Elas engravidaram de um estuprador e não puderam abortar. Agora o caso chega ao STF

Quatro casos do Paraná, incluindo indígena e menina de 11 anos, chegam a Brasília

O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) e a Clínica de Direitos Humanos|Biotecjus da Universidade Federal do Paraná (CDH|UFPR) levaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) quatro casos locais em que o Estado brasileiro criou barreiras que impediram o aborto legal de mulheres, entre elas de uma menina de 11 anos e de uma indígena da etnia Kaigang que morreu no parto em novembro no interior do Paraná. Todas elas engravidaram após serem vítimas de estupro.

A manifestação foi protocolada na última terça-feira (09/04), no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 989, que discute a necessidade de o STF determinar a adoção de providências para assegurar a realização do aborto nas hipóteses permitidas no Código Penal e no caso de gestação de fetos anencéfalos. A ação foi proposta em 2022 pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pela Associação Rede Unida, que integram a “Frente pela Vida”.

O NUDEM e a CDH|UFPR são amicus curiae na ADPF, termo em latim que significa “amigo da corte” e representa um terceiro interessado em uma causa e com opinião técnica sobre o assunto. O NUDEM também contou com apoio técnico da Assessoria Especial de Tribunais Superiores da DPE-PR, Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH|UFPR), da Clínica de Atenção à Violência da Universidade Federal do Pará (CAV|UFPA) e da Clínica de Direitos Humanos das Mulheres da USP (CDHM|USP).

“O objetivo da nossa manifestação foi trazer casos reais ao debate para mostrar como a ausência de diretrizes baseadas nas melhores evidências científicas a orientar os serviços e respaldar os profissionais cria barreiras adicionais às vítimas de estupro que engravidam para ver concretizado o direito ao aborto legal”, afirmou a coordenadora do NUDEM, defensora pública Mariana Nunes.

Para a professora adjunta da Faculdade de Direito da UFPR, Taysa Schiocchet, o STF atestará, ao reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao aborto legal, a existência de um cenário de violações sistêmicas e generalizadas em relação a um direito fundamental. “Ao mesmo tempo, a partir desse reconhecimento, a Suprema Corte tem o dever de fixar medidas positivas que busquem transformar estruturalmente a atuação das autoridades e do Poder Público para alterar tal situação de inconstitucionalidade”, destacou a professora. Também participaram da elaboração da manifestação a assessora jurídica do NUDEM, Camila Daltoé, e a pesquisadora da UFPR Francielle Lima.

Indígena

De acordo com ela, um dos casos mais emblemáticos e recentes de negativa de acesso ao aborto legal aconteceu em uma cidade do interior do Paraná, quando uma indígena, de 35 anos, com idade gestacional de 26 semanas, teve o direito ao aborto negado. Segundo a defensora pública, em agosto de 2023, após o Hospital de Clínicas da UFPR e a Secretaria de Saúde do Estado do Paraná (SESA) confirmarem a impossibilidade da realização do procedimento de interrupção após 20 semanas de gestação, o NUDEM entrou em contato com uma organização não governamental que oferece auxílio financeiro e operacional a mulheres que precisam se deslocar no território para acessar o direito ao aborto legal.

“Em menos de 24 horas, essa organização nos informou que havia conseguido uma vaga para o dia 29 de agosto em um hospital de referência em São Paulo. Nós informamos a ela sobre todas as possibilidades, como a entrega legal, mas a assistida relatou de forma expressa o interesse em interromper a gestação. Foi então que começamos a verificar a interferência de alguns serviços municipais para criar obstáculos à interrupção”, explicou a defensora.

“A negativa de acesso ao aborto legal no Paraná em razão da idade gestacional de da assistida, e o desconhecimento e a incompreensão dos profissionais da saúde e da assistência quanto às possibilidades de encaminhamento nestes casos, conjuntamente ao temor de responsabilização criminal que permeiam o tema, fizeram com que fosse incutido medo, culpa e dúvida na assistida. Em 8 de agosto de 2023, ela desistiu de realizar o procedimento e optou por levar a gestação a termo, com a realização de entrega voluntária para adoção. No dia 15 de novembro do ano passado, ela faleceu em decorrência do parto, trazendo ao caso já dramático pela existência de violência sexual e violência institucional, o desfecho irremediável da morte materna evitável. A história dela revela claramente ao STF as consequências das barreiras criadas pelo Estado nesses casos”, comentou Nunes.

Assistolia fetal

Outro fato trazido pelo Núcleo na manifestação é a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que regulamenta um procedimento usado por profissionais de saúde para a interrupção de gravidez. O NUDEM chama atenção para a proibição imposta no documento à realização da assistolia fetal em casos decorrentes de estupro, previstos em lei, a partir de 22 semanas. A resolução foi motivo de publicação, na última quinta-feira (04/04), de uma nota técnica assinada pela DPE-PR e outras sete Defensorias Públicas Estaduais, além da Defensoria Pública da União (DPU). As instituições pedem a revogação da resolução, por entenderem que o texto impõe restrições ao aborto legal e busca impedir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres.

“A assistolia fetal é recomendada pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde para a interrupção de gestações avançadas por ser uma técnica segura e que traz benefícios emocionais e éticos para a paciente. Mulheres e meninas não podem ser discriminadas e vitimizadas ao buscarem acessar os serviços de saúde, e a resolução do Conselho Federal de Medicina representa mais uma barreira à garantia dos direitos”, destaca Nunes.

Dados

De acordo com a manifestação, estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que em 2019 ocorreram 822 mil estupro, ou seja, uma média de quase dois casos por hora. Segundo a manifestação do NUDEM, é possível estimar que, deste total, 58.360 resultaram em gravidez. “Os números mostram um cenário gravíssimo. Outro estudo do próprio Ipea de 2011 apontou que o aborto previsto em lei foi realizado em 1,7% das vítimas adolescentes e em 2,4% das vítimas adultas. É um dado que mostra como a população não tem acesso ao direito e, por isso, estamos reforçando os argumentos técnicos no Supremo para colaborar com essa mudança necessária que impacta diretamente na vida de milhares de brasileiras”, ressaltou Nunes. 

No Paraná, segundo o NUDEM, o Fórum de Aborto Legal do Estado do Paraná (FAL-PR) estima que, em média, 280 mulheres e 1.087 meninas ficam grávidas em decorrência de estupro. “No entanto, a média anual de atendimentos de aborto legal é 69”, lembrou a defensora.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Elas engravidaram de um estuprador e não puderam abortar. Agora o caso chega ao STF”

  1. Este assunto, aborto, é emblemático do atraso da nossa sociedade. Grupos religiosos impõem suas crenças aos demais. E é um discurso que rende votos para os conservadores. Enquanto isso, gravidezes indesejáveis ocorrem todos os dias.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima