A mais épica batalha de rimas na periferia de Curitiba

Desde 2017, uma das maiores batalhas de rima da capital reúne Rap, poesia e cultura no Boqueirão

Eles querem ver sangue! Sim, todas as quintas, eles querem ver o sangue na praça. É o que a multidão clama durante o início da peleja. Há mais de seis anos, num cenário de confraternização entre os envolvidos, debate com a comunidade e hostilidade policial, a Batalha da Menô se transformou num monumento cultural e um ponto de encontro da cena do Rap.

A Menô é uma das batalhas de rima mais movimentadas de Curitiba e região, atraindo milhares de pessoas de todos os cantos da capital e visitantes de outras cidades e estados. Seguindo a filosofia do “faça você mesmo”, organização, rappers, poetas e público dialogam sobre como a noite vai funcionar. Antes de mais nada, há uma etapa de inscrição às 19h num local da praça. Após a confirmação das presenças, os MCs serão chaveados num sorteio. Na parte estrutural, uma longa extensão de energia elétrica liga a caixa de som à rede pública até a beira da quadra de esportes. Agora, a festa vai começar. 

Na quadra de esportes, a multidão se reúne e, diante do público, duas pessoas se juntam para travar uma batalha verbal. Os mestres de cerimônia organizam as ordens das rimas e agitam a plateia. A trilha sonora, pesada e envolvente, mantém os corpos em movimento. Em seguida, os mediadores, com vozes ativas, convocam as mãos para o alto e cantam versos reproduzidos pela multidão. É uma festa. Na parte final da estrofe, os adversários se posicionam e, em coro, todos fazem uma contagem regressiva: “FREESTYLE  EM  3… 2… 1… RIMA!”. Que vença o mais esperto. 

São realizados dois rounds de três minutos, nos quais cada competidor tem direito a quatro versos. O esquema é um leva, resolve e devolve em looping. As palavras abordam temas como respeito, moral, atitudes e comportamentos. Da mesma forma que o ataque, a defesa deve ser precisa e audaciosa. O inesperado é o que mais acontece e, num toque de mágica, as rimas improvisadas saem com perfeição. Parece difícil, e é. A trilha termina, os oponentes se abraçam e o público vai ao delírio. 

Nessa disputa, a voz do povo é a voz de Deus. A votação é aberta e democrática, ganha quem for mais popular. Pede-se que o público faça barulho para escolher o vencedor. Se não for unânime, levantam-se as mãos para registrar as intenções de voto. É uma forma de aperfeiçoar as margens de erro. Após o reconhecimento do primeiro resultado, começa o segundo round e tudo se repete: o clamor por sangue, a agitação dos mediadores e “FREESTYLE EM 3… 2… 1… RIMA!”.

Se a segundo round for acirrado, acontece a rodada extra de desempate; caso o vencedor mantenha a vantagem, a parada é resolvida no segundo round. A multidão decide o rumo da noite, que começa com 16 MCs, e vai sendo filtrada de forma gradual, de fase em fase, até a grande final. Apesar da atmosfera de competição, todos saem vencedores. O clima é de confraternização e acolhimento. Pronto, agora você já sabe tem noção sobre como funciona a Batalha da Menô.

Neste ano, a Batalha da Menô completa 7 anos de resistência e atuação na cultura hip-hop paranaense. Movimenta mais de 6 mil seguidores no Instagram e cerca de 80 a 250 pessoas nos eventos de rua. Foto: Danielle Freitas / @dane.foto

Nada como um dia após o outro

A Batalha da Menô é gerenciada por um coletivo cultural que busca a transformação social, dando oportunidade para pessoas, independente de classe e gênero, para produzir e realizar a arte da rima improvisada. Fundada por dois amigos, Rapê e Her, que acompanhavam algumas batalhas pela internet e organizavam algumas rodas de freestyle entre eles. Naquela época, só existia a Batalha do Muma, no bairro Portão. Devido à carência de uma cultura de rimas na região sul, os dois amigos resolveram criar uma batalha na Praça da Colonização Menonita.

Se no início houve uma certa discriminação dos moradores da região, com o passar do tempo a relação foi entrando em sintonia. Atualmente, o público da batalha é diverso e engloba os moradores do bairro e pessoas de outras regiões. Crianças passaram se inscrever nas disputas das rimas, pais começaram a frequentar o encontro. Há sim um desconforto entre a vizinhança quando o evento acontece no Bar da Menô, na frente da praça que abriga o evento em noites chuvosas. A reclamação é sobre o barulho. Do contrário, a interação é amistosa. 

Dividindo o mesmo espaço, a 4ª companhia do 20º Batalhão da PM não demonstra incômodo com a movimentação e dispensa o uso de viaturas e sirenes. Esta realidade é algo atual, mas houve tempos em que as abordagens indesejadas eram constantes. Anos atrás o movimento sofreu uma série de repressões, chegando a enquadrar todos os presentes no evento algumas vezes. Apesar disso, a batalha resistiu. As coisas melhoram quando o coletivo conseguiu o apoio da Fundação Cultural de Curitiba, em 2021, que ajudou a mediar o diálogo.

Os anos se passaram e a Batalha da Menô foi ganhando projeção. Para administrar tudo isso, formou-se um coletivo para atuar de forma voluntária na engrenagem do movimento. Hoje, o coletivo conta sete membros: Dane, Akarol 47, Levi, Nemer, Sagui, Zé e Pablo. Além disso, tem mais quatro pessoas que não estão tão ativas, mas que ainda fazem parte da equipe: Her, Rapê, Naju e Mano Caio. São atribuídas a eles as responsabilidades de organização, apresentação e criação de conteúdo audiovisual. 

Segundo os organizadores, a Batalha da Menô pretende ser um espaço de pertencimento para todos, sobretudo aos moradores da periferia, através da cultura Hip Hop desenvolver a arte da rima, da poesia e da expressão artística. Além do freestyle, o coletivo oferece espaço e visibilidade para artistas e produtores locais, por meio de exposições, pocket shows, apresentações de poesia (Menô Poesia) e edições especiais com beats de beatmakers regionais.

O DJ da noite

Na condução dos beats e efeitos sonoros, DJ GTA dita o ritmo da festa. Foto: Danielle Freitas / @dane.foto

Sem ele a noite não tem música. Ele opera um sistema completo de mixer na palma da sua mão por um aplicativo de celular. A biblioteca de samples é vasta, os botões de comando obedecem aos movimentos dos seus dedos. É preciso ser ágil. Restando poucos segundos, alguém pede para botar “aquela lá”. Ele olha firme e rola a tela infinita com centenas de faixas. Ele vence o tempo. 

Além de ambientar a disputa com as trilhas, GTA  (@gtamc777) aciona os efeitos sonoros que conduzem as expressões do duelo, do apresentador e do público. Em pé, ao lado da caixa de som portátil, ele fica com os olhos vivos e mãos em alerta por mais de 3 horas.

“Cara, o bagulho é muito louco. É uma parada que graças ao bom Deus que me deu inspiração em seguir aprendendo e querendo descobrir como funciona uma CDJ*. Foi aí que baixei um aplicativo no celular e estou ‘metendo marcha’ aos pouquinhos. São 6 meses assim, na brincadeira e treinando sozinho. Na noite, vou sincronizando os sons conforme a batalha está rolando, misturando o Rap com outros estilos, desde Funk até um Reggaeton de maneira instantânea. É uma correria”, disse o DJ.

Morador da região metropolitana, o GTA da noite cruza as fronteiras municipais todas as quintas-feiras, há mais de 5 anos. Dá uma distância média de 25 quilômetros. A volta fica para o dia seguinte, afinal, o último ônibus para Araucária saí de Curitiba quando a batalha está quase no fim. Quem tem amigo tem tudo, e ele tem um parceiro no centro da cidade para abrigá-lo.

* Compact Disc Jockey: aparelho com diversos recursos para DJs.

O mestre de cerimônias

Em sintonia no olhar com o DJ, ele pede licença para chegar e atrai a atenção de todos. Foto: Danielle Freitas / @dane.foto

Conhecido como Levi (@manol3vi), ele é mais um membro do coletivo que faz de tudo no rolê, desde o comando da apresentação, limpeza do local e ligação dos cabos de energia. Sobre energia, é o que não falta para este apresentador. Na maratona semanal, ele mantém a disposição nas três horas (às vezes quatro) de evento e conduz as mãos para o alto, fechamento das rodas, avisos paroquiais e cânticos. 

“É muito doido essa coisa de juntar a multidão envolta de duas pessoas rimando todas as quintas, faça chuva ou sol. É um sentimento indescritível estar aqui. Como é uma batalha de Rap freestyle, acontecem vários imprevistos que a gente precisa resolver na hora, mas sempre acaba tudo certo. Sabemos que tudo isso é uma movimentação que transforma vidas” relatou Levi.

Além destas funções, o mestre de cerimônias auxilia no planejamento dos eventos que ocorrem na Praça Menonitas e em outras batalhas. No último evento de março, por exemplo, foi feita uma seletiva dos nomes que vão disputar um evento na Fazenda Rio Grande, região metropolitana. “Temos que ser unidos mesmo… Se a gente não fizer, ninguém vai fazer por nós. É importante formar estas correntes, pois o Rap é que nos mantém unidos”.

Atualmente, as batalhas da Menô e da Parigot (Sitio Cercado) são as mais almejadas entre os simpatizantes. A zona sul tem um histórico de ter as batalhas mais antigas de Curitiba e movimentadas de quantidade de público. Com isso, criou-se uma forte identidade na região e o impulsionamento de artistas que estão conquistando seus espaços. Tal representatividade é tão grande, de modo que muitas pessoas atravessam a cidade todas as quintas-feiras rumo ao Boqueirão.

A poeta

Quando o mestre de cerimônia chama o seu nome, os adversários mergulham no nervosismo. Foto: Danielle Freitas / @dane.foto

Reconhecida na cena, a Poeta Gabriela (@poetagabriela) é uma expoente na arte das rimas e da poesia. Dona de uma voz potente e marcante, a poeta é educadora social, produtora cultural e envolvida no movimento das poesias faladas — conhecido como Slam —, no Slam das Gurias (@SlamDasGuriasCwb), direcionado ao empoderamento feminino.

No último encontro de março, foi única mulher inscrita. Em outras noites, houveram a participação de outras mulheres, mas, ainda assim, numa proporção menor se comparado com os homens. Gabriela relata que o envolvimento feminino passa por muitas dificuldades e, que, apesar do movimento acolhedor, as meninas se sentem deslocados nestes lugares. E, segundo a ela, isso não ocorre apenas na Batalha da Menô, mas em todas as batalhas, de modo geral.

“É um movimento dominado pelos homens e pelo esse discurso muitas vezes misógino, patriarcal. Então, é um movimento muito difícil de acontecer. A gente tenta se fortalecer entre nós, fazer um uma rede de apoio, sabe? Mas ainda somos muito poucas que se comparado à quantidade de homens, por conta dessa questão estrutural mesmo”, disse Gabriela.

A poeta admite que está o tempo todo rimando na sua própria cabeça, até quando está sozinha. Acredita que é realmente um exercício que pode ser aprimorado com a persistência e dedicação. Engajada nas batalhas desde 2019, diz que passou a tomar a iniciativa mesmo errando ou travando, como forma de aprendizado e crescimento.

Sobre a popularização das batalhas, reitera: “é incrível que hoje as batalhas estejam sendo reconhecidas como um patrimônio cultural. Isso foi um movimento importante, mas isso não é o suficiente. Parece que estamos vencendo a burocracia, porém, na prática, ainda acontece muita repressão”.

Quando convocada à batalha, incorpora elementos do Rap em suas rimas e emite uma voz convicta e precisa. Os adversários vão ficando pelo caminho e, na etapa seguinte, a Poeta Gabriela encontra o seu amigo Detroit em um duelo de gigantes.

O velocista

O velocista das rimas que desafia o metrônomo. Foto: Danielle Freitas / @dane.foto

Nascido e criado na zona sul, Detroit (@_detroitmc) é uma presença confirmada em todas as edições da Batalha Menô e em outras que ocorrem na região. Conforme o ranking atualizado do Coletivo da Menô, o MC ocupa a primeira posição. A classificação geral conta com 20 nomes, e numa espécie de competição de pontos corridos. Perseverante e colecionador de grandes duelos, o rapper tem se destacado em diversas batalhas que ocorrem na região.

Detroit conta que começou a ouvir Rap quando criança, entre os 7 e 8 anos. As batalhas e o envolvimento com o freestyle chegaram na transição do ensino fundamental para o médio, no início da adolescência. Foi através da Batalha da Parigot que ele começou a participar da cena, e está aproximação lhe direcionou para a Menô.

Assim como a Poeta Gabriela, Detroit é obstinado pela preparação contínua.“Treino e estudo bastante, mas é tudo improviso mesmo. Em alguns momentos, nem sempre temos a certeza do que vamos dizer.  É uma parada intensa e assim buscamos referências, contextos e trabalhamos a construção de frases a partir de algumas palavras soltas na batalha”.

A fotógrafa

Com uma câmera nas mãos, os olhos que capturam são dela. Foto: Danielle Freitas / Arquivo pessoal.

Enquanto os duelos se acirram, Dane (@rfdane) caminha até os oponentes e consegue ter a vista mais exclusiva da noite e clica no disparador. Os movimentos são tão silenciosos ao ponto dos registros capturarem o natural. Às vezes um MC é esperto e a coloca na trama da improvisação. É dela todas as imagens que compõem este texto e boa parte das mídias sociais da Batalha da Menô. 

Designer e Publicitária em formação, Dane também é poeta. Além de fotógrafa oficial da batalha, ela exerce múltiplas funções na Menô — desde a comunicação interna, redes sociais, marketing, parcerias, questões técnicas e entre outros. 

Dane diz que a fotografia ajudou a quebrar o gelo, em 2022, quando começou a frequentar a Praça Menonitas e ingressar no coletivo. Antes, havia um certo receio e insegurança, mas logo foram superadas pelo acolhimento e pela sensação de pertencimento. Na mesma sintonia, outras falas e gestos dos frequentadores demonstram ser algo verdadeiro, e, a cada edição, novos rostos vão ao encontro da Menô e saem íntimos do evento.


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Este texto é parte do projeto Periferias Plurais, em que o Plural convida jovens de Curitiba e região para falar de suas vidas e das suas comunidades. O projeto tem apoio do escritório de advocacia Gasam.

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4 comentários em “A mais épica batalha de rimas na periferia de Curitiba”

  1. Samara de Carvalho Beca Pedro

    Incrível de maisss, tranforma totalmente o ambiente de batalha com a potênciado dj, as batalhas por si ja são espetaculares demais e amo presencialas, tive o prazer de participar se algumas com o DJ e MC Gta.

  2. Genial essa reportagem! Fui seguindo de módulo em módulo, como num filme. Leva jeito de documentário. Parabéns ao Eric Rodrigues e, pelas grandes imagens, a Danielle Freitas. Esta juventude é a grande riqueza da Cidade. Vida longa ao Menô!

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