Raça, crime e punição: a sentença que desnudou o Judiciário

Decisão de juíza curitibana que cita raça de réu correu o país e chamou atenção para um problema que muitas vezes passa despercebido: nossa Justiça é racista?

Terça à noite, o celular de muitos curitibanos notificava a mesma mensagem: uma juíza havia condenado um homem citando sua “raça”. Pior do que isso: a cor da pele foi citada no trecho em que se decide pelo agravamento da pena imposta ao réu. Ou seja: ser negro teria sido um fator formalmente usado para deixar o homem preso por mais anos.

Não é de hoje que o racismo dos sistemas judiciais é tema de estudo: o número de encarcerados negros (e pobres) é proporcionalmente muito superior ao dos brancos, e existe uma evidente diferença de tratamento entre réus de diferentes origens. Mas isso ficar explícito na sentença é novidade.

Não à toa, o caso correu o WhatsApp de muita gente e na manhã seguinte já estava na tevê. No meio da tarde, a juíza pedia desculpas públicas e afirmava que tudo não passava de um mal-entendido – a essa altura, já estavam sendo abertas investigações administrativas para ver se era o caso de puni-la ou não.

Apesar da relevância, porém, o tema foi tratado como sempre: na base do sensacionalismo ou da superficialidade. O que está em jogo é fundamental: a igualdade dos brasileiros diante da lei, assegurada pela Constituição, e a confiabilidade de nosso Judiciário. Por isso, a história precisa ser contada com detalhes. É isso que o Plural faz a partir de agora.

Furtos e roubos

De janeiro de 2016 a julho de 2018, uma série de furtos e roubos aconteceu em praças centrais de Curitiba. Gente passando pela Tiradentes, Rui Barbosa e Carlos Gomes era abordada de vários jeitos. Você sabe como é: o sujeito finge que conhece o velhinho saindo do banco, se aproxima e dá um abraço de velho amigo. Sai com a carteira dele na mão. Ou então uma trombada de leve, um pedido de informação para distrair: e lá se vai o celular guardado no bolso.

Em junho de 2020, sete pessoas foram condenadas na 1ª Vara Criminal de Curitiba por envolvimento com esses crimes. Uma das sete sentenças foi a que causou indignação. Os policiais que investigaram o caso diziam que o réu, negro, era parte do grupo. Ajudava nas fugas e abordagens, ou pegava celulares.

A frase citando a “raça” do réu foi destacada pela advogada de defesa, Thayse Pozzobon, apenas nesta semana, e aparece na fundamentação da pena estabelecida. Diz a juíza: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”. Acusado de três crimes (participação em organização criminosa, roubo e furto), o réu foi condenado a 14 anos e dois meses de reclusão.

Inicialmente, a advogada associou o termo “em razão da sua raça” ao trecho anterior “seguramente integrante do grupo criminoso”. Ou seja, sendo negro, era evidente que o sujeito era criminoso. A acusação, no entanto, foi rebatida pela juíza em nota. Segundo ela, a expressão destacada se referia, na verdade, à frase seguinte “agia de forma extremamente discreta”. Ou seja: por ser negro, ele supostamente se destacaria no meio da população, sendo mais facilmente identificável, e por isso agia na retaguarda, discretamente. Uma afirmação que a magistrada afirma não ser racista.

Ambiguidade

De fato, há uma ambiguidade. Basta lembrar das aulas de português: “em razão da sua raça” é um adjunto adverbial de causa. “Como o adjunto está entre duas frases, ele pode se ligar à frase anterior ou à posterior. Esse é um problema na escrita que causa ambiguidade, já que permite uma dupla interpretação. Podemos entender que ‘seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça’ ou ‘agia de forma extremamente discreta (n)os delitos em razão da sua raça’”, afirma a professora, jornalista e consultora de língua portuguesa Ana Paula Mira.

“Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa”, afirmou em nota a magistrada que, em suas redes sociais, atribuiu o equívoco a dois erros de digitação – a vírgula depois de “raça” e a falta da letra “n” em “nos delitos”.

A gramática não salva

No entanto, “não há gramática que salve essa mulher de esbarrar numa possível prática de racismo”, diz Mira. O problema, em termos semânticos, acontece porque há – justamente – a menção à cor da pele do réu. “Tanto na primeira interpretação quanto na segunda, a expressão denota uso da raça como causa para uma explicação. Ou para explicar participação de grupo criminoso ou para explicar a ação no delito”, afirma a professora. É o fato de haver uma diferenciação, baseada na raça e usada como justificativa, que sustenta a afirmação de discriminação.

Não é só quem estuda a língua que diz isso. Quem estuda Direito também acha que a juíza errou, e feio. Para a defensora pública e coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, Rita Oliveira, a questão vai além do trecho destacado, abarcando um aspecto mais amplo da sentença.

O grupo emitiu um ofício ao Ministério Público, analisando a totalidade do texto jurídico: “Verificou-se que ela fez uma interpretação enviesada racialmente para identificar uma suposta dinâmica de participação deste cidadão nos eventos criminosos, em associação com outras pessoas. É sob essa perspectiva que ela utiliza o elemento racial para fazer essa valoração negativa”, afirma.

A defensora menciona uma outra parte da sentença que faz referência à cor da pele do réu, ao longo do depoimento de um dos policiais civis, envolvido na investigação do caso. Diz o trecho: “Relatou que o grupo tentava parecer e se identificar como pessoas com aparência comum da população. Que D. era um ‘senhorzinho’ com bigode. E. usava óculos e parecia mais intelectual, tentando parecer um professor, e algumas mulheres que se vestiam bem; Fugindo desse padrão, estava N., que era magro e negro, e de fácil identificação, e por isso acredita que ele possuía o encargo de despistar, estando sempre na cobertura”, afirma o trecho que classifica N., o réu, como fora do “padrão comum da população” por ser “magro e negro”.

Segundo Oliveira, a justificativa dada é coerente, mas não desnatura o crime de racismo. “Para poder fazer essa presunção de participação, faz um pré-julgamento de ‘extra normalidade’ do elemento negro no convívio social da população paranaense”, diz a defensora. A colocação, nesse caso, cria uma expressão que discrimina o indivíduo negro da sociedade. “É um pouco mais sofisticado do que está sendo veiculado na imprensa. Não é tão raso e automática a vinculação como está sendo colocada”, afirma ao concordar que a frase destacada tem um sentido dúbio.

“Como uma agente do Estado, que está proferindo um julgamento em nome do Estado, ela já deveria ter todo um modo de proceder que evitasse qualquer vinculação nesse sentido”, fala a defensora que destaca que as provas elencadas no processo também não justificam a vinculação feita pela magistrada.

“Você não pode classificar o sujeito, o indivíduo, o réu, pela cor da sua pele. Nesse país, a cada meia hora morre um jovem negro”, diz o presidente licenciado do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Consepir), e presidente do Instituto de Pesquisa Brasil e África, Saul Dorval da Silva. Ele avalia que a postura da magistrada, após o ocorrido, foi insatisfatória – uma vez que, em tese, as condenações da juíza ficam em suspeição, colocadas em dúvida. “Ela está em um cargo de extrema importância, que decide a vida das pessoas”, diz.

“Também não acho que ela quis dizer que ele cometeu o crime por ser negro (como a maioria acabou achando), mas compreendi que ela disse que ele se utilizou da condição de negro para delinquir. Fora essa ‘desumanização’, que mesmo nas entrelinhas, ficou meio clara pra mim. E a partir disso, aumentou a pena, o que é realmente estranho…”, disse ao Plural uma fonte do mundo jurídico que preferiu não se identificar.

Consequências

Foi com base na primeira interpretação levantada, que associa raça e criminalidade, e às manifestações de repúdio ao ocorrido de entidades como a OAB-PR e a Defensoria Pública do Paraná, que a Corregedoria Nacional de Justiça instaurou um pedido de providências. O ofício pede o esclarecimento dos fatos, e dá à Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná 30 dias para apurar o ocorrido.

No twitter, o advogado, professor e filósofo, Silvio Almeida, avalia que a solução para o caso é anular a sentença.

Em carta denúncia, o Movimento Negro Unificado Paraná (MNU – PR), levantou também a questão da presença de negros na magistratura brasileira: “Faz-se cada vez mais necessária a presença de magistrados negros e negras no sistema judiciário, que compreendam e se posicionem contra o racismo, combatendo assim mecanismos de opressão que se perpetuam institucionalmente”, afirma a carta que também pede a anulação da sentença.

De fato, a anulação poderá ser solicitada pela defesa do réu. Medidas administrativas e disciplinares também podem ser tomadas, caso a investigação apure que houve prática racista por parte da magistrada. Em termos criminais, o Movimento Negro também poderá pedir reparações morais pelos danos à coletividade: “Houve uma lesão de cunho moral à coletividade da população negra”, afirma Oliveira. Essa lesão ao coletivo é, justamente, o que caracteriza o crime de racismo. “Ao veicular esse tipo de manifestação em uma sentença estatal, ela está autorizando práticas da mesma ordem” completa a defensora.

“Não faz sentido [a cor da pele ser inserida] nem em um processo, nem no meio social das pessoas ou em um ambiente de trabalho, nem aonde seja: no colégio, na educação”, afirma Silva.

N. teve a segunda maior pena do grupo. Entre os sete acusados, ele foi um dos três condenados com penas acima de 13 anos de reclusão. Todos os réus poderão recorrer em liberdade.

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