentícia etc.) é, provavelmente, a última grande fronteira de um sistema econômico pautado na produção e no consumo em larga escala, que não mais se sustenta frente à crise ambiental global. Portanto, o mercado das drogas seria uma possibilidade derradeira de expansão capitalista.

O debate é complexo. A relação da humanidade com substâncias alteradoras da consciência é milenar. Do uso terapêutico e alimentar ao ritualístico, do uso social ao industrial, drogas sempre estiveram presentes no desenvolvimento da humanidade.

Historicamente, as drogas remetem a práticas religiosas, quando o cerne de inúmeros cultos era o estado alterado de consciência. Na tradição cristã, o vinho representa a própria entidade. Na antiguidade, os santos sacramentos continham substâncias psicoativas como o peiote, o vinho ou certos fungos. Durante a inquisição, mulheres foram perseguidas por curandeirismo, a acusação de “bruxaria” envolvia possuir poderes medicinais e obstétricos mágicos potencializados pelo uso terapêutico das ervas, plantas e substâncias psicotrópicas.

Ao longo do tempo, o Direito classificou o que é festa, o que é medicina, o que é magia e o que é religião. Na segunda metade do século passado, consolidou-se um comando global de guerra às drogas. Sob a justificativa de pretensa proteção à saúde e à segurança pública, criou-se um aparato de controle social violento que tem grupos (periféricos) indesejados como destinatários. Apesar das medidas repressivas, a produção, a circulação e o consumo de drogas ilícitas no mundo não diminuiu. Opostamente, o aparato de guerra às drogas criado gerou violência, encarceramento e o genocídios de populações vulnerabilizadas. Especula-se que em um futuro próximo a guerra às drogas será considerada crime contra a humanidade.

Hoje, no Brasil, admite-se o uso excepcional de drogas proscritas para fins medicinais, científicos ou estritamente ritualísticos-religiosos, mediante fiscalização. Mas, o paradigma da abstinência adotado no país não impediu o aumento do comércio e uso de drogas, especialmente entre grupos mais vulneráveis, ao contrário, somente agravou os problemas relacionados ao uso problemático de substâncias, dado que a clandestinidade aumenta eventuais riscos atrelados ao consumo de drogas e a criminalização estigmatiza os usuários, afastando-os do sistema de saúde.

A questão está sendo revista neste momento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa a constitucionalidade da criminalização da posse de maconha para uso pessoal.

Em termos jurídicos, a Corte avalia – no Recurso Extraordinário (RE) n. 635659, com repercussão geral (Tema 506) -, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, a validade do art. 28 da Lei de Drogas (a partir daqui denominada “LD”), ou seja, se a criminalização da posse de maconha (embora as problemáticas envolvam todas as drogas ilícitas, a Corte restringiu a votação à maconha) viola a intimidade, a privacidade e a autodeterminação da pessoa, na medida em que não cabe ao Estado criminalizar condutas que só digam respeito ao indivíduo e não lesionem terceiros. Se a Corte entender pela inconstitucionalidade, a conduta deixará de ser crime, o que não significa torná-la lícita. A ação de origem tem como objeto a apreensão de 3 gramas de maconha em posse de um presidiário, dentro do sistema prisional do estado de São Paulo.

Discussões sobre a legitimidade e as consequências da guerra às drogas, como o encarceramento em massa também permeiam o debate. Para além da criminalização, a Corte analisa a necessidade de fixação de critérios objetivos que permitam diferenciar a conduta do usuário da conduta do traficante, visando reduzir as consequências brutais das lacunas da LD.

Para situar o debate, uma breve análise da política brasileira de drogas.

A legislação anterior (que vigorou entre 1976 e 2006), punia o usuário com prisão de 6 meses a 2 anos. A atual LD, sancionada em 2006 pelo presidente Lula, manteve a criminalização, mas extinguiu a pena de prisão para o usuário, impondo medidas (pretensamente) educativas de: advertência, serviços à comunidade ou frequência em cursos. O fim da pena de prisão para o usuário veio acompanhada de um aumento significativo na pena mínima prevista para o tráfico de drogas, causando um impacto carcerário estrondoso.

Aliada ao aumento de pena, a falta de definição de um critério objetivo de diferenciação entre a posse de drogas para uso pessoal e o tráfico também se revelaram um problema. Na prática, as duas condutas podem ser muito parecidas, diferenciando-se apenas pela intenção do indivíduo: (1) se pretendia consumir a droga é usuário, (2) se a droga se destinava a terceiros está configurado o tráfico. A grande questão é a impossibilidade de demonstrar a intenção do indivíduo.

Como solução, para definir se a conduta é uso pessoal ou tráfico, a LD indica que o juiz deve analisar a quantidade e a natureza da droga, o local do fato e as condições da ação, as circunstâncias pessoais e sociais do agente, bem como sua conduta e antecedentes.

Em um país atravessado pela guerra às drogas, estruturalmente racista, classista e patriarcal, a formação de critérios subjetivos que dizem mais sobre o agente e seu contexto social do que sobre o fato em si, decorre na legalização do racismo e classismo que orientam o Sistema de Justiça Criminal.

Na falta de pena de prisão para usuários, estes passaram a ser presos como traficantes, com uma pena maior. Engana-se quem pensa que se a pessoa foi condenada por tráfico é porque ficou provada a traficância. Na maioria dos casos, as condenações baseiam-se apenas na palavra dos policiais que fizeram a prisão, pois na lógica que domina o processo penal no Brasil, compete ao acusado provar que a droga destinava-se ao seu uso pessoal e não a terceiros, uma prova quase impossível. Nesse contexto, abundam as condenações por tráfico, embora na maioria dos casos não haja prova segura da traficância. Como não há um critério quantitativo para distinguir uso e tráfico e o standard probatório nestes casos é baixíssimo, a decisão fica a cargo dos operadores do sistema de justiça a partir de critérios puramente subjetivos.

Contraditoriamente, embora a LD tenha sido sancionada por um governo progressista, a norma consolidou a guerra às drogas enquanto carro-chefe do encarceramento em massa, do genocídio e do controle violento da população preta, pobre e periférica no país. Por tais razões, o julgamento do STF pode significar grande avanço em termos de proteção de direitos humanos e é aguardado com ansiedade pelo campo progressista e demonizado por setores conservadores da sociedade.

Trata-se de um julgamento colegiado, mas a atenção pública individualiza-se nos votos dos ministros da Corte. Opostamente ao conteúdo do tradicional princípio da impessoalidade, depois que os julgamentos passaram a ser transmitidos ao vivo pela TV Justiça, alavancada pelo caso Lava Jato e pelo crescente protagonismo do Poder Judiciário, o espírito do tempo traz uma tendência de personificação do julgador, evidenciada pelo mais novo sucesso do mundo dos podcasts: “Alexandre”, série jornalística pautada na vida profissional e pessoal do Ministro do STF Alexandre de Moraes.

O julgamento em curso teve, até o momento, cinco votos pela inconstitucionalidade do artigo 28, LD, com relação à maconha, ou seja, cinco votos pela descriminalização do porte de maconha para uso próprio, e um voto contrário. A Corte também formou maioria para definir critérios objetivos de distinção entre uso e tráfico. Veja abaixo um histórico do julgamento e como votou cada um dos ministros até o momento.

Gilmar Mendes

O processo chegou ao STF em 2011, mas o julgamento começou apenas em 2015. O Relator – Min. Gilmar Mendes foi o primeiro a votar, em agosto daquele ano.

Em seu voto, Mendes reconheceu a inconstitucionalidade do art. 28, LD, por violação a direitos fundamentais como a intimidade, privacidade e autodeterminação do indivíduo, bem como a desproporcionalidade de criminalizar uma conduta que não extrapola a esfera individual e não lesa terceiros. Destacou que a decisão pela criminalização da posse de drogas não foi baseada em dados e estudos, embora à época já houvesse farta literatura científica contra indicando a medida, referenciando os efeitos deletérios da atual política de drogas.

O voto não foi pela legalização da conduta, mas pela descriminalização, sendo proposta sua conversão em ilícito administrativo.

Talvez o ponto mais importante do voto de Mendes tenha sido o reconhecimento de que, embora o caso concreto trate de maconha, o debate da inconstitucionalidade não pode ser restrito a ela, dado que a premissa de violação à intimidade e privacidade do indivíduo aplica-se à criminalização do uso de todas as drogas. Todos os votos posteriores se restringiram à maconha, o que do ponto de vista jurídico é uma aberração e do ponto de vista político demonstra a covardia da Corte frente à opinião pública. Embora a maconha seja a droga ilícita mais usada no Brasil e no mundo, o grupo mais vulnerabilizado é o de usuários de crack, os quais seguirão criminalizados.

Infelizmente, com a retomada em 2023, na busca de um consenso, o Min. Gilmar Mendes voltou atrás e restringiu seu voto ao porte de maconha, acompanhando os demais ministros.

Edson Fachin

Reconhecendo todas as mazelas sociais provocadas pela política de drogas, o Min. Fachin votou pela declaração de inconstitucionalidade com relação apenas à maconha, devendo a conduta passar a ser sancionada na esfera administrativa. Ainda, pontuou a necessidade de que o legislativo estipule parâmetros quantitativos de diferenciação entre posse para uso e para tráfico.

Roberto Barroso

Seguindo a esteira de proteção de direitos fundamentais dos votos anteriores, o Min. Barroso também votou pela inconstitucionalidade com relação à posse pessoal de maconha.

Barroso foi o primeiro a de fato propor um critério objetivo que permita a diferenciação entre tráfico e uso. Para tanto, sugeriu a adoção do parâmetro português que não considera tráfico a posse de até 25g de maconha e/ou o cultivo de até seis plantas fêmeas – por serem elas as que produzem a substância psicoativa da planta.

Destaca-se que o critério proposto é relativo, eis que o juiz pode verificar, no caso concreto, que quantidades maiores se destinam a uso ou que quantidades menores são voltadas ao tráfico, desde que existam provas nesse sentido. A fixação de um “critério objetivo relativo” é a maior armadilha do julgamento até agora, podendo, na prática, abrir amplo espaço de discricionariedade, tal qual ocorre na lei atual. Ideal seria que posse sempre fosse presumida para uso, cabendo ao Estado provar o tráfico, em respeito à presunção de inocência.

Alexandre de Moraes

Após os votos de Mendes, Fachin e Barroso, o julgamento foi interrompido por pedido de vistas do Min. Teori Zavascki, que segurou o processo até janeiro de 2017, quando morreu em um acidente aéreo. Na época os pedidos de vista não tinham prazo. Seu sucessor foi o Min. Alexandre de Moraes, que liberou seu voto em agosto de 2018, mas como a retomada do julgamento dependia de decisão da presidência da Corte, o caso ficou parado até este ano.

Enquanto presidiram o STF, os ministros Dias Toffoli (2018/2020) e Luiz Fux (2020/2023), ignoraram a questão e não pautaram o caso. Em maio de 2023, a atual presidente – Min. Rosa Weber, às vésperas da aposentadoria compulsória, em um ato de coragem, retomou o julgamento.

Com um passado conservador e bastante questionável em questões criminais, o Min. Alexandre de Moraes apresentou um voto denso e baseado em exaustiva pesquisa empírica que destrinchou a desigualdade social e racial operacionalizada a partir da LD. Desta forma, reconheceu a inconstitucionalidade restrita à maconha e sugeriu a adoção de um critério objetivo, ainda a ser definido, que pode variar entre 25g e 60g de maconha ou 6 plantas fêmeas. Nos termos do voto de Moraes, conforme pontuado por Barroso, a aplicação do critério é relativa.

Cristiano Zanin

O novo ministro do STF, foi o primeiro a votar em sentido contrário à descriminalização. Zanin defendeu a constitucionalidade e a função da criminalização do usuário enquanto instrumento de segurança jurídica, dado que esta seria a única forma de diferenciação entre uso e tráfico, ignorando as propostas de outros ministros e experiências internacionais e farta literatura sobre o tema. Alegou ainda que a descriminalização da posse para uso pode agravar problemas de saúde pública, mesmo sem apresentar nenhum dado que evidencie isso. Seu voto surpreendeu parte da esquerda, mas já era esperado nos bastidores.

Embora tenha sido contrário à descriminalização, Zanin também votou pela necessidade de fixação de critérios objetivos para diferenciação entre os delitos.

André Mendonça

Como esperado, André Mendonça, o ministro terrivelmente evangélico, alegou que a questão era complexa demais e, embora o julgamento venha se arrastando há mais de oito anos, pediu vistas – procedimento que hoje tem prazo: 90 dias. A grande expectativa é que seu voto seja contrário à descriminalização e o mais conservador até o momento.

Rosa Weber

Dada a relevância do tema, a Min. Rosa Weber não apenas trouxe o caso para julgamento, mas antecipou seu voto na sessão de 24/08/2023, consolidando seu compromisso de votar antes da aposentadoria.

Em um denso voto e bem fundamentado, Weber acompanhou os demais ministros, manifestando-se pela inconstitucionalidade da criminalização da posse para uso pessoal de maconha. Explicou que na sua compreensão a questão não deveria se restringir à maconha, mas abranger todas as drogas, entretanto, buscando uma decisão consensual, restringiu seu voto na esteira da manifestação de Gilmar Mendes.

O julgamento foi novamente suspenso na sessão do último dia 24 de agosto, diante do pedido de vista do ministro André Mendonça. A Corte, no entanto, está a um voto de formar maioria favorável à descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, e já atingiu consenso para determinar o estabelecimento de uma quantidade mínima de droga, a diferenciar a posse para uso do tráfico de drogas.

Com o crescente protagonismo do STF e dos ministros no cenário político nacional, a composição da Corte, bem como as recentes e futuras nomeações, têm ganhado o espaço público de debate e gerado discussões inflamadas.

Na história da República, passaram pela Corte 171 ministros, dos quais apenas três eram mulheres, todas brancas (Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber), e apenas um homem negro (Joaquim Barbosa). Embora as mulheres negras constituam o maior grupo populacional brasileiro, nunca houve uma mulher negra entre os onze ministros que compõem a Corte Suprema. Com a aposentadoria de Rosa Weber, a magistrada que pautou o julgamento espinhoso sobre o qual tratamos aqui, e a indicação de Flávio Dino para sua vaga, só restará uma mulher: a Ministra Cármen Lúcia.

Embora pessoas pretas, pobres e periféricas, em especial mulheres pertencentes a estes grupos, sejam as mais afetadas pela guerra às drogas, o futuro da questão vem sendo discutido sem a sua participação. A composição atual e pretérita da Corte reflete uma sociedade estruturalmente racista, classista e patriarcal, sendo urgente que critérios de raça e gênero passem a integrar a escolha de novos ministros. Opções de mulheres negras que preenchem os requisitos para tanto não faltam, o que tem faltado é o interesse político de nomeá-las.

O debate acerca da descriminalização do porte de maconha, como vem decidindo a Corte, é tema de saúde pública, e não de direito criminal. Para além da descriminalização, precisamos pensar em possibilidades de reparação histórica para as comunidades desigualmente afetadas pela política proibicionista. Também por esse viés, a nomeação de uma juíza negra para o STF teria sido medida representativa de extrema relevância, estreitamente alinhada aos princípios democráticos precipuamente salvaguardados pela Corte.

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