A crônica não mata – Parte 4

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Contei para minhas filhas, há uma semana, a história do Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Ela fala da relação entre uma estátua ricamente adornada e uma andorinha em peregrinação para o Egito. O pássaro, a pedido da estátua, noite após noite a destitui de suas pompas — olhos de safira, rubis no punho da espada, trajes de ouro — para redistribuí-las entre os mais pobres. Ao fim do conto a andorinha morre de frio e o coração de chumbo do Príncipe Feliz se parte em dois. Ao ver a estátua despojada de seu luxo, uma autoridade qualquer manda derretê-la, dizendo: “Se perdeu a beleza, perdeu a utilidade”. Minhas filhas, indignadas, desaprovaram o argumento. Mas acharam a história bonita.

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Em tempos de extrema feiura não se deve menosprezar a beleza que se pode extrair das menores coisas. Aqui em casa nada se desperdiça. Dia desses uma varejeira pousou no topo de uma pirâmide de mimosas, na mesa da cozinha. De imediato as crianças se entregaram a um curioso debate acerca do colorido metálico de certos dípteros. Qual mosca, afinal, seria a mais bela: a de bunda azul, a de bunda dourada, a de bunda verde, a de bunda vermelha? Todas foram muito bem avaliadas, mas coube à minha caçula proferir a austera sentença final: “Prefiro mesmo a de bunda esmagada”.

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Levei minha filha mais velha a um rápido passeio dominical. É preciso exercitar as pernas, principalmente aquelas que ainda têm muito que crescer. Saímos mascarados, bem cedo, as calçadas vazias, e na rua Maria Clara avistamos algo que de longe se assemelhava a uma mulher desmaiada. Mas não, impressão nossa, era só um manequim de plástico, feminino, caído junto ao muro do Cemitério Luterano. Suas mãos haviam sido amarradas entre os joelhos. Tudo naquela imensa boneca era horror, nudez e imobilidade. Olhei para minha filha, sem saber o que dizer. E ela olhou para o céu, à procura de uma andorinha.

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Nas quadras ao redor do HC encontramos, jogadas pelo chão, como se descartadas às pressas, diversas máscaras de pano. Lixo comum, feito bitucas de cigarro, preservativos, pacotes de salgadinho, panfletos mentirosos. Logo me lembrei de Nelson Rodrigues, para quem apenas o rosto humano seria indecente. Poderíamos todos andar nus pela cidade, sem problema algum, desde que escondêssemos a cara. Hoje, mais do que nunca, o brasileiro desmascarado é um devasso, um perverso.

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A crônica não mata, não canso de repetir. Mas trata, sim, de assassinos e de suas vítimas. Vejamos o caso de Harmódio e Aristogíton, dois amantes gefireus até hoje conhecidos como tiranicidas. Sua história foi registrada por Heródoto, Tucídides e Aristóteles e, mesmo assim, continua mal contada. Não vou, portanto, me estender sobre ela. Basta dizer que o casal apunhalou e matou Hiparco, irmão do tirano Hípias e filho de Pisístrato, durante uma procissão em Atenas, em 514 a.C. O atentado deu início ao movimento que, poucos anos depois, restauraria a democracia na pólis. Executados por Hípias, os tiranicidas acabaram enaltecidos pela posteridade que, em sua homenagem, fundiu duas gloriosas esculturas em bronze, as primeiras representações de mortais admitidas na Ágora ateniense. Harmódio e Aristogíton se tornaram, inclusive, objeto de culto popular. Suas estátuas, assim como o pálido manequim do Cemitério Luterano, também estão nuas. Mas, nelas, tudo é movimento, músculo, expansão.

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Leio no jornal que certo príncipe Emanuel, de Liechtenstein, pediu ao Ministério do Meio Ambiente romeno uma autorização para ir àquele país matar a tiros uma ursa que vinha causando problemas aos agricultores locais. Obtida a licença, o príncipe e seu séquito partiram para a Romênia, imagino que excitados pela perspectiva de balear, a distância, um grande animal desarmado. E foi isso que fizeram. O príncipe, no entanto, não alvejou a ursa a que teria o controverso direito. Matou, não se sabe se por engano ou interesse esportivo, o maior urso da Europa. Arthur, como era chamado, morreu a 13 de março de 2021, aos 17 anos. Sua Alteza voltou para casa levando o cadáver, mas sabe-se que também morrerá um dia, e que os cronistas, então, falarão de sua morte em termos obsequiosamente burocráticos, à altura de sua nulidade.

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O urso que mais me comove em toda a literatura está no romance Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy. Ele aparece de crinolina, quase no fim do livro, dançando num saloon, ao som de um realejo. Irrompe uma briga e, devido a uma desinteligência qualquer, alguém puxa um revólver e o fere na barriga, acho que duas vezes. Condicionado, o animal ainda tenta concluir seu número, e continua a rodopiar enquanto sangra e se lamenta, mas não resiste e acaba morrendo em plena ribalta. Uma das testemunhas do crime emenda então um longo discurso, frio e filosófico, ao fim do qual assim resume a diversidade da vida na Terra: “Há ursos que dançam, há ursos que não”.

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Ainda criança conheci um homem de boa fama, já velho, que vivia às margens da BR-116. Certa vez uma carreta estacionou diante de seu sítio. Dela desembarcou um sujeito carregando uma caixa de papelão. Lá dentro uma preguiça agonizava. O caminhoneiro contou que a comprara no Norte e que planejava dá-la de presente aos filhos pequenos, no Rio Grande do Sul. O bicho, porém, estava morrendo. Recusava comida. Não aceitava nada que se lhe desse, nem sequer uma banana. “Num posto de gasolina”, explicou-se o caminhoneiro, “me disseram que procurasse o senhor”. O velho apanhou a caixa. Aceitou a incumbência de salvar a preguiça, resgatando-a do viajante. Experimentou dar-lhe folhas de inúmeras árvores, até ela finalmente se interessar por uma ameixeira-amarela. Foi ali que o velho a largou, sossegada, na fé de que pudesse ainda se recuperar. No dia seguinte, um vizinho apareceu em sua casa, armado, dizendo ter avistado em seu pomar um “macaco diferente”. Tinha acabado de abatê-lo a tiros. Seu corpo, informou, ainda boiava no tanque de tilápias, à sombra da ameixeira. “O compadre venha ver”, dizia o atirador, a espingarda debaixo do braço. “Venha ver que beleza!”

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Aqueles três homens, amalgamados — o carreteiro, o velho e o atirador —, durante muito tempo representaram para mim a mais perfeita síntese do país onde, poucos anos antes, eu havia nascido.

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Em seu poema épico Caramuru, o frei agostiniano Santa Rita Durão, ao discorrer sobre a extravagância da fauna brasileira, registrou os seguintes versos a respeito da preguiça: “Entre outros bichos de que o bosque abunda/ vê-se o espelho da gente, que é remissa/ no animal torpe de figura imunda/ a que o nome pusemos de preguiça”. Reconheço a qualidade técnica do poeta, mas deixo aqui, contra tais calúnias, o meu laico protesto.

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Luis Fernando Verissimo, numa crônica dos anos 1970, assim definiu a preguiça: “aquele bicho que passa a vida pendurado pelo rabo, de cabeça para baixo, e se dedica à contemplação das coisas pelo inverso”. Lembro da minha perplexidade de menino ao ler aquilo. Mas como? As preguiças não têm rabos preênseis, e sim um cotoco mínimo, incapaz de agarrar-se a qualquer coisa! Como um escritor podia não saber daquilo, se eu, uma criança, já sabia? Confesso que na época senti por aquele cronista desavisado uma espécie de piedade, logo depois promovida a simpatia e admiração. É que ambos gostávamos muito daquele “macaco que deu errado” e que tanto se esforçava “para não chamar a atenção”. Nesse sentido, concluí, tínhamos algo a aprender com as preguiças. Um tanto de discrição e, quem sabe, certa sabedoria animal, em particular no trato com o tempo que já nos falta e as árvores que ainda nos restam.


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