Justiça gratuita pode ser negada em casos de INSS

TRF4 alega aumento de processos por conta da gratuidade e quer mudanças; OAB/PR discorda

Para tentar reduzir o número de processos judiciais, especialmente os que envolvem o Direito Previdenciário, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) instaurou um procedimento para modificar, e dificultar, o acesso à justiça gratuita. Segundo o órgão federal, não pagar pelas custas processuais facilita a abertura de processos, o que acaba por abarrotar o poder judiciário com muitas demandas. A intenção, porém, é criticada pela Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná (OAB/PR).

Em parecer, emitido na última quinta-feira (18), a Comissão de Direito Previdenciário da OAB/PR contesta o argumento de que o grande número de ações na Justiça Federal estaria relacionado ao deferimento facilitado da justiça gratuita e afirma que a concessão em grande quantidade do benefício não significa uma “espécie de convite ao ajuizamento de demandas sem qualquer necessidade de análise de custo-benefício ao requerente”, como declara o TRF4.

A assistência judiciária gratuita é um direito previsto desde 1950 pela Lei nº 1.060/50. Além disso, os artigos 98 e 99 do Código de Processo Civil (CPC) explicitam que mediante simples declaração do interessado de que não tem condições de pagar as custas do processo, deve ser concedida gratuidade de Justiça, o que isenta o requerente do pagamento de taxas e despesas necessárias ao processo, além de honorários advocatícios e perícias. O valor total das custas judiciais depende de caso para caso, mas há uma tabela para consulta que contém os preços definidos.

Por meio de uma Nota Técnica emitida em maio de 2019, o TRF4 alega que – do total de 1.819.922 processos em tramitação em janeiro de 2019 – 426.034 são beneficiários da Justiça Gratuita. O órgão federal – que abrange Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – afirma que, por conta da assistência jurídica gratuita, a litigiosidade aumentou. Ou seja, segundo o TRF4, como as pessoas não precisam pagar para entrar com um processo, elas acabam sobrecarregando o sistema judiciário.

Além disso, ressalta o TRF4, as custas e despesas isentas são imputadas, “em grande medida, ao orçamento do Poder Judiciário”. De acordo com a nota, os valores absolutos gastos com perícias judiciais totalizaram, para toda a Justiça Federal, R$ 170,4 milhões em 2017. “O montante cresceu quase quatro vezes de 2010 a 2017 […]. A litigiosidade previdenciária responde por 92% da despesa total.”

Para a Comissão da OAB-PR, no entanto, as acusações não têm qualquer comprovação uma vez que “a Nota Técnica não levanta sequer um caso que evidencie suposto aproveitamento por parte da advocacia dos benefícios da gratuidade de justiça e suas consequências”.

O TRF4 não nega que a concessão da gratuidade judiciária consiste em um importante instrumento de implementação do acesso à Justiça, porém, avalia que o problema está no uso exagerado do recurso. Por isso, o Tribunal formaliza algumas propostas de intervenção, entre elas, a concessão parcial da gratuidade – quando for o caso – e o estabelecimento de critérios objetivos para evidenciar que o indivíduo não tem condições de pagar pelos custos processuais. Esses critérios poderiam ser o valor do teto dos benefícios previdenciários, o limite de isenção do imposto de renda, o patamar de dez salários mínimos ou o valor da renda média do trabalhador brasileiro.

“A OAB/PR segue firme na busca de dignidade e respeito aos profissionais da advocacia e à sociedade. O tratamento individual e diferenciado das condições e possibilidades de cada um precisa ser levado em consideração, principalmente quando do seu acesso ao judiciário, que é quando o cidadão já se sentiu prejudicado e busca a reanálise da sua situação e do seu direito. A justiça não pode dificultar ou fechar as portas do seu acesso, muito menos passando a conta para cidadão. Que seja cobrado daquele que estiver errado”, diz o presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR, Dr. Leandro Murilo Pereira.

Falhas no INSS

Em concordância com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR é contra a adoção de qualquer critério objetivo. Segundo a instituição, deve sempre “ser analisada a situação concreta do requerente, mediante avaliação caso a caso sobre a possibilidade econômica de arcar com as custas e demais despesas, a qual pode ser requerida por simples declaração, nos termos do art. 98 do CPC ainda que parciais do processo”.

Segundo a Comissão, “negar a gratuidade ou estipular critérios mais restritivos não é a solução para diminuir a judicialização da matéria previdenciária, objetivo comum de todas as partes, mas significa negar o acesso à justiça do segurado hipossuficiente já lesado em seu direito pelo INSS”.

O foco, de acordo com o parecer, deveria ser na melhoria da qualidade do serviço prestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Segundo o documento, o responsável pelo elevado número de demandas na Justiça Federal é o próprio INSS.

A cada duas vezes que o INSS perpetua um ato administrativo, uma ele erra. A afirmação foi retirada de uma fala do presidente do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS), Dr. Marcelo Fernando Borsio, em um evento on line realizado pela Escola da Magistratura (Emagis) do TRF4, em 16 de novembro de 2020. No discurso, o presidente relata que 53% das ações que o INSS faz administrativamente são revertidas na via judicial.

Considerando que, mais da maioria dos beneficiários do INSS recebe um salário-mínimo de aposentadoria, segundo o parecer da Comissão, o segurado que necessitar ajuizar uma demanda “certamente não terá condições de arcar com as custas sem o prejuízo em sua subsistência”. Assim, para 70% dos beneficiários do INSS, o acesso gratuito à Justiça se torna um fator fundamental.

Mudança de foco

A secretária da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR, Fernanda Valério, explica que o parecer irá subsidiar a manifestação da OAB-PR no processo de Incidente de Demandas Repetitivas. Esse é um tipo de processo que tramita no TRF4 para tentar estabelecer uma decisão para um assunto que está sendo repetidamente discutido – neste caso, a criação ou não de critérios objetivos para conceder o acesso gratuito à Justiça.

Segundo a advogada, o processo sobre a gratuidade foi instaurado pelo Juiz da 8ª Vara Federal de Curitiba, usando como base a Nota Técnica nº 22/2019, já mencionada na reportagem.

Por meio da Nota da Justiça Federal, Fernanda entende que, para os juízes, o fato de existir um grande volume de ações, faz com que a advocacia pense que é uma “loteria” e entre com demandas a torto e direito na Justiça Federal. “Os juízes falaram que a advocacia enche a Justiça de ações entrando com demandas como se fosse uma roleta russa, e não é o caso. Eu tenho certeza que poucos advogados fazem isso, porque é o nosso tempo, nossa energia, a expectativa do cliente, nosso dinheiro. É muita coisa envolvida em você ajuizar uma ação”, afirma.

Para ela, o foco deveria ser outro. “O problema não é a advocacia, o problema é o INSS errar uma a cada duas vezes. O INSS presta um ótimo serviço, mas os erros são inaceitáveis.”

Fernanda entende que restringir o direito dos segurados de acesso gratuito à Justiça não é a resposta para esse impasse. “Com essa decisão, o juiz vai pedir um monte de coisa (declaração de imposto de renda, olerite, declarações de bens, fotos da casa) que vai complicar a vida do cidadão que está precisando urgentemente, que está desesperado por uma renda de subsistência.” 

A advogada explica que existem três cenários que fazem uma pessoa entrar na Justiça contra o INSS:

  • Quando há demora na resposta do INSS (neste caso a pessoa entra com um mandado de segurança);
  • Quando o órgão nega o pedido da aposentadoria;
  • Quando o INSS concede a aposentadoria de maneira equivocada (neste caso o segurado pede por uma revisão). 

Soluções 

Na visão da secretária da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR, são diversas situações que fazem com que o serviço prestado pelo INSS seja ineficaz. A primeira é a alta demanda de processos e poucos servidores; a segunda é o fato da digitalização do INSS fazer com que todas as ações dos segurados se transformem em um processo; e o outro fator de complicação foi o home office dos servidores.

Fernanda explica que por conta da grande demanda diária de trabalho do INSS, existem respostas padrão que são utilizadas nos processos. “Isso quer dizer que nós estamos praticamente falando sozinhos”, afirma.

Quanto à digitalização do sistema, a advogada comenta que até mesmo uma atualização de cadastro se transforma em uma ação jurídica. Por fim, ela esclarece que em home office, diversos servidores podem ter dificuldades com o sistema pesado do INSS, o que faz com que o processo, muitas vezes, trave. “Muitos servidores mais velhos que têm mais dificuldade de acesso à vida eletrônica – que estavam na expectativa de se aposentar – continuaram trabalhando para se encaixar em uma regra melhor por conta da reforma da previdência”, conclui.

Para melhorar a questão, a advogada acredita que seria necessário: 

  • Um concurso público por conta da grande demanda diária do INSS; 
  • Uma força-tarefa para melhorar o serviço administrativo do INSS;
  • Uma auditoria para saber o que realmente é um processo e o que é apenas uma atualização de cadastro, por exemplo (uma auditoria para ver o que entra de pedido e o que sai de resposta).

“Não sei exatamente qual é a solução, mas certamente tirar a justiça gratuita das pessoas não é.” Fernanda entende que negar o acesso gratuito à Justiça só irá fazer com que as pessoas voltem cada vez mais ao INSS, pois não existe um limite de pedidos que se pode fazer ao órgão. “Cada vez que a pessoa entra no sistema e faz um requerimento novo, ela nem sabe que aquilo é um ato jurídico e que depois ela pode ir na Justiça e pedir por uma revisão daquele ato, por exemplo”, afirma.  

Próximos passos

Atuando no processo como Amicus Curiae, o que significa “amigo da corte”, a Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR pede pelo arquivamento do Incidente. “Nós entendemos que nem é cabível ele continuar. Como é o Código de Processo Civil (CPC), que é uma lei que tem como critério a autodeclaração do autor da ação, nós entendemos que somente outra lei poderia criar critérios, e não uma decisão judicial”, destaca a advogada. Segundo ela, os critérios objetivos não são cabíveis justamente por que o acesso gratuito à Justiça é um princípio maior.

A decisão do processo não afetará apenas o Paraná. O resultado também terá interferência em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, o que segundo Fernanda significa “abrir precedentes para outros lugares do Brasil”.

Colaborou: Maria Cecília Zarpelon

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Justiça gratuita pode ser negada em casos de INSS”

  1. Bárbara Villa Verde Revelles Pereira

    Maldade sem limites. Se estão preocupados com o orçamento do judiciário, revejam seus próprios privilégios ao invés de barrar o acesso aos segurados.
    Se a justiça tem que ser lucrativa para alguém, então ela não é justa.

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