“Isolamento”

Um conto de Susan Blum em dias de pandemia do coronavírus

2020.

Curitiba.

23 de março.

Coronavírus COVID-19

Isolamento voluntário.

Campainha. Desconfiada. Olho mágico. Surpresa. Depois de meses. Ali está o ex-namorado.

Apesar de saber, pergunta:

“Quem é?”

“Sou eu”

A voz ainda mexe com ela.

Abre a porta e quase o cumprimenta. Mas lembra de manter distância. Abaixa a mão. O abraço fica na vontade.

Isolamento social mexe com a gente.

Distância. Álcool gel. Lavar as mãos. 

Sentam-se então no sofá. Nos extremos.

Ele pede desculpas, avisa que cortaram a água do seu bairro: precisa tomar um banho.

Que não tem familiares. Que os amigos não abriram a porta. Que lembrou dela.

Estas palavras foram um banho de água fria em seus desejos ardentes. Vontade de expulsá-lo.

O cheiro dele – que sempre a fascinou – fez mudar de ideia.

Isolamento social mexe com a gente.

Ofereceu box, água, sabonete e toalha.

Enquanto ele assoviava feliz no banho, abriu a caixa que estava embaixo da cama. Lá ainda estavam o robe e chinelos.

Deixou em cima da cama. Avisou em voz alta. Foi para a cozinha.

Lá, colocou o vinho na geladeira e preparou noisettes congelados.

“É só para mim” – tentava se convencer.

Mal ouviu o chuveiro desligando, gritou sobre os comes e bebes.

Mordeu a língua…

… mas isolamento social mexe com a gente.

Aquele sorriso gostoso, com cheiro de homem, entrou na cozinha.

Tentou se concentrar na conversa leve sobre cinema, livros e amenidades.

Não queriam falar do assunto recorrente.

As risadas apagaram as distâncias profiláticas.

De repente, já estavam se abraçando.

Isolamento social mexe com a gente.

Abriu os olhos depois do beijo, e já estavam na cama.

Corpos suados felizes repousavam esquecidos do mundo.

Era só um banho. Mas a noite foi brindada com sonos entrelaçados.

Isolamento social mexe com a gente.

Acordam cedo, com os pássaros – agora se escutam até os pássaros!

Vão para a cozinha. Ovos mexidos, chocolate, suco, frutas, coisas da despensa.

Ela nunca vê TV nesta hora, mas é o hábito dele, e ela permite.

Ali a realidade mata o sonho.

Que a pandemia piorou. Que agora é decretada quarentena forçada. Que NINGUÉM deve sair de casa. Que o número de mortos triplicou. Que o número de infectados explodiu. Que o cheiro da doença e da morte parece penetrar em todos os poros.

Sem ar       ela vai até a sacada          e observa         o vazio.

Atrás dela, cheira o medo dele.

Não sabe se é medo da situação lá fora ou aqui dentro.

Isolamento social, não… quarentena mexe com a gente.

Não podem burlar a regra.

Ele fica.

Mas os mantimentos que ela comprou eram para UMA pessoa.

E os dias passam.

E começa a implicar toda vez que ele pega algo para comer ou beber.

E os banhos parecem demorados.

E a TV ligada vai irritando.

E começam a discutir por qualquer coisa.

Quarentena mexe com a gente.

Não precisavam mais da distância. Mas a raiva não permite mais uma aproximação.

Cada refeição, cada banho, cada briga pelo canal diferente, traz distanciamento.

Alimenta a raiva, o ressentimento, o ódio.

Uma noite, ela vai até a cozinha e … ele está comendo o último chocolate.

Ela pula em cima dele.

Leoa feroz com instinto de preservação.

Quarentena mexe com a gente.

No dia seguinte, ela acorda com o som da TV. Nela, avisam que tudo se acalmou.

 A quarentena foi revogada.

Levanta devagar do chão da cozinha, pegajosa pelo líquido avermelhado.

Quarentena mexe com a gente.

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