O escritor Felipe Franco Munhoz lançou em Curitiba nesta semana seu mais recente livro, Identidades. O lançamento, na Arte & Letra, foi mais para trazer o livro à cidade, onde Felipe se formou em Comunicação, pela UFPR. Em São Paulo, Identidades já circula desde o ano passado.
Rotulado como romance experimental, o livro traz uma leitura da lenda do Fausto, na São Paulo moderna. Usando artifícios de teatro, poesia e prosa, o texto é difícil, estranho e denso – altamente criativo e original.
Como sempre faz às sextas, o Plural traz um trecho de literatura produzida por gente ligada a Curitiba. Então, com vocês, dois segmentos de Identidades.
Fausto (que é mulher, mas em trajes – e corte
de cabelo – semimasculinos), Coro e Suposto
Mefistófeles em vagão de metrô. O vagão é
representado integrando o quarto, no canto oposto
à cama. Estrépito de metrô em movimento.
Fausto
1. Mal-entendido
Mas, ora, ora: o Manco.
Procuro à lupa – eras;
agora, quem diria,
(sentando-se ao meu lado no metrô)
estamos flanco a flanco.
Pois não?
Por quê?
(Sem tino, a breve-nula reação.)
No pé direito, um calço
disfarça a vossa pata.
Cifé,
eu vi. No frio, nos olhos
tão velhos quanto a morte –
são olhos de outro corpo,
são feitos de ouro exausto.
Diá,
eu sei.
Amiga, não entendo.
Formal:
meu nome, claro, Fausto.
(E ri; pensei De Marlowe, Goethe ou Mann?)
Deboche? Embora moça,
no rés,
eu já roí o mundo,
provei,
eu já sorvi da fruta;
ruí,
eu fui ao triste fundo,
feroz,
e trouxe a força bruta.
(Defesa, medo?, ação!, instinto, apuro, mágica,
dobrou-me o rosno, a tropa: alexandrino clássico.)
Resolve ameaçar o Cujo Mefistófeles?
Perdão, senhor Diabo.
Sinhô.
(Tirava, de seu bolso, a convenção.)
Da sombra às vossas ordens,
Patrão,
disponde: servo humilde
no detto Malebolge;
Barão,
em troca, apenas pouco:
desejo um cetro: o sexo
que me pertence, inverso.
Tenciona usá-lo?, aplique.
Demais:
foder aquela vulva.
(Reprimem rédeas, brusco, e Sumaré,
alerta-nos mulher sem vida: a Voz.)
Aquela quem? Helena?
De Troia? Tss. A Lotte.
(Surgindo, em suas mãos, um bisturi.)
Caneta, nem aduzo;
pois tinta vem do pulso.
Vencido. Em casa; desça.
Blecaute e começa a tocar Kris Kristofferson:
The silver tongued devil and I; a partir de 2’02”,
até o final
O vagão desapareceu.
2. Silver tongued devil
SUPOSTO MEFISTÓFELES (aparte)
Espírito que nega ou carne afirmativa?
Volta-se para Fausto.
Dispensa, o nosso pacto, o nosso trato, facas.
Em baixo-baixo-ventre, eu planto imenso
membro –
e faz papel de sangue, o mais cruel dos sêmens.
FAUSTO
Ai de mim!,
logo o Rei
da Mentira.
SUPOSTO MEFISTÓFELES (aparte)
Do Mentiras.
FAUSTO
Não trapacearíeis?, não?
(aparte) Socorro, senso!
SUPOSTO MEFISTÓFELES
Anseia, louco – ou louca? –, erectus novidade;
não anseia?
FAUSTO
Louco! Louco!
SUPOSTO MEFISTÓFELES
Louca, Doutora Fausto: ainda falta o cetro,
robusto fruto içado após selvagem sexo.
FAUSTO
Mas eu sou –
SUPOSTO MEFISTÓFELES
Perfeito ato; um dia – aguarde e Bom proveito!
FAUSTO (tirando a roupa)
Ai de mim!
Qu’esta vil canoa vire veleiro,
pois; com bravo mastro, além da cidade,
nuvens, lua – Lotte, enfim, satisfeita.
SUPOSTO MEFISTÓFELES
Primeiro às nuvens, nós. Pacto!, ao trato!
(aparte) Inocente.
Blecaute e começa a tocar Milton Nascimento:
Encontros e despedidas; em 2’04”, fade out –
simultaneamente, preparando as próximas sensações,
Milton mescla-se com Miles Davis: Bitches Brew
(fade in); a partir de 37”, até 2’11”.
sonho
sertão nenhum ruído em plena praça
vazia sempre tão voraz inquieta
nenhuma voz confusa passa nada
abri o livro um livro invicto rosa
agora nu porque na pressa a capa
desfeita mas na capa havia cummings
poeta aqui no topo desta escada
alcei meus pés à ponta corpo rijo
flutuam sobre minhas mãos palavras
parece até que oferto livro verso
no altar sem deus somente aguardo chuva
carrega tinta e mágoa aquela nuvem
aguardo
aguardo
a chuva
e ela chega
silente e não com água descem pontos
parêntesis
vírgulas
traços
descem fartos