Insônia

Acordo. O braço de R. envolve meu peito. Afasto-o com delicadeza para não despertá-la. Por um tempo indefinido, olho através da penumbra as coisas no criado-mudo: copo d’água pela metade, paracetamol, óculos, cigarros, livro. Minha boca está amarga. Não queria ter acordado agora, no meio da madrugada, não queria voltar a esse exame exausto, a essa afinidade perdida. Mas algo me acordou.

Vou até a sala e, de passagem, vejo refletido na porta de vidro do quarto meu fantasma provisório. Na cozinha percebo que estou de cuecas, e está frio. Volto, me visto (com cuidado para não despertá-la). Decido aquecer um resto de sopa.

Diante do fogão, as mãos cruzadas para reunir pensamentos, olho a chama azul sob a panela de aço. Penso no que me acordou.

Deve ter sido esta sensação mórbida que me acompanha ultimamente. Tenho pensado demais no fim do mundo. Aquecimento global. Derretimento das calotas polares. O mar subindo. Incêndios que escurecem países. Desertos se formando. Tempestades longas, inundações avassaladoras. Vagas de lixo flutuante.

Nesse cenário sinistro, desfilam por minha mente legiões de emigrantes desesperados que fogem da pobreza extrema gerada pelo capitalismo e buscam chegar às ilhas do dinheiro, da paz aparente e da civilidade. Ilhas conquistadas através de uma exploração atroz, como essa velha Europa, em que vim tentar me esconder da estupidez que governa o meu país e da ubiquidade da miséria.

A primeira borbulha sobe na sopa.

Não fiz nada para deter isso (as mãos se apertam, eu quase rezo, mas me censuro, só creio em deus quando estou aflito). Vivi acima (ou abaixo) do futuro dos meus filhos. E logo mais a merda toda que produzimos, nesse solipsismo produtivo, vai nos afogar.

Sófocles, Shakespeare, Dante. Pitágoras, Newton, Galileu. Platão, Santo Agostinho, Descartes, Marx… para quê? Talvez só para ilustrar os infortúnios da soberba da consciência no corpo de um macaco.

Sou então esse bicho que nega a natureza para garantir a posse nefasta de um domínio qualquer, as cintilações efêmeras de uma vaidade suicida?

E eu me acho bom. Qualquer um se acha bom. Desde que não aperte a mão do vizinho, que é um burro, que é um pobre, um burguês, uma mulherzinha, um preto, um gay, um presunçoso, um bêbado.

O idiota de que nos orgulhamos ganha de brinde a viagem no elevador, constrangido, a olhar para os dígitos que o libertarão do outro. Ou o sorriso brando, largo e irritante dos que se acham justos, por contribuir para uma causa social indene, algo que não desperte a ira dos que governam fleumaticamente o mal.

A sopa ferve, tenho fome. Preciso cuidar de mim, de meus filhos. É o que me resta.

Mas foi o que sempre fiz.

Pinço pedaços de batata e frango da sopa insípida, como fazia quando criança. Mas agora fumo até enquanto como, e a noite já não guarda os mistérios generosos do céu infantil.

O mundo corre o risco de acabar. Poderá não haver mundo para as crianças e, como disse uma senhora que me viu apaixonado por R., “isso não é bom”.

O amor humano busca o espelho; o espelho (meus semelhantes!) é a prata do ego.

Mordisco uma cenoura que sabe nada. Meus cabelos e minha barba estão brancos, tenho medo de que o cigarro me cause um câncer, as costelas doem, fora uma ou outra luta furiosa na juventude gastei o tempo todo alheio aos fatos que me devoram.

O mundo pode acabar. Mas estou deprimido, é melhor ir dormir.

Abraço R. Tenho a pança cheia e uma cama quente onde esqueço a saúde do planeta, do Brasil, de Lisboa. Do vizinho.  

Dissolvo a consciência no calor de um erotismo seguro, privado. Sou a bolha de sabão exalada por uma criança perigosa, definitivamente perigosa.

Deveria fazer alguma coisa? Amanhã penso nisso.

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