O que você precisa saber para entender a importância da descriminalização do aborto

É preciso falar sobre aborto: ele é um fato natural da vida das mulheres. É exatamente isso que revelam os estudos mais qualificados sobre o tema. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, 1 em cada 5 mulheres de até 40 […]

É preciso falar sobre aborto: ele é um fato natural da vida das mulheres. É exatamente isso que revelam os estudos mais qualificados sobre o tema. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, 1 em cada 5 mulheres de até 40 anos já realizou o procedimento no Brasil. Em 2015, aproximadamente 416 mil mulheres interromperam suas gestações; a maioria delas era mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O principal método eleito por elas foi a utilização de medicamentos. Quase a metade precisou ficar internada para finalizar o aborto ou para tratar as sequelas decorrentes. 

No Brasil, há algumas hipóteses em que é permitido realizar a interrupção, o chamado ‘aborto legal’: nos casos de risco de vida para a mãe, gravidez decorrente de uma violência sexual e fetos com anencefalia. Todavia, os obstáculos para que esses direitos sejam concretizados são inúmeros. 

Para se ter ideia do quão pueril é o estágio da discussão sobre o aborto, mesmo nas hipóteses legais, basta lembrar que, recentemente, a Revista Azmina, uma das vozes mais importantes e qualificadas do jornalismo no que diz respeito aos direitos das mulheres, foi alvo de caçada disparada pela Ministra dos Direitos Humanos, porque, em tese, fez ‘apologia ao crime’ quando divulgou informações públicas e disponíveis no site da OMS sobre os procedimentos recomendados para realização da interrupção da gravidez de forma segura. A reportagem é especialmente importante e merece ser amplamente publicizada. Apesar dos inúmeros prejuízos causados ao jornalismo independente, a investida da singela Ministra, pelo menos, fez com que o conteúdo se espalhasse nas redes. 

No mesmo sentido, o Conselho Federal de Medicina emitiu Resolução segundo a qual ‘A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto’. Na prática, isso significa que toda pessoa capaz tem o direito a recusar algum tratamento, exceto as gestantes. Esse dispositivo revela que um feto, ou seja, a vida em potencial, sobrepuja a autonomia da mulher, um ser humano pleno de direitos, com uma história e projetos de vida, os quais deveriam ser desfrutados com dignidade e liberdade. 

Esse episódios deixam evidentes o que delineia a discussão sobre aborto no Brasil: critérios morais e religiosos, que emprestam seu verniz de ‘proteção à vida’ a uma cruel forma de submissão da mulher e de limitação de sua autonomia. O reflexo mais perverso disso é a criminalização do aborto. A ameaça de punição da mulher que interrompe sua gravidez faz com que elas sejam abandonadas à própria sorte, em cenários de marginalização e da clandestinidade, além de impossibilitar que políticas públicas de saúde sejam elaboradas para promoção e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos. 

Sabemos que nos países em que a prática é descriminalizada, inclusive regulamentada (todos os lugares do mundo onde o aborto é legalizado impõem critérios para a sua realização, desde o período máximo para que o procedimento seja feito – normalmente até a 12° semana de gestação – até a necessidade de orientação psicossocial para a mulher, entre outras) é possível medir com transparência os números de realização do procedimento (onde ele é clandestino, não conseguimos dimensionar efetivamente o problema), além de serem locais onde os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, ou seja, acesso à contracepção, ao pré-natal, ao planejamento familiar, à educação sexual nas escolas, são assegurados e encontram um ambiente fértil de proliferação. O tabu imposto pela criminalização marginaliza tudo aquilo que envolve a sexualidade e reprodução das mulheres, dificulta o acesso à informação, além de distanciar o Estado daquelas que mais necessitam de assistência e informação. 

É preciso reiterar que os efeitos atrozes da criminalização são aprofundados conforme os recortes de classe, raça, idade, etnia, posição em relação aos centros das metrópoles, entre outros marcadores. Mulheres negras, pobres, indígenas, moradoras de regiões periféricas, mulheres com deficiência, sofrem os impactos da criminalização de forma mais severa; a compulsoriedade da maternidade as atinge com força e os seus abortos tem camadas extras de vulnerabilidade. 

O dia 28 de setembro marca o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. Essa data assinala a reivindicação para que esse tema seja afastado da ótica perversa do machismo, da violência e da desproporcionalidade da criminalização do aborto. A luta pela descriminalização do aborto é a luta para que essa questão seja vista sob a ótica da saúde pública e a partir de critérios jurídicos que privilegiam os direitos fundamentais das mulheres, sua autonomia e dignidade. Não há espaço para imposições morais e nem religiosos.

No Supremo Tribunal Federal, tramita a Ação de Descumprimento Federal n. 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12° semana de gestação. Já há motivos para celebrar essa ação: em agosto de 2018 foi convocada audiência pública com a participação de 52 entidades e órgãos com posições favoráveis e contrárias à descriminalização. A robustez movimentos sociais de mulheres para interferir e se posicionar na perspectiva de defesa e promoção dos direitos delas foi um ganho na delimitação político-jurídica do debate. 

A pauta pela descriminalização não é apologia ao procedimento; é a defesa da autonomia para gerir a própria vida, pautada pelos próprios ideais e sem ter a si imputados convicções alheias ou valores dos quais não se compartilha. 

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