Flávio de Carvalho, um artista que nos anos 1950 já tinha ousado bastante e sabia o quanto isso trazia de críticas ruins, deu um conselho precioso à jovem Jocy de Oliveira. Era 1959 e ela tinha acabado de lançar seu primeiro álbum, um LP de apenas 22 minutos intitulado “A Música Século 20 de Jocy”. Segundo ele, o mais importante era guardar as críticas ruins, porque elas mostrariam a mediocridade da época em que o disco saiu.
Críticas ruins não faltaram, e hoje Jocy, aos 85 anos, pode avaliar com uma boa distância seu trabalho. da época, inclusive pelas críticas que recebeu. Segundo ela, o LP não foi compreendido porque ia contra tudo o que a música popular brasileira estava fazendo naquele momento. Exatamente no ponto inicial da Bossa Nova, no auge dos Anos Dourados, ela usou uma batida à la João Gilberto para fazer todo tipo de experimentação.
A primeira faixa do disco, de apenas 56 segundos, começa com um tiro. E ao invés de peixinhos e beijinhos a nadar no mar, fala de uma moça chamada Sofia que se suicidou. Enquanto as rádios tocavam sucessos sobre Ipanema e o Leblon, Jocy, aos 23 anos, falava de incêndios em barracos de favelas, e terminava o disco com um curioso “Samba Gregoriano”.
Mas as letras não eram a maior audácia: as inovações musicais eram ainda maiores, e já previam a artista revolucionária que Jocy iria se tornar, tanto como pianista quanto nas suas composições. Harmonias pouco convencionais, ritmos inusitados e orquestrações incomuns marcavam as faixas do 45 rpm.
Esse disco, que a própria Jocy costuma chamar de “o segredo mais bem guardado da música brasileira”, foi retomado nos últimos dois anos em um espírito completamente diferente. Relançado na Europa com sucesso, o LP acabou tendo também uma nova tiragem no Brasil, lançada pela Nada Nada Discos. E curiosamente a edição esgotou em pouquíssimo tempo.
Claro: entre o lançamento do disco original e a nova fornada passaram-se seis décadas que tornaram as experimentações de Jocy muito mais palatáveis. Mas, mais importante, ela se transformou em um símbolo da música nova brasileira.
No topo do mundo
A lista de compositores e instrumentistas com quem Jocy conviveu e trabalhou ao longo de sua carreira mais parece um panteão do século 20. Como pianista, era elogiada por Stravinsky, com quem tem longa correspondência. Como compositora, fez parceria com o italiano Luciano Berio, o homem que revolucionou a música eletroacústica. Xenakis, Messiaen, John Cage – todos conheceram Jocy e a admiravam.
O livro “Diálogo com Cartas”, escrito por ela para revelar as ideias que compartilhou com todos esses gênios, é um documento ímpar da música brasileira – não à toa, ganhou o Jabuti quando foi lançado. Lá, você vê a jovem Jocy, casada com o respeitadíssimo Eleazar de Carvalho, viajando pela Europa para tocarem juntos – e encantando os músicos mais importantes do período.
Embora Eleazar tivesse fama de um músico mais conservador, ela pendia exatamente para o lado oposto: estava sempre atenta às vanguardas, e em pouco tempo estava muito adiante do que o primeiro disco-manifesto a tinha levado.
Como pianista, foi a primeira a gravar uma integral do “Catálogo de Pássaros” de Olivier Messiaen, uma obra fundamental para o piano. Nas composições, escrevia óperas que cada vez mais turvavam os limites entre a música, o texto e as artes cênicas, e que incorporavam a eletrônica e harmonias pós-tonais impressionantes.
“A Jocy ocupa um espaço único na produção de vanguarda, no Brasil. Todas as suas obras desde o início têm um componente teatral que rompe com as fronteiras de um gênero estritamente musical”, diz o maestro e compositor Harry Crowl. “Ela conviveu com o que havia de mais experimental na Europa e EUA, nos anos 60 e 70. Raros compositores brasileiros tiveram essa oportunidade. Essa vivência permitiu que ela desenvolvesse um estilo muito pessoal”, diz.
Ainda um segredo
Embora tenha hoje amplo reconhecimento internacional, a música de Jocy ainda enfrenta barreiras. Para a maestrina Ingrid Stein, que fez seu mestrado a partir da obra de Jocy, isso sem dúvida tem a ver com uma questão de gênero. “Ela é mulher, claro que vai ser invisibilizada”, diz Ingrid.
Segundo ela, a compositora tem entre outros méritos a vantagem de saber construir pontes: entre a música e outras artes e entre o público e a música. “Ela fez muito pela divulgação de Messiaen, por exemplo. São coisas que os músicos conheceriam”, diz ela, “mas talvez não as pessoas de outras artes”, afirma Ingrid, ressaltando a homenagem que Fernanda Montenegro, por exemplo, fez à curitibana em uma Flip, falando sobre as portas que ela abriu para a arte nacional.
Outra barreira em que Jocy ainda esbarra tem a ver com a geografia. Seguindo a história bíblica, a compositora não faz milagres em sua terra natal: em Curitiba, foram raríssimas as homenagens a ela, e até mesmo os convites para que ela se apresenta na cidade são estranhamente escassos.
Alvaro Collaço, produtor musical que montou um espetáculo com Jocy na cidade, conseguiu romper um silêncio de 30 anos de Curitiba em relação à sua mais célebre compositora. Em 2013, dentro do projeto Ópera Ilustrada, ele trouxe Jocy para apresentar uma ópera chamada “Sol(o)”, composta a partir de quadros isolados e que tinha muito a ver com a temática feminina.
“Antes disso, a última vez que ela tinha vindo a Curitiba se apresentar foi os anos 1980, para tocar Satie”, diz Collaço. E antes, só mesmo as apresentações da infância e juventude, ou quando veio acompanhar a Sinfônica Brasileira, regida por Eleazar.
Segundo Collaço, as condições para realizar o projeto estavam longe de ser ideais, mas a própria Jocy decidiu que precisava ir em frente. “Era muito importante para ela apresentar a música que ela compôs aqui em Curitiba”, conta ele.
No entanto, apesar de sua importância, Jocy jamais foi chamada para se apresentar com a Sinfônica do Paraná ou com a Camerata, nem jamais recebeu um convite para a Oficina de Música da cidade. Collaço diz que isso tem muito a ver com o estranhamento que a música contemporânea ainda causa nos ouvintes, mas assim como Ingrid Stein vê um componente a mais na mistura. “Acho que tem muito a ver com ela ser mulher. Se fosse homem talvez já tivesse tido todas as homenagens”, diz.