Medo toma conta de megaocupação ameaçada por despejo

Apreensivas e vulneráveis, famílias aguardam decisão do STF para permanecerem em ocupação no Campo do Santana

Desde o dia 11 de junho centenas de pessoas ocuparam um terreno na Estrada Delegado Bruno de Almeida, no Campo do Santana, em Curitiba. A maioria das famílias alega não ter condições de arcar com aluguel e, de acordo com o Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), há cerca de 250 outras “na fila” aguardando espaço para irem para a ocupação. No entanto, a empresa Piemonte, proprietária do terreno, pediu reintegração de posse, o que tira o sono das pessoas que vivem no local.

O terreno tem 1,8 hectare e atualmente abriga 600 famílias vindas de outros bairros de Curitiba e região metropolitana. Uma das pessoas é a bióloga Evelyn Saray Vargas, que mora no Brasil há cinco anos, após deixar a Venezuela. Ela vivia em Colombo antes de optar pela ocupação.

“Eu estou regular aqui no Brasil, tenho os documentos todos. O problema é que fui demitida na pandemia porque sofri um acidente no trabalho. Depois que acabou o auxílio (seguro-desemprego) eu não consegui mais pagar o aluguel e preciso cuidar da minha filha que tem paralisia cerebral”, conta Saray, que trabalhava com serviços gerais.

Debaixo de um barraco de lona, com a filha de quatro anos, ela vive com ajuda de doações até que encontre emprego. “Uma coisa que aqui no Brasil vocês não valorizam muito é o arroz e feijão. Eu valorizo muito porque já passei fome na Venezuela e de vez em quando a gente faz vaquinha e compra vina, aí também tem carne”.

Saray e o amigo Elvis Jose, ambos venezuelanos, que apesar das condições difíceis na ocupação, não pretendem deixar o Brasil Foto: Aline Reis/Plural.

A ocupação é dividida em grupos que a organização chama de “G”. Do G1 ao G9 os moradores são como equipes que têm cozinha comunitária e banheiro improvisado. Cada G se organiza para limpeza e preparo dos alimentos, que são disponibilizados por outros movimentos sociais, Igrejas ou comprados conjuntamente por aqueles que têm renda de auxílio ou trabalham no mercado formal.

Quem não tem carteira assinada, faz bicos e consegue levantar algum recurso para o dia. Ezequiel de Oliveira, por exemplo, tem problemas de saúde provocados pelo alcoolismo, o que o impede de realizar atividades pesadas por longo tempo.

Ele e a esposa – que no dia da entrevista estava internada também por problemas no fígado – viviam com R$ 450 do Auxílio Brasil, mas o benefício foi cortado e não puderam mais pagar o aluguel no Jardim da Ordem, região do Tatuquara. “Eu estou desempregado há 5 anos. Às vezes a pessoa me olha e acha que eu sou vagabundo, que não quero trabalhar, mas sinto muita dor. Eu estou indo lá no Caps (Centro de Atenção Psicossocial), vai dar certo agora. Lidar com bebida é difícil”, fala, enquanto ajuda outros homens e levantar mais uma moradia no terreno.

De acordo com a Fundação de Ação Social (FAS), a prefeitura de Curitiba realizou, em 20 de junho, o cadastramento das famílias que estão na região do Tatuquara. Isso aconteceu após uma determinação judicial. A Fundação também afirma que as famílias podem ir ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Dom Bosco para buscar atendimento, pedir benefícios e receber alimentos.

O problema é que nem todas as pessoas têm as informações básicas para requerer ajuda. O MTST dá este suporte, todavia, também há a morosidade do Estado em tratar a situação da habitação.

A diarista Franciele Cristina Chaves, a Fran (de vermelho na foto abaixo), é uma das coordenadoras da ocupação. Há sete anos ela fez o cadastro junto à Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Curitiba, mas até agora não houve nenhum retorno.

Josiane do Rocio de Souza (de laranja) e as colegas de cozinha na ocupação Povo Sem Medo | Foto: Aline Reis/Plural.

“Eu pagava R$ 700 de aluguel, mas aí na pandemia perdi o emprego. Fui fazer diárias, mas geralmente são R$ 100 por dia, e aí precisa levar a marmita e pagar o ônibus. Eu tinha até um carrinho, mas tive que vender para ir bancando o aluguel lá no Sítio Cercado, até uma hora que não deu mais para pagar”, lamenta Fran.

A Cohab informou à Câmara de Vereadores de Curitiba, em março deste ano, que há um déficit de quase 50 mil moradias na capital. Contudo, o documento apresentado, que está no Plano Setorial de Habitação, foi construído com dados de 2010, data do último levantamento. “Isso nos preocupa bastante porque sabemos que a situação econômica piorou bastante nesse período”, salienta o vereador Dalton Borba (PDT), que é presidente da Frente Parlamentar de Estudos Sobre a Regularização Fundiária.

Despejo

Um levantamento da Campanha Despejo Zero mostra que entre maio de 2020 e maio deste ano foram despejadas 1716 famílias no Paraná. Além disso, em 2021, o Governo Federal reduziu investimentos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que perdeu R$ $ 1,513 bilhão. O FAR é direcionado para financiamento de obras de moradias populares e o corte foi na faixa de famílias de baixa renda – aquelas que ganham até R$ 1.800 por mês.

Outro fator que impacta no aumento do número de pessoas em situação de rua ou em insegurança habitacional é o desemprego. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mais de 10 milhões de pessoas estavam desempregadas no segundo trimestre deste ano.

E, embora a região Sul tenha a menor taxa de desocupação do Brasil, com cerca de 5,6% de pessoas na força de trabalho desempregadas, isso tem efeitos na questão da moradia.

Thiago de Paula Diniz, outro ocupante do “Povo Sem Medo”, morava no bairro Tatuquara, em Curitiba, com a esposa Tatiane Pereira Fernandes e o filho de 1 ano e dez meses, Miguel.

Diniz mantinha a casa com o trabalho em uma empresa de lataria e pintura, mas com o aumento dos preços de alimentos e o aluguel de R$ 850, foi morar com uma tia. Como a situação estava desconfortável, achou que seria mais adequado ir para ocupação.

Logo depois da ‘mudança’, no entanto, ele foi demitido. Agora a preocupação é garantir a moradia e arrumar outro emprego para prover a família e a outra filha, de dez anos, de um relacionamento anterior. “Eu já falei com a mãe dela e também com o Juiz que agora vou atrasar a pensão um pouco”, justifica.

Tatiane, o marido Thiago e o filho Miguel. Valor do aluguel pesou no orçamento da família | Foto: Aline Reis/Plural

“Vou pra onde?”

Um coro uníssono na ocupação Povo Sem Medo é o questionamento autoindulgente: você acha que eu queria estar aqui?

Das centenas de famílias que residem no local, o receio de que a reintegração de posse aconteça é companheiro. “Eu tenho medo de eles tirarem a gente, principalmente por causa dele [olha para o filho de dois meses]. Mas não tem para onde ir, só o meu marido está trabalhando”, diz Jessica Verdura de Jesus Pedroso, enquanto embala o pequeno Thales.

A família foi para a ocupação Povo Sem Medo quando a criança tinha apenas 11 dias de vida. Antes eles estavam na casa de parentes, em outra ocupação. Ela e o marido preencheram o cadastro da Cohab há três anos, porém não receberam nenhuma resposta sobre habitação. “Mas agora está nas mãos de Deus né? Espero que não tirem a gente daqui, não. Porque não temos para onde ir”.

O pedido de reintegração de posse da Construtora Piemonte foi deferido pela Justiça. A decisão do juízo da 24ª Vara Cível determinou que as pessoas que estão na área comecem a desocupá-la voluntariamente até 27 de agosto, sábado.

Na determinação, consta que o ato deverá ser acompanhado pela FAS, pela Secretaria de Estado da Justiça e da Família e pelo Conselho Tutelar de Curitiba. Quem permanecer no local, segundo a decisão, deverá pagar multa de R$ 2 mil por dia de permanência. O cumprimento do mandado acontecerá em data definida pela Polícia Militar. 

Jessica e o filho Thales, de apenas dois meses. O marido sai cedo para trabalhar e ela cuida do bebê | Foto: Aline Reis/Plural.

Segundo os moradores da ocupação, nesta terça-feira (23) equipes da PM estiveram no local, mas eles não souberam explicar o motivo. A reportagem questionou o setor de Comunicação da corporação sobre o assunto, mas até o fechamento deste texto não obteve respostas.

“Só saio daqui se passarem um trator com a gente dentro”. Sebastião Machado Martins está na ocupação Povo Sem Medo com a esposa Neuza Rodrigues, e a filha de 6 anos, Mirian Rodrigues Machado.

Ele lidava com gado no Mato Grosso do Sul e sofreu um acidente de trânsito ao visitar a mãe, em Curitiba, há dois anos. A colisão envolvendo a moto em que ele era garupa e um carro foi grave.

Martins perdeu grande parte da mobilidade, precisou colocar enxerto e placas de titânio na perna esquerda. Foi forçado a mudar de profissão e agora sobrevive vendendo balas porque não consegue andar direito. “Vou falar a verdade para você. Às vezes eu tenho vontade de chorar, porque o que eu mais gostava de fazer era mexer com o gado e agora estou aqui. Ando pouco com o andador, mas a maior parte com a cadeira de rodas mesmo, porque é muita dor. E como vou manter minha mulher e minha menina? Não tenho como sair daqui, não”.

Sebastião e a família não têm para onde ir e não pretendem deixar a ocupação | Foto: Aline Reis/Plural.

Na contramão das famílias ouvidas pelo Plural, a FAS afirmou que está acompanhando a “desocupação voluntária”, embora o MTST não confirme que haja pessoas que deixaram o terreno.

A Fundação mencionou ainda que passou contatos dos órgãos de atendimento para as lideranças da ocupação e que vai disponibilizar atendimento para quem estiver em situação de rua ou desabrigo provocado pela provável reintegração.

Em paralelo o Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) aguarda manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre uma petição que tenta impedir o despejo, que ainda não foi avaliado.

Em contrapartida, nesta quarta-feira (24), o ministro Roberto Barroso, determinou que o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) levante dados sobre o plano de realocação das famílias, ao deferir um pedido do MTST que, por meio do corpo jurídico, tenta evitar que as pessoas sejam retiradas.

A Construtora Piemonte, proprietária do terreno, afirmou que por se tratar de uma decisão judicial, a empresa não irá se pronunciar sobre o caso.

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