“Fico até o final, não arredo o pé”: famílias lutam contra despejo em Curitiba

Ocupação Povo sem Medo, no extremo sul de Curitiba, foi alvo de ação da PM sem presença da Defensoria Pública

O dia mal tinha raiado quando policiais militares do Paraná entraram na ocupação Povo Sem Medo, que abriga 600 famílias sem moradia no Campo de Santana, a 23 quilômetros do centro de Curitiba. Perto de 6h desta terça (10), a PM começava a cumprir a reintegração de posse do terreno, de propriedade da Construtora Piemonte e ocupado desde junho de 2022 pelas famílias em vulnerabilidade junto do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).

Segundo o movimento, o espaço não cumpre sua função social há mais de 40 anos, alegação que a construtora nega. De acordo a Defensoria Pública, a desocupação está sendo feita de maneira irregular, sem a presença de defensores para garantir o direito dos moradores.

Fora

A maior parte da comunidade, que já estava no trabalho, só soube o que estava acontecendo mais de uma hora após a chegada das primeiras viaturas. Com diversos moradores fora das casas, os policiais começaram a derrubar lonas e barracos.

Com pelo menos seis policiais, cones, faixas e viaturas, a PM logo fez uma barragem, cercando a ocupação que fica na Estrada Delegado Bruno de Almeida em quase 1 quilômetro em todas as entradas. Não passava ninguém, nem os próprios moradores, que não conseguiram retirar seus pertences das casas nem buscar familiares que estavam lá.

“Isso é desumano. Nunca vi uma coisa dessa. Parece que a gente é bicho. Mas eu vou ficar aqui até o final. Não arredo o pé”, disse ao Plural a diarista Fabiana Santos, que vive na ocupação desde junho e esperava ser liberada para ir até sua casa desde às 7h.

Polícia cercou a ocupação desde cedo. Foto: Tami Taketani/Plural

Junto dela, pelo menos outras 25 pessoas foram proibidas de entrar na região e ficaram restritas em uma pequena área de esquina, onde há algumas lojas. Agata Santos, mesmo com o filho pequeno no colo, não conseguiu passar.

José Maria da Silva mora na ocupação com outros oito parentes e também aguardava a liberação da PM para ir até sua casa. Ele conta que, das outras vezes que houve tentativa de expulsar as famílias, a comunidade teve alguns dias para se organizar, coisa que não aconteceu nesta terça.

“Não deixam a gente entrar para saber o que está acontecendo lá dentro. Minhas coisas todas estão lá. Lei nenhuma deveria ter sido aplicada pra gente dessa forma. Mas a gente que precisa não desiste. Vai até o fim. Eu não vou parar de lutar enquanto não conseguir minha casa.”

Banheiro coletivo na ocupação Povo sem Medo. Foto: Tami Taketani/Plural

Em meio à espera e tentativas frustradas de passar pelo cerco, políticos e ativistas da causa chegaram ao local. Em determinado momento, duas senhoras conversavam:

-Você já almoçou hoje?

-Não. Nem tenho fome hoje. Só fome de luta.

Foi só depois de sete horas, às 12h50, que os policiais passaram a liberar os moradores, um a um, como que numa “chamada”.

Dentro

Dentro da ocupação, enquanto os policiais destruíram os barracos, moradores questionavam porque o restante da comunidade estava sendo proibida de entrar no local. Um dos oficiais então afirmou que eles haviam dado três horas (das 6h às 9h) para que os moradores saíssem da ocupação, sem interferência da PM. O objetivo era que as pessoas se dirigissem à equipe da Fundação de Ação Social (FAS) para realizar o cadastramento.

“Estamos trabalhando em cima dos barracos que estão vazios. Vai chegar um momento em que quem não está na frente do barraco vamos abrir, tirar o que está lá dentro para a rua e vai ser embarcado nesses caminhões”, afirmou um oficial da PM, sem responder a um morador para onde seriam levados os objetos.

Horta comunitária na Povo sem Medo. Foto: Tami Taketani/Plural

Durante a manhã, alguns moradores que estavam na ocupação no momento da entrada dos policiais conseguiram organizar utensílios e móveis numa tentativa de salva-los. “Estamos com tudo arrumado porque a gente não sabe se vão derrubar os barracos com as pessoas dentro”, contou um senhor em uma das cozinhas comunitárias da Povo Sem Medo.

A ocupação

Na madrugada do dia 11 de junho de 2022, cerca de 400 pessoas ocuparam uma região de cerca de 1,8 hectares no Campo de Santana. O terreno, que fica na Estrada Delegado Bruno de Almeida, é de propriedade da Piemonte Construtora, mas está em desuso há mais de 40 anos, conforme o MTST.

“Essa é uma área para habitação popular segundo dados da própria prefeitura. O que temos aqui são trabalhadores que não têm mais condições de arcar com o aluguel e essa é nossa luta”, contou ao Plural, na época, Vinicius Souza, um dos organizadores da ocupação.

Dois meses depois, a 24ª Vara Cível de Curitiba determinou que os ocupantes deveriam deixar a área até o dia 27 de agosto. No entanto, para isso, o poder público deve apresentar um programa de realocação e encaminhamento para todas as famílias, o que nunca aconteceu.

Cozinha comunitária: moradores chegaram com apoio do MTST em junho. Foto: Tami Taketani/Plural

Segundo a Construtora Piemonte, proprietária do terreno, a área não está em desuso pois há um projeto habitacional em aprovação na prefeitura. “A ação de reintegração é o cumprimento de uma decisão judicial, e como tal, a empresa não se manifesta”, disse a construtora, em nota.

O Plural procurou a Fundação de Ação Social (FAS), que acompanha a situação, mas não houve resposta até a conclusão desta reportagem.

Reintegração ilegal

Para o Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (NUFURB) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), a reintegração ocorre de maneira ilegal, já que o órgão não foi intimado de seu cumprimento, conforme determina o Código de Processo Civil. A ação contraria a própria decisão da Justiça nos autos do caso, que determina que a Defensoria e o Ministério Público do Paraná façam a “fiscalização acerca da prática dos atos concretos”, ou seja, que tais órgãos acompanhem a reintegração, o que foi impossibilitado pela falta de comunicação prévia aos órgãos mencionados.

Casas vazias durante desocupação. Foto: Tami Taketani/Plural

Por isso, o órgão requereu à 24ª Vara Cível de Curitiba a imediata suspensão das atividades da PM na ocupação, o recolhimento imediato do mandado e a determinação com urgência aos agentes públicos presentes na ocupação para que se retirem do local.

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2 comentários em ““Fico até o final, não arredo o pé”: famílias lutam contra despejo em Curitiba”

  1. Lucas Ferreira dos Reis

    Nunca ficou tão claro a luta de classes! A diferença de tratamento. Enquanto alguns, presos, reclamam do Wi-fi, outros são jogados às ruas impossibilitados de ver seus familiares!
    Uns são amigavelmente conduzidos pelas forças policiais até o ponto de suas manifestações, outros são simplesmente impedidos de manifestar-se e são levados à base da coerção. Alguns são presos em câmaras improvisadas de gás, reduzidos a menos que animais, outros, muito bem armados, são tratados em “negociações” amistosas! Nunca esteve tão claro. A verdade é cristalina. E talvez a negação dessa obviedade, seja apenas uma maneira encontrada por alguém de ignorar a sua própria animosidade.

  2. Cidadão que paga imposto!!

    E a Invasão no Cotolengo que era para ser tirada em Novembro do ano passado ,quando será tirada?? Fizeram uma vila, que já tem até comércio no local,com ruelas,postes de luz ,muros e até varanda com porcelanato… Rua Renato Polati,no Campo Comprido.

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