“A vida é como um pedaço de queijo”

“Antigamente você ia numa venda e dizia: me vê duzentos gramas de queijo"

Comprar queijo hoje em dia se tornou uma tarefa difícil. São centenas de tipos e tamanhos. Você precisa estar com celular na mão, para pesquisar a história, procedência, características. E a cada semana surge um diferente – pouco ou mais amarelado, com a casca rosa, laranja, até azul. Daqui a pouco vão exigir diploma de pós-graduação no supermercado.

Antigamente você ia numa venda e dizia: me vê duzentos gramas de queijo. Hoje, precisa estudar se aquele queijo vai combinar com o vinho que você comprou, com a comida que irá preparar, com a cor da camisa e o estilo da barba. E dependendo do naipe das visitas que receberá, poderá ser fortemente julgado e passar vergonha nos stories do Insta.

Há queijos ideais para certos tipos de bigodes. O Casu Marzu é recomendável para bigodes curvos e é comum você soltar umas gírias italianas enquanto come. Mas se der caganeira, o bigode-sorriso não vai ornar. Para mulheres de bigode, existe o queijo Ciel de Charlevoix, que harmoniza com vinho do Porto, reforçando os traços genéticos com bigodudas portuguesas de outrora. Para bigodes curtinhos, tem o queijo alemão Milbenkase que possui ácaros em sua composição. O bigode mais ralo dificulta que um ácaro buliçoso queira usar pelos como se fossem cipós. Já os bigodes grossos estilo Friedrich Nietzsche, podem curtir o queijo Kochkäse, produzido no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Além de representar profundamente a alma alemã, o labor deste queijo consiste em deixar o leite parado por oito dias, até “apodrecer” para depois, produzi-lo. Uma verdadeira epopeia, quase o tempo que Nietzche levou para escrever “Assim falou Zaratustra”. No caso do livro, foram dez dias e muitos charutos. Caso você queira vivenciar a experiência completa deste queijo, e não tenha um bigode como o dele, é possível usar um postiço.

Quando eu era novo, os tipos de queijos se dividiam em: queijo quadradão amarelo (aquele que a gente tirava umas lascas com o ralador para colocar na sopa), queijo da Vó Naia (caseiro, que ela trazia de Piraí do Sul para nós) e queijo “bole” (no caso, o requeijão cremoso que vem no vidro). Não fale pra ninguém, mas quando eu pego o vidro de Requeijão no freezer, sussurro bem baixinho só para minha memória ouvir: queijo “bole”. “Bole” é uma corruptela da palavra mole, só que dita num linguajar de criança que troca as letras. Sim, eu sei que é ridículo. Por isso eu pedi para não contar pra ninguém. 

Certa vez, fomos tomar café na casa da tia Liete e ela serviu pedaços de queijo Gorgonzola (aquele que tem cheiro estranho). Ela me ofereceu e eu disse que nunca tinha comido. Meu comentário gerou um climão. Minha mãe ficou tão brava, que me obrigou a comer queijo durante a semana toda. Acho que meu trauma com queijos começou ali.

Meu problema não é com o queijo em si, mas com a dificuldade de escolha. Nunca lidei bem com o livre arbítrio. Sou daqueles que prefere comer um “PF” no restaurante, porque o prato já vem pronto e pensado. Amo a ideia de alguém ter pensado naquele prato, nas proporções de carboidratos e proteína. Já basta eu ter que passar o dia optando por um pincel chato ou redondo para pintar uma aquarela. Aff, como existem tipos de pincéis!

A vida se tornou complicada. O tempo todo temos que escolher entre um ou outro lado. Fazer download ou deletar fotos. Nosso HD não comporta tantas informações. E sou um acumulador doentio. Para mim é difícil abdicar dos queijos que não vou comprar. Na hora me bate uma dúvida se o melhor não é justamente o que estou deixando para trás. Acho que essa sensação se intensificou para mim na infância, quando o Tio Patinhas deixava cair umas moedas ao carregá-las de carrinho de mão, ou quando pulava um salame do sanduíche do Salsicha no Scooby-Doo. Porra!

Na quarentena fica ainda mais difícil ser prático. Você planeja ir rapidamente ao mercado, pegar as coisas e vazar. Ter menos contato possível com pessoas. Coloca máscara, passa álcool gel a cada dez minutos. Até certo momento, o plano funciona bem, mas quando chego na vitrine dos queijos, fodeu tudo. Um lado do cérebro diz: “Pega logo um, todos são gostosos”, enquanto o outro fala: “Faça como tua tia Liete e experimente todos”. A curiosidade é a inimiga da indecisão. Não estranhe se um dia você me encontrar na frente do setor dos queijos, em posição de lótus, como se meditasse no alto do Pico Paraná.

Às vezes, enquanto estou comprando queijos, vejo o fantasma de minha tia Liete. É como se eu tivesse numa prova prática e a cada escolha equivocada, levo uma paulada na mão e ouço ela dizer: “Burro!”.

Descobri que há um grupo de funcionários do mercado onde eu vou que torcem para que eu escolha um dos queijos. Cronometram, fazem gráficos, estatísticas. Apostam. Na maioria das vezes em que desisto de comprar, eles ficam frustrados e marcam “mais um dia” numa lousa. Fiquei sabendo da existência deles quando peguei um Gouda e fui aplaudido no caixa. Fiquei tão constrangido que fugi sem levar nada.

Esses dias meu amigo Carlos Machado me contou que aproveitou a quarentena para fazer um queijo. Eu fiquei muito impressionado, porque nunca imaginei alguém fazendo queijo. Sempre encontrei os queijos prontos, lá naquela bendita vitrine do supermercado. Mas pasmem – ele me mostrou fotos do processo com leite, vinagre e margarina. Que horror! Só falta alguém me dizer agora que os Baconzitos também não nascem em árvores.

Vou terminar este textão com uma fábula tirada de um filme do Leslie Nielsen. Imagine aquela cena típica de filme de máfia em que o chefe dos gângsteres está dando uma palestra e todos os mafiosos se calam para ouvi-lo. Nesses momentos o chefão sempre diz algo inesquecível, aquele tipo de frase que só o Frank Miller consegue conceber. Ninguém respira, até que o velho fala: “A vida é como um pedaço de queijo…” e abandona o palco. Todos esperam uma conclusão, que não vem. A plateia, em silêncio, acompanha o movimento do líder voltando até sua mesa e pensa: “Que porra que ele quis dizer com isso?”.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em ““A vida é como um pedaço de queijo””

  1. Leandro Cavassin Neto

    Estamos juntos nessas indecisões!! Gostava muito de video games, dos consoles do atari, master system, game driver e super nintendo, esse último particularmente os jogos de futebol porque era só chegar e jogar. Com a idade veio filhos e mais responsabilidades e tive que eliminar da lista este hobby, porém fui jogar futebol no PS3 à convite de meu sobrinho, ele demorou 20 minutos para configurar o time dele, me senti velho e chato por reclamar demais, queria jogar logo, quando finalmente começou o jogo percebi que tinha que ter um curso teórico, prático e psicológico para acompanhar todas as opções disponíveis de passes, chutes e dribles. Resumindo, “a vida é um FIFA soccer 2019…..”

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