Eu devia ter dito

Noite quente, abafada. Difícil dormir. Escancarei a janela, mas ela só exala o hálito de pedra que sobe da cidade. O lençol já está empapado de suor, deito de lado para secar as costas, mudo de lado. Meus músculos estão frouxos, se toco em mim sinto asco da pele grudenta. E a cabeça coça sob os cabelos sebentos, úmidos. Devia ter tomado um banho. Passei o dia caminhando com minha filha por Lisboa, embaixo de um sol africano. Mas cheguei em casa e me joguei na cama, exausto. Não tenho forças sequer para erguer o livro, que seguro como um náufrago. Falta ar para a alma enquanto o corpo se expande; os pensamentos se arrastam, cautelosos, irritados. Algo tem que acontecer, essa tensão acumulada requer uma catarse. Uma tempestade seria bem-vinda. Ventania, telhas voando, rajadas de chuva em nossa cara febril.

Rute dorme espalhada na cama. É magrinha, não sente tanto o calor. Lá de fora só me chegam os latidos agoniados de um cão. Ecoam como se o bicho estivesse preso num porão. De resto, até os grilos se calaram. Me sento, acendo um cigarro. Esse calor não é normal. Revolvemos as entranhas da Terra em busca de ouro, ela seca, derrete. A lua cheia agora parece o ovo azul do réptil celestial. Dele nascerão os vingadores da espécie humana. Devia tomar um banho, meus pés estão inchados, a assadura recente arde entre o saco e a coxa esquerda. Por que não me mexo? Um pequeno esforço, tirar a cueca com cuidado, abrir a torneira de água fria, cinco minutos e pronto… Minha filha queria comer açaí. Andamos pela Baixa e pelo Chiado driblando turistas, carros, tuque-tuques, artistas de rua, mendigos, eléctricos. Por que não me levanto? Lavar essa cabeça suja, refrescar a assadura. Qualquer coisa maior do que a preguiça me mantém assim. É como se eu me desse um castigo ou, pior, fruísse o meu próprio sofrimento, lambesse as feridas. A cara pálida de minha filha por trás das bolas violetas de açaí, em contraste pontilhista com os fartos cabelos ruivos. Sua beleza de adolescente arrogante e insegura borrada pelo suor que escorria da minha testa. A exasperação mortificada pelo calor, o prazer de estar com ela, mesmo cercado de apreensões. Deito de lado, mudo de lado. Como o dono desse cão consegue dormir? Por que não o liberta, por que não se liberta? E agora um caminhão de lixo lá na esquina remói latas, plásticos, vidros. Lixo reciclável que vira lixo sonoro. Não é necessário esperar pela morte, já estou no inferno. Este calor é o bafo cínico do criador. Quantas pessoas, como eu, não estarão agora expostas aos seus próprios pensamentos insolúveis, quantas a abrir os braços para refrescar as axilas. Eu devia ter dito a ela que só não pude ser um bom pai porque não encontrava meu lugar neste carrossel de gárgulas, não compreendia a vida, me sentia ofendido por ela, ainda me sinto. Este aparelho, o corpo, entende, minha filha? Pode ser bem agradável, não merecia o implante de um cérebro voltado à ambição e ao desespero. Somos macacos com abismos semânticos nas sensações, enfim, eu ou algo remoto em mim esperava algo melhor de nossa natureza. Não há desculpa, claro, claro, fui um grande egoísta. Mas gostaria que você soubesse que dispendi os meus melhores anos alimentando uma angústia embebida em perplexidade, bebi e li retorcido sobre mim como um monge pagão, e você crescia, aquele balanço no jardim sem os meus braços para empurrá-la, aquelas festas de aniversário a que não fui porque os pais eram todos idiotas, você descobrindo o mar e eu com um livro árido nas mãos, eu, o grande idiota, caminho pelo apartamento no escuro, abro a porta da sala. O terraço não alivia nada. Eu devia tomar um banho. Vou à geladeira e bebo um gole cortante de água gelada. Esse cão não sossega. Queria dormir, parar de pensar. Já não anestesio a inquietação com álcool nem tomo os remédios que os psiquiatras me davam para me integrar ao horror civilizado. Lúcido assim como ando agora o cão vai explodir, a culpa irá me consumir, eu devia ter dito naquele momento em que ela comia o açaí que, sim, eu podia ter compreendido muito antes que a consciência não tem remédio, através mesmo da doença é preciso estender a mão às pessoas que amamos, dar a elas não as palavras dúbias de consolo amor ou esperança mas a mão, o calor do afeto animal que resiste sob a mente transida de frio, a mão, esta mão, minha filha, que demorou tanto para chegar a ti porque fui estúpido e nada vi à minha volta senão as sombras do meu coração perturbado, eu devia dizer aceita esta mão, minha filha, ela é velha e volúvel mas é tua, só em ti encontra o seu destino. Antes tarde do que nunca, sou teu pai, quero sê-lo com todas as forças, obtuso, torto, falho, sou a árvore senil do pântano para o pouso de descanso em teu voo tonto desde sempre repetido pelos filhos, aceita minha folhagem escassa, dorme em meu galho retorcido por esse amor esquivo. O cão se calou, o caminhão foi embora. Rute dorme fundo. Na penumbra, me vejo no espelho da sala. Estou preso a este homem patético, descabelado, seminu. Uns dormem, outros se coçam. Depois trocam de lugar. Ela estava tão bonitinha atrás das colinas frescas de açaí. É uma boa garota, inteligente, intensa, terna apesar de tudo. A lua vai sumindo atrás do prédio. Não há infância que não passe pela precariedade dos pais, filha, eu mesmo me sentia tão perdido naquela palafita de afetos entre minha mãe fragilizada pela viuvez e meus avós austeros. Alguma coisa pude dar, você há de concordar, lembra que te ensinei a andar de bicicleta, a não colocar vírgula entre sujeito e verbo? Alguma coisa… darei mais agora, se você me permitir, melhor com os gestos, as palavras são moedas gastas de um império derruído, melhor com os olhos, com o peito, toma, são teus, minha filha, não me olha mais assim, sou teu pai, não há outro, um dia você verá como é difícil erguer os filhos acima do muro com os braços lacerados pelos nossos próprios demônios.

Entro devagar no banheiro. Acendo a luz. Sem olhar para o espelho, escovo novamente os dentes para me livrar do gosto amargo dos cigarros, do azedume das ideias. Abro a torneira do chuveiro. A água fria aos poucos desacelera minhas aflições. Escorre pela cabeça, pelas costas, bunda, pênis, braços, pernas, até remontar um homem. Estou vivo. Um bípede recendendo a sabonete. É preciso prestar atenção no corpo, é tudo que tenho. Habitá-lo com respeito, restituir a ele a prerrogativa da vida. Oferecê-lo aos outros como um fruto, carne sumarenta carregada de futuro. Deixá-la secar, essa carne, espalhar sementes através do cocô dos pássaros. É o que se pode fazer, acima ou abaixo dos erros. Todas as criaturas pensantes dão errado, você verá, minha filha, mas é justamente isso que deveria nos unir, pena você não saber ainda.

Passo a mão pelos cabelos brancos, reconciliado comigo. Me enxugo minuciosamente, como se me desenhasse. Estou aqui. Posso dormir agora, nadar nos longes de mim. Quando acordar, vou ligar pra ela. Amanhã me viro do avesso, me humanizo. Amanhã, amanhã eu digo tudo aquilo que escondi entre os dentes. Ou então lhe envio esta crônica, é uma ideia. Não, nem o telefone nem a crônica. Muito menos a crônica, não estas palavras poéticas que tentam atribuir grandeza a uma mágoa torpe. O corpo, a linguagem do corpo. Não se esqueça do corpo. Ele não mente, ele saberá dizer o que você leva no peito, amanhã apenas abrace, faça isso, meu velho – apenas abrace sua filha.

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