Aborto legal no Brasil: mulheres enfrentam barreiras para interromper a gravidez 

Mesmo legalizado em casos de estupro, risco à vida da gestante e fetos anencéfalos, a falta de informação e o preconceito dificultam o acesso de mulheres e pessoas com útero ao abortamento

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Considerado “mês das mulheres”, março teve as primeiras semanas repletas de manifestações a respeito do aborto no Brasil. Seja devido a recentes decisões judiciais (como a do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que médicos não podem denunciar pacientes que abortaram fora da previsão legal) ou a atos organizados pela sociedade civil em defesa dos direitos das mulheres, o aborto voltou (se é que tenha saído em algum momento) ao centro do debate público.

Para especialistas ouvidas pelo Plural, por ser um tema rodeado de estigmas, a discussão em torno do aborto no Brasil ainda é precária e gira mais em torno de princípios morais e religiosos do que da esfera da saúde pública e de direitos das mulheres. Isso influencia não só na ausência de políticas públicas que tratam do assunto, como também no aumento das barreiras que mulheres e pessoas com útero, sobretudo as que estão em situação de vulnerabilidade e marginalização, enfrentam para conseguir acessar o aborto, mesmo aquele garantido por Lei. 

O aborto no Brasil

De forma simplificada, o aborto consiste na interrupção da gravidez, com a remoção ou expulsão de um embrião ou feto do útero. Isso pode acontecer de forma espontânea (ou natural), quando independe de qualquer intenção da gestante, ou artificial, quando o fim da gravidez é intencionalmente provocado, seja por meio de medicamentos ou cirurgia. 

Como regra geral, no Brasil o aborto é crime previsto nos artigos 124 a 126 do Código Penal, exceto em três ocasiões: gravidez por estupro, casos que coloquem em risco à vida da mulher e de fetos com anencefalia (ausência ou má formação do sistema cerebral). Esta última ressalva foi garantida por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.

O aborto natural só não é crime quando há uma interrupção espontânea ou acidental da gravidez, que pode ter por origem em várias causas, como traumatismos e quedas, por exemplo.

Fora isso, caso uma mulher provoque aborto em si mesma ou consinta que outra pessoa o faça – como um médico, por exemplo – ela pode ser condenada de um a três anos de prisão. Caso uma pessoa provoque aborto em uma gestante sem que ela autorize, também é considerado crime, com pena de um a quatro anos de prisão. 

“Desde 1940 [data da publicação do Código Penal], a gente vem se arrastando para de fato concretizar os casos de aborto legal. Ainda que a exceção esteja prevista numa lei da estatura de um Código Penal, o que se grava da legislação é que o aborto é crime, e não que existem exceções”, afirma a professora de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da instituição, Taysa Schiocchet.

Atualmente, estão em discussão pelo menos outras duas propostas que visam a descriminalização, ainda que parcial, do aborto pela via judicial. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que tramita no STF desde 2017 e prevê a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação, e a ADPF 989, de 2022, que discute justamente a dificuldade de acesso das mulheres ao aborto legal. Os processos, no entanto, não têm data para serem julgados.

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De acordo com a advogada e mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR, Catarina Ramos, apesar de diversas propostas legislativas tramitarem nas esferas municipais, estaduais e federais tentando legalizar o aborto, há centenas que buscam dificultar o acesso das mulheres ao procedimento. 

“Vemos projetos bastante extremistas e retrógrados em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. É importante que a gente entenda o Legislativo, o Judiciário e o Executivo como pessoas que têm opiniões pessoais, e que muitas vezes não separam essas opiniões ou que, pior, foram eleitos por conta dessas convicções.”

Barreiras

O grande debate hoje em torno do aborto no contexto brasileiro, segundo as especialistas, é que embora exista previsão legal para que o procedimento seja realizado, milhares de mulheres não conseguem acessá-lo, seja pela ausência de unidades hospitalares próximas que oferecem o serviço, pelo preconceito e despreparo dos profissionais da saúde, pela falta de informação sobre os direitos das mulheres ou a própria violação deles.

Nos casos de aborto legal, o procedimento deve ser disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas isso não significa que todas as unidades hospitalares públicas fazem o serviço. No Paraná, por exemplo, há apenas quatro hospitais de referência para realização da interrupção de gravidez nos casos previstos em lei: o Hospital de Clínicas, em Curitiba, o Hospital Universitário do Oeste do Paraná, em Cascavel, o Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná, em Londrina, e o Hospital Universitário Regional de Maringá, em Maringá.

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Essas barreiras que limitam o acesso à assistência médica e ao aborto legal foram o motivo da criação da Milhas pela Vida das Mulheres, uma rede que ajuda mulheres a viajarem pelo Brasil e internacionalmente para conseguir interromper a gestação de forma legal e segura.

“Falta muita comunicação, a começar por aquela que anuncie, declare e promova a lei e o direito que essa lei garante. Essa informação precisa circular e estar acessível a toda mulher”, defende a fundadora e coordenadora da ação, Juliana Reis.

Só na primeira semana de março de 2023 foram oito casos atendidos pela Milhas. Desde 2019, ano de criação do projeto, Juliana recebeu mais de 15 mil mulheres procurando ajuda. Mensalmente são cerca de 400 pedidos de auxílio recebidos pelo projeto.

“A Milhas nasceu enquanto resistência a uma situação que estava se instalando no Brasil em 2018, a gente queria reagir e interagir com esse retrocesso, que é o crescimento do discurso anti-aborto. O que nós fazemos é arrancar essas mulheres das estatísticas da morte materna por consequência de abortos clandestinos e mal realizados.” 

Outro obstáculo com o qual as brasileiras se defrontam é a ausência de informações disponíveis sobre o tema – ou, em certos casos, a circulação de informações falsas. 

Uma situação comum que exemplifica o despreparo e ineficácia do Estado em garantir o acesso à saúde às mulheres é a solicitação por parte das unidades hospitalares ou profissionais da saúde de um boletim de ocorrência para que as vítimas de estupro tenham direito ao aborto. Segundo a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde, o Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento em casos de violência sexual e a mulher não é obrigada a noticiar o fato à polícia.

“Já é complicado que as políticas de aborto legal hoje no Brasil sejam cumpridas, imagina falar sobre áreas mais cinzentas em relação à descriminalização de outros tipos de abortamento? A proibição do aborto é mais uma forma de vulnerabilizar a mulher social e estruturalmente pela estrutura que vivemos”, destaca a advogada Catarina Ramos.

Abortos clandestinos 

De acordo com a “Pesquisa Nacional do Aborto de 2016”, realizada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e pela Universidade de Brasília (UnB), um dos principais e únicos documentos sobre o tema no país, em 2015, 503 mil mulheres fizeram um aborto no Brasil, uma média de 1.300 mulheres abortando por dia.

A versão mais recente do estudo, lançada na última sexta-feira (24), mostrou que 1 em cada 7 mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Metade das mulheres (52%) o fizeram antes de completar 19 anos. Conforme a pesquisa, as que mais realizam um segundo abortamento são as mulheres negras, com algum grau de vulnerabilidade social ou pobreza, e a ocorrência de dois abortos ou mais está presente em 1 em cada 5 mulheres (21%).

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a proibição da interrupção da gravidez leva, anualmente, 39 mil mulheres à morte e milhões a internamentos com complicações causadas em decorrência de abortos inseguros. No Paraná, só em janeiro de 2023, 759 mulheres foram hospitalizadas em decorrência de abortamento (556 por gestações que terminaram em aborto, 198 por abortos espontâneos e cinco por abortos por razões médicas). Os dados são do DataSUS.

A partir das evidências coletadas sobre o cenário do abortamento clandestino no mundo, a OMS concluiu que políticas que atrasam ou impedem o aborto, como a criminalização, período de espera obrigatório, aprovação de familiares e limites sobre o período de gravidez em que um aborto pode ocorrer, colocam em risco a vida de mulheres e meninas, principalmente as que enfrentam maior vulnerabilidade social. 

“Num país desigual como o Brasil, mulheres brancas abortam, mulheres negras morrem. A proibição do aborto, a falta de recursos e políticas públicas, e o avanço de discurso de ódio não matam mulheres só no abstrato. No Brasil, matam principalmente mulheres negras, em vulnerabilidade, semianalfabetas, que vivem em situação de periferia”, afirma a advogada e mestre em Direitos Humanos e Democracia, Catarina Ramos.

A declaração da advogada é embasada por dados de diversos estudos sobre o tema. Um deles, intitulado “Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?“, publicado em 2020 e desenvolvido por pesquisadores da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro, mostra que mulheres negras e indígenas, além de adolescentes menores de 14 anos e moradoras de regiões periféricas são as que mais morrem após interrupções da gravidez realizadas de forma insegura no Brasil.

Como avançar

A discussão em torno do aborto, tanto no âmbito jurídico-legal quanto no social esbarra em preconceitos e moralismos intrínsecos ao contexto da América Latina. Na região, a maioria dos 20 países segue políticas abortivas como as do Brasil: é possível realizar em alguns casos, como o que afetam a saúde da mulher e estupro, por exemplo. Em cinco países (Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e El Salvador) o abortamento é integralmente proibido, segundo o Center for Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos).

“O discurso anti-aborto é muito preocupante porque ele nunca vem sozinho. Ele está ligado a uma pauta muito maior de violência estrutural contra as mulheres, que não é só uma violência de gênero, mas também racial, geográfica e de classe. Quando olhamos os dados da América Latina vemos que esse discurso é uma questão bastante estrutural”, aponta Catarina Ramos.

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Segundo Ramos, alguns fatores como o populismo retrógrado, o fundamentalismo religioso, o crescimento do discurso de ódio e a era de pós-verdade – em que as pessoas tendem a confiar mais na emoção e em crenças pessoais que em fatos objetivos – atrasam os avanços na garantia dos direitos femininos, principalmente no que diz respeito ao aborto. Para superá-los, a advogada diz que será preciso brigar, em especial pelo direito amplo à educação sexual e reprodutiva, e pela autonomia das mulheres e pessoas com útero.

“É necessário um longo caminho para que a gente consiga falar abertamente sobre direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. A nossa luta tem que ser de debate, de esclarecimento e de construção. Serão algumas batalhas, mas eu me considero uma realista otimista: sei que é difícil, mas continuo tentando porque entendo que a situação precisa mudar.”

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