O namorado que arruma cadáveres e outras histórias sobre a morte

Nem todo mundo tem os mesmos costumes quando se trata de cuidar dos mortos

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. O livro-reportagem de Larissa Nicolosi será publicado em capítulos nesta semana. Leia a primeira parte aqui. A segunda parte está aqui. A quarta está aqui.

Quando Emerson Romanel conheceu sua mulher, Andrea, resolveu fazer um teste: disse para ela que trabalhava higienizando os mortos, “cortando até a unha, se necessário”, no Cemitério Municipal São Francisco de Paula. A moça, firme e forte, continuou o relacionamento, mas com estranheza diante do trabalho pouco usual do paquera. O namoro deu certo e Emerson, que na época era, na verdade, atendente de famílias no Serviço Funerário Municipal, quase esqueceu de contar a verdade. Quando contou, ela deu aquele suspiro aliviado. “Era para ver se ela me amava mesmo”, conta ele, rindo.

Nem sempre “lidar com a morte” encontrou essa recepção pouco calorosa e os mortos, digamos, já foram muito bem aceitos na esfera pública. Talvez Andrea não ficasse tão assustada se o relacionamento com Emerson tivesse começado antes de Cristo, quando o corpo continuava sendo cuidado por uma motivação elementar: guardava uma alma imortal. As noções de morte dos indivíduos mudam conforme as crenças do momento e as formas de se relacionar com os outros, além de fatores externos, como surtos de doenças que assolam a população.

O historiador cubano-americano Carlos Eire, estudioso de como se formaram a ideia de eternidade e os discursos religiosos e filosóficos em torno da pós-morte, diz em sua obra Uma Breve História da Eternidade que o anjo da morte é o maior workaholic que existe. Ele se baseia no dado de que, em 2010, cerca de 150 mil pessoas morriam diariamente no planeta. Pode-se afirmar que, dessa galera, pelo menos 46 são de Curitiba, dias mais, dias menos.

Os trâmites sobre o que fazer com cada corpo sem vida têm ligação direta com a maneira como a morte é enfrentada. Na Antiguidade, era supercomum colocar o morto no quintal e tratá-lo como se ainda fosse de casa, alimentando-o e oferecendo utensílios cotidianos – um travesseiro, por exemplo. Gregos e romanos faziam altares para que a alma daquele que faleceu permanecesse “de bem com a vida”. Esses e outros costumes para agradar eram feitos por temor de que o morto voltasse para incomodar; ou que trouxesse fluidos ruins para a família. Tratava-se de uma via de mão dupla: os vivos ajudavam os mortos e vice-versa.

Em meio ao cipoal de culturas funerárias, praticadas de maneira diferente em tempos e lugares mais diversos, deve-se destacar que em 450 a.C, a Lei das Doze Tábuas causou furor em Roma. Foi um marco dessa longuíssima história, impossível de ser contada numa única noite de luar. Colocou os mortos para fora dos muros das cidades, regulamentando como enterrar e como se comportar diante da morte. A nova legislação traduzia uma noção bem peculiar de convivência social. Deixavam de ser bem-vistos os costumes de aproximação com o corpo morto, o endeusamento e mesmo o luto sensível. Foi apenas com a ascensão do cristianismo que os corpos dos mortos puderam voltar ao convívio, junto com os discursos efusivos sobre a salvação das almas e a remissão dos pecados, temas que todo mundo que frequentou o catecismo um dia ouviu falar.

A morte de Cleópatra, de Von Bohn.

A  partir  do  alvorecer  do  cristianismo, pode-se  dizer  que  a morte se tornou pública. Nem sempre com muita delicadeza, deve-se lembrar. Basta recordar que na Idade Média se praticavam enforcamentos em praças e que gladiadores barbarizando na arena eram o barato da população. O historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), cuja produção é a base de vários estudos sobre a cultura da morte, deixa claro que, apesar dessa proximidade com a “Dona Morte”, no período medieval, a relação de indiferença permanecia forte. A manifestação mais dolorosa, cheia de pesares, podia ser encontrada com forte apelo nos cultos cristãos.

A  perspectiva  de  Céu  e  Inferno  vem  com  o  cristianismo. A religião se estabeleceu em Roma depois de muita briga no Império Romano, vez que os cristãos eram vistos como subversivos, por adorarem outra figura, Jesus, e não o imperador, o césar. Os adoradores podiam até ser devorados nas arenas por feras, como castigo, dando origem à imensa e heróica galeria dos Santos e Mártires da Igreja Primitiva – mulheres como Cecília, Águeda,  Luzia e Apolônia; homens como Lourenço, Cosme e Damião, protagonistas de mortes por fritura, perfuração de olhos, corte de seios e demais atrocidades. Mesmo com perseguições sanguinárias, tortura e intolerância, o cristianismo cresceu e, vendo isso, o imperador Constantino I usou o fato a seu favor: no ano de 321, mandou tocar sinos e se fortaleceu em meio à crise do império. Assim surgiu o Édito de Constantino, que tornou o cristianismo dominante em Roma. Por fim, foi sacramentado em 391 como religião oficial de lá, por meio do Edito de Tessalônica.

Morte de um guerreiro viking, por Charles Ernest Butler.

Preexistente ao cristianismo, o conceito de lugar post mortem e o mérito necessário para frequentá-lo, ganhou força no século 14, com o advento da Peste Negra. A doença em larga escala foi responsável por assolar um terço da população europeia a partir de 1347, momento em que houve um distanciamento com os enterros e rituais fúnebres. O médico e escritor brasileiro Moacyr Scliar (1937-2011), estudioso que retratou a melancolia na trajetória da sociedade, trata do assunto no ensaio Saturno nos trópicos. Conta que “ninguém chorava pelos mortos, porque todos esperavam morrer”. A doença marcou um momento de ruptura com a naturalidade da morte, porque a experiência dela se mostrava assustadora para os sobreviventes, dando espaço, também, para a disseminação da depressão social. O medo de morrer em decorrência da doença fez com que se agravasse o apego a Deus e à religião.

Em relação aos muitos milênios de culto aos mortos, o período cristão pode até não levar vantagem temporal, mas com certeza leva vantagem simbólica. Imagine aquela cena do quadro que  estampa  os  últimos  momentos do imperador dom Pedro I, então d. Pedro IV, rei de Portugal:  pelo menos dez pessoas – contando o padre, reunidos em volta do moribundo, todos aguardando piedosamente o final da história. Era bem assim e, para  incrementar, tinha criança  correndo  para  tudo quanto era lado, um pessoal que às vezes nem conhecia o coitado que estava morrendo e todos os sacramentos possíveis. Esses ritos eram indispensáveis para garantir, pelo menos, a remissão de pecados, e, por consequência, merecimento celeste ao moribundo, não esquecendo que o Purgatório também era uma opção e, na pior das hipóteses, o Inferno.

O leito de morte de D. Pedro.

Nesse mesmo momento, os chamados enterros ad sanctos, feitos nas igrejas, eram sepultamentos populares de gente virtuosa, que ainda contavam com ritos específicos para salvação de almas e um famoso “jeitinho” que o dinheiro poderia comprar.

Com os enterros ad sanctos, as igrejas começaram a ficar cada vez mais lotadas de cadáveres, em especial nos séculos 18 e 19. No Brasil, não foi diferente; em Curitiba, muito menos. O culto aqui também contava com uma preparação suntuosa, digna do enterro mais célebre do cinema, o do filme Imitação da vida, de Douglas Sirk, muitas vezes idealizada pelo interessado, em vida. Na capital paranaense, as igrejas centrais e no alto do bairro São Francisco concentravam os funerais, baseando-se também na irmandade à qual pertencia. As irmandades eram agremiações, principalmente  católicas, que  cuidavam  dos  funerais  e  apoio  aos  familiares; por elas, era possível saber de qual classe social era o indivíduo, com separações de raça e financeiras bem especificadas em cada irmandade. Falaremos melhor sobre elas a diante. Mas, a grosso  modo, equivaliam a dizer se o sujeito era sócio do seleto Clube Curitibano ou do Sergipe F.C, no lado pobre do bairro Parolin.

A espera pela morte era curiosa. Além do que se ordenava normalmente no testamento do morto, ficava claro quantas missas seriam feitas em prol daquela alma, quantidade de padres, velas e, até mesmo, o local da igreja em que gostaria de ser sepultado. Se fosse consciente o suficiente dos seus erros em vida, poderia pedir para ser enterrado bem na entrada, para todo o povo pisar no túmulo, como forma de remissão. Dramático, mas compreensível naquele contexto. A esperança junto da esperteza poderia ser uma virtude e render um enterro bem pertinho do altar, o mais próximo dos santos, afinal, todo cuidado para ganhar o céu é pouco. A eternidade, sabe-se, dura um tempão – que seja num bom lugar.

O leito do doente, por H. James Hoff.

Para tratar da morte, é necessário fazer recortes históricos para mostrar as idas e vindas desse assunto na sociedade. Ao reparar nos vaivém que faz durante os séculos, até chegar no período mais atual da história, vê-se o quanto os fatores como religião, medo e saúde influenciaram em todo o imaginário da população. E é assim que entramos no final do século 17 e início do século 18, quando as discussões sobre saúde pública ganharam ênfase na Europa.

Emergiu nesse momento a percepção de que não estava dando muito certo deixar os cadáveres em decomposição nos pisos das igrejas. Logo, médicos, arquitetos e padres começaram a repensar a higiene e os novos métodos de sepultamento. Os chamados “miasmas” que saíam dos corpos em decomposição eram o fator principal; nas valas comuns das igrejas mais de mil cadáveres podiam estar sepultados, até o local ficar cheio e outra vala ter de ser aberta, como observa o filósofo José Luiz de Souza Maranhão, na obra O que é morte. Acreditava-se que os miasmas poderiam repassar doenças, informação que trazia repulsa por este tipo de sepultamento em local de grande movi- mentação social, como eram as igrejas católicas. A convivência entre vivos e mortos começou a ficar inviável, ainda mais pelo cheiro desagradável, que deixa de ser encarado com normalidade. Imaginem assistir a uma missa no verão brasileiro. Alguma providência teve de ser tomada, mas não foi todo mundo que aceitou a ideia.

Leito de morte, de Edvard Much.

Não se pensa a morte, nem se entende o período higienista sem uma dose de imaginação. O mundo post mortem era fantasiado com as perspectivas de céu e inferno e como seria a vida eterna para quem “morreu nessa vida, mas renasceu na outra”. Quando as preocupações com saúde pública motivaram a criação dos cemitérios, a população não gostou da ideia, justamente porque o cemitério não era visto no mesmo grau de santidade que a Igreja, logo, a salvação da alma não seria possível. O movimento higienista consistia em repensar a saúde e a salubridade da população, visto que era necessário criar uma forma de combater as epidemias. Um dos hábitos que precisaram ser repensados foi o enterro dos mortos. Um estudo sobre locais apropriados, tamanho de covas e medidas para dispersão correta e segura dos fluídos teve que ser feito.

O historiador Marcelo Sutil, Coordenador de Pesquisas Históricas da Fundação Cultural de Curitiba em 2019, referência em memória e arquitetura urbana, ajuda. Com voz calma e espaçada, conta que no Brasil o higienismo veio por, além de tudo, prevenção. Os cemitérios foram afastados e essa medida coincide com um período em que começou a se pensar na ci- dade. Pelo crescimento que registrou, a urbe em si foi encarada como patologia no século 18.

“No século 19 foram iniciadas buscas para curar essa patologia, mas não podemos esquecer que isso foi num âmbito europeu, e aqui no Brasil o pensamento foi ´vamos evitar aqui o que aconteceu lá fora´.”

O Cemitério Municipal São Francisco de Paula é o primeiro da capital paranaense, público e montado nos ideais higienistas. Foi construído num ponto alto, no bairro São Francisco, porque se acreditava que o regime de ventos da região era bom o suficiente para dispersar os miasmas dos mortos.

Morra, cemitério

O higienismo despachou novamente os mortos para fora das cidades. A discussão sobre novas formas de sepultamento demorou um pouco para chegar no Brasil, dando-se apenas no século 19. Mesmo com Carta Régia de 1801, proibindo enterros em igrejas, foram necessários mais de 35 anos para o primeiro cemitério público no Brasil ser criado: em 1836 surge o Cemitério Campo Santo, de Salvador, Bahia, cuja recepção, com o perdão do trocadilho, foi repleta de frieza. O sepultamento no templo ainda tinha um sentido redentor, e os moradores não gostaram da ideia de abrir mão da salvação da sua alma em razão da nova ordem. Depois de irem ao Palácio do Presidente da Província tirar satisfação, o grupo de descontentes soteropolitanos foi até o cemitério e depredou tudo com paus e pedras aos gritos de “Morra, cemitério”.

Não  resolveu  muito.  Os  baianos  tiveram  que  dar  o  braço a torcer e colaborar com os enterros. Em breve seriam inaugurados também o Cemitério Nossa Senhora do Desterro, em Florianópolis, Santa Catarina; e o Cemitério de Santo Amaro, em Recife, Pernambuco, ambos em 1841. Foi seguido do Cemitério da Santa Casa em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; o Cemitério da Consolação, em São Paulo, e o São Francisco de Paula, em Curitiba, em 1854.

A criançada

A morte passou a ser escondida novamente no século 20, após  os  cemitérios  estarem  consolidados  como  espaços  comuns de qualquer cidade. O moribundo vai para o hospital, e ali fica sozinho, diferente do quadro citado que mostra os últimos momentos de dom Pedro I. Antes disso, a morte era cercada de pessoas, até desconhecidas, sem descartar as crianças, que não eram escondidas do fato. Até eram estimuladas a tocar a mão fria dos mortos, debaixo do véu que os cobria, e olhar o algodão nas narinas, a faixa branca que amarrava os queixos.

A ideia de alma e “fantasma” que perambulam por aí não ficou de fora em nenhuma das épocas. Sempre se nutriu algum medo que não deixava o pessoal em paz, independente do momento histórico. Como visto, no começo o medo era do falecido fazer um auê na vida de quem ficou; depois o de ir para o inferno; seguido do da peste, voltando para ameaças sacras e chegando no hoje, que é um misto de medos, por assim dizer.

Soa quase antinatural levar uma criança para algum ritual fúnebre. Muitos autores concordam que uma inversão foi realizada nesse tempo: antes, sexo não era um tema que entrava nas casas, enquanto a morte era comum. Hoje, considera-se o contrário. Resolvi ver como se dava essa lógica no meu grupo de conhecidos. A arma, o Instagram. Numa pesquisa rápida com os seguidores, metade das 178 respondeu que tinha costume na infância de visitar cemitérios com pessoas mais velhas.

O funeral de Shelley, por Louis Edouard Fornier

Uma pesquisa semelhante foi realizada com o público que frequenta as visitas guiadas no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, com várias respostas indicando que a relação com cemitérios veio lá da infância. Algo curioso é que um número mínimo de respondentes continua com o costume de visitar. Dá-se a entender que o cemitério não é mais um local de visita rotineira.

Uma das funcionárias, Tatiana Maeyama, demorou cerca de dois meses para entrar no “Municipal”, e olha que já estava empregada. Mas ela não sabe explicar direito o que a assustava, sendo que quando criança costumava brincar sempre no cemitério da sua cidade natal. A “Indesejada das Gentes”, como nomeou Manuel Bandeira, pode ter uma razão para apavorar tanto: o seu mistério. É difícil pensar na morte, no depois, se é que ele existe. É um tema que traz milhares de questionamentos e uma tentativa recorrente de recalque. Não à toa é comum aparecer alguém no velório, dar dois tapinhas nas costas de outra pessoa e dizer: “Olha só como a gente não é nada”, dando a entender que, por mais que esqueçamos, estamos propícios a alcançar esse lugar de nada.

O protocolo atual do morrer

O dia em que a minha família resolveu fazer um plano funeral foi inesquecível. Com a suspeita de que logo o avô faleceria, pelo coração que dava sinais de cansaço, o primeiro comercial de luto-não-sei-o-quê foi tiro e queda. Eis que chega o representante na casa, explica o que está contido em cada plano e nem sequer um barulho era feito entre os presentes. Chega uma hora em que é necessário colocar o nome das 12 pessoas que irão fazer parte do seguro. Parecia que cada nome mandava alguém para a forca.  Ninguém queria falar e, claro, ninguém colocou as crianças na lista. Aí  todo  mês  o  carnê  chega  pelo Correio e a famosa ligação ou mensagem acontece: “Hein, fulano, tudo bem? É que, assim, falta a sua parte para pagar aquele esquema lá, sabe? é… o carnê”. Qualquer um de fora poderia pensar que é um esquema de crime ou tráfico, facilmente. Mas não, é só o carnê do plano funeral.

O  sociólogo  alemão  Norbert  Elias  (1897-1990)  destrincha em seu livro A solidão dos moribundos como é o morrer a partir do século 20 e o costume seguido até hoje, século 21. Ele usa a frase “a morte do outro lembra a minha” para definir a visão atual da morte e uma das razões que a torna assustadora. Depois de passarmos pela morte domada – segundo Ariès –, pública e com ares de evento, ela se recolhe. O doente é conduzido ao hospital, sua doença e sua morte são assépticas, fora da vida pública, muitas vezes numa UTI somente, na presença do médico e olhe lá. Morre-se sem ter ao nosso lado ninguém que conhecemos.

O enterro do Conde Orgaz, de El Greco.

Depois que a morte é atestada, o falecido passa pela funerária, na lida com funcionários que vão limpar e embalsamar o corpo para o velório. No caixão, a melhor ideia é a de que pareça estar dormindo e o mais próximo da calmaria e da vida possível. Isso lembra a fotografia post mortem nascida na Era Vitoriana, em que os falecidos eram fotografados em posições naturais, junto de familiares ou outros cenários, sendo um dos sintomas dessa cultura a negação da morte. Não longe de tal conceito, há funerárias no mundo que seguem um modelo em que  o  morto  é  colocado  nas  suas  situações  rotineiras,  como aconteceu com um jovem nos Estados Unidos que foi velado posicionado assistindo a um jogo na televisão, com suas roupas típicas e até snacks ao lado. Em contrapartida, o caso anterior é raro. O velório em casa não é mais tão comum, afinal, a morte assusta e consegue atingir o caráter selvagem que Ariès avisava que ia chegar. O enredo da novela A Morte e a morte de Quincas Berro D’Água (1961), de Jorge Amado, jamais aconteceria atualmente. Lembrando que nessa história, o morto é carregado pelos amigos para uma noitada com direito a bebedeira e farra. 

A  antropóloga  aposentada  pela  Universidade  Federal  do Paraná, referência em ritos e religião, Sandra Stoll, fala da negação da morte no século 21. Mesmo o fato não sendo novo, a maneira de representar a memória, atualmente, é. Como se a memória, convertida em uma espécie de velório duradouro, fosse uma tentativa de continuar mantendo algo vivo de quem morreu.

“É uma forma de manter os mortos ativos, nem que seja na web. Exemplos disso são blogs ou diários de pessoas que faleceram, ou o ato de acender velas pelos mortos em sites virtuais… Os perfis de Facebook que viram memoriais também entram na dança. Isso sem contar os textos feitos para contar sobre o processo de luto dos indivíduos. Lembrança, consolo, revolta, protesto. Não há palavra que define genericamente essas atitudes contemporâneas.”

É aquela frase típica: “Quero lembrar de fulano com vida, bem. Não morto.”

A sala dos caixões

Enquanto isso, o Serviço Funerário Municipal, em Curitiba, continua trabalhando incessantemente, 24 horas por dia, sete dias  por  semana.  Cada  caso  é  recepcionado  com  as  informações básicas de liberação de corpo, velório e sepultamento, jun- to com uma lista de passos e valores tabelados de produtos que a família pode optar em comprar. Os funcionários concordam: quem chega lá, não sabe por onde começar, justamente porque não busca se informar antes. Pensando bem, quem conhecemos que vai dar um rolê no Serviço Funerário Municipal e pedir um tutorial de procedimentos? O problema da falta de informação é que gastos exorbitantes podem ser feitos no momento de fragilidade emocional. Ninguém é obrigado a ornamentar nada, nem pagar qualquer taxa além da urna e do enterro, mas, na hora da emoção, todo e qualquer serviço parece necessário. E lá se vai a grana.

Rupert Brooke, aclamado poeta da Primeira Guerra Mundial, morre em 1915, de Andrew Howatt.

Um dos papéis recebidos quando se vai ao Serviço Funerário é uma ficha indicando o que o consumidor tem dever de adquirir e o que é facultativo. O caixão, preparação do corpo, montagem de velório e transporte são obrigatórios, com custo tabelado e que as funerárias têm obrigação de cumprir. Após dar entrada no processo do funeral, a família precisa escolher o caixão do morto, ali mesmo, no Serviço Funerário. Há uma sala com pelo menos 15 modelos, para todos os gostos; assemelha-se a um grande mostruário de loja de móveis. O valor começa em R$ 200 e vai até R$ 23 mil, incluindo caixões infantis; ao escolher, a funerária que está na vez precisa fornecer a urna igual ou  semelhante  a  escolhida, no  valor  tabelado.  O  mesmo  vale para alguns dos serviços facultativos, que o consumidor não é obrigado a adquirir; ornamentação da urna (com crisântemos), véu em tule, maquiagem necrófila e toalete são serviços com valores marcados. Há serviços que não são acompanhados de preços tabelados e cuja negociação se dá direto com a funerária. Emerson Romanel diz que há confusão nessa hora, principalmente com a definição dos produtos. Ele explica enquanto arruma a tampa de um dos caixões.

“Há quem confunda que nos serviços oferecidos a tanatopraxia, por exemplo, faz parte do pacote. Tem um custo.”

A tanatopraxia é uma técnica de conservação do corpo que pode permitir longos velórios. Consiste na retirada dos líquidos e fluidos naturais do corpo, como o sangue, e inserção de produtos químicos que preservam a aparência do morto. Este é um dos serviços que não possui valor tabelado e deve ser re- solvido junto da funerária. É normal que as pessoas confundam com o toalete, que consiste na lavagem do corpo, um “banho” simples, com direito a cabelo e barba feitos.

Há também a possibilidade do funeral gratuito. Para tanto, a família carente precisa comprovar que não há condições de pagar pelo velório e sepultamento e que o falecido não possuía bens para bancar os serviços. Se comprovado, concede-se o direito a um funeral simples, sendo o valor do pedreiro o único a ser desembolsado.

Depois que assumiu a direção do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura, Clarissa Grassi passou a dar uma palhinha no início das visitas guiadas sobre a necessidade de conhecer os processos e, quando dá tempo, até sobre a sala dos caixões. Ela até convida para uma visita, qualquer dia, caso alguém se interesse.

Cortejo funeral da Rainha Vitória, por Richard Hook.

As visitas guiadas que acontecem mensalmente no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, apesar de populares e frequentadas, na atual conjuntura da morte ainda podem ser observadas com receio. Há quem argumente o caráter mórbido do local, e a tradição de que não deve ser visitado sem algum motivo que tenha ligação direta com a morte de um conhecido ou parente. O costume de visitar os cemitérios com frequência não é mais tão disseminado quanto era décadas atrás. Ainda em 2019, visitar o cemitério é coisa de “gótico” e só é perfeitamente aceitável em Dia de Finados.

A falta de interesse no que fazer diante de um falecimento priva de saber sobre a sala repleta de caixões, seus valores e que, inclusive, tem até o que custa R$ 23 mil. Este, o mais caro, não saiu  nenhuma  vez, enquanto  seu  vizinho  que  custa  18  mil  já encontrou três compradores em dez anos. Dentre os modelos é possível encontrar os desenhados na tampa, talhados, cheios de detalhes dourados e internamente almofadados, com a premissa de um conforto maior para quem se deitar ali. Os cortejos, tão luxuosos e duradouros de antigamente, deram lugar a uma cerimônia curta, com caixões padronizados e tudo com hora marcada. É como se a morte não pudesse atrapalhar a vida, o progresso, o trabalho. Vida e morte se confrontam quando um cemitério – tal como o Municipal São Francisco de Paula, com seu muro tantas vezes aumentado, suas árvores e chão de paralelepípedos – divide espaço com o tráfego intenso das ruas da cidade.

O tempo não para quando, nos velórios atuais, o morto fica sozinho durante toda a madrugada (isso se  “pernoita” sendo velado) enquanto seus vivos vão para casa dormir e descansar, para terminar o ritual na manhã seguinte, revigorados. Não que o falecido esteja em condições de reclamar. As coisas mudaram, o mundo mudou e não há nada de errado com isso. A morte é, agora, recalcada, desagradável e pode cortar as asas de uma vida imbatível. A pior das consequências seja no filme de terror ou no cotidiano, pela finitude. O Lord Voldemort dos assuntos tradicionais. O motivo do Sinal da Cruz e da mudança de assunto para aliviar o clima. A lembrança de que nossa carne também é orgânica.

Mas, assim como a vida, ela não vai parar por causa disso.

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