Uma breve anatomia da língua

Para Marina Legroski

Dizem as más línguas (e a notícia já correu de boca em boca) que esta crônica foi feita nas coxas e nasceu parecida com uma minhoca, ou seja, não tem pé nem cabeça.

E longe de querer afirmar não terem razão esses línguas-de-cobra, aceito, sem esquentar a cabeça, a plausibilidade de seu acerto. Afinal de contas, sou gente de carne e osso.

Inclusive de saída já peço desculpas caso tenha enfiado o pé na jaca e metido os pés pelas mãos. Mas como não apenas tenho sangue nas veias e nervos de aço, como também sou cabeça dura e não sou de tirar o corpo fora, e como de forma alguma isto aqui foi feito com um pé nas costas, aviso de antemão que daqui não arredo pé e que a crônica vai assim mesmo, sem medo de dar a cara a tapa, peito aberto e sangue nos olhos, ainda que sem topete e sem nariz empinado, não vá ninguém sair daqui fazendo a minha caveira.

E caso algum miolo mole, revirando os olhos e torcendo o nariz, insista em achar meu Frankenstein meio meia boca e desande a falar dele pelos cotovelos, não vou fingir que tudo entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Aqui é olho por olho e dente por dente. O cabeça oca que quer me quebrar as pernas precisa ter consciência, antes, que disponho de um guarda-costas costas quentes e carne de pescoço pra quem pra baixo do referido pescoço é tudo canela, sendo seu objetivo final justamente as próprias canelas, que não raro acaba por deixar esticadas, prontas para assentarem nova morada lá na terra dos pés juntos. ¿Quem mandou meter o nariz onde não foi chamado?

É o que eu sempre digo: apesar de o sábio ensinamento não ser bom provérbio para sapos, em boca fechada não entra mosca. Ou, como diz o próprio livro Provérbios, capítulo 13, versículo 3, mais conhecidos como 13:3, “o que guarda a sua boca preserva a sua vida, mas o que muito abre os seus lábios atrai sobre si a ruína”. Em resumo, boca fechada preserva os dentes, sendo isso o que costumam chamar, já que o tema religião tirou a cabeça da toca, de não ter papas na língua.

¿Indiretas? ¿Ameaças veladas? ¿Plausibilidade da negação? Pé na bunda desses cagões. Aqui o pulso é firme e o papo é reto. Corpo, meu caro e minha cara, é o tipo de coisa que se você cuidar bem pode durar a vida inteira. Então o melhor mesmo é baixar as orelhas enquanto um outro burro fala, ou simplesmente evitar a fadiga, virar as costas e largar de mão, porque o fato é que ninguém está, ainda, com a cabeça sob a mira de uma espingarda, pelando-se. Ninguém está obrigado a ler crônica nenhuma. Se perceber que não dá pé, dê no pé; e se tentarem te impedir, pé no ouvido, pontapé. Meus olhos não poderão ver mesmo o meu ex quase futuro leitor fechando a página. E o que os olhos não veem o coração não sente. Em minha defesa, digo apenas que se o meu tiro saiu pela culatra foi por não ter consultado a tempo a etimologia da palavra “culatra”…

Leitores crânios que eu sei que vocês são, a essa altura, usando a cachola, quebrando a cuca, já sacaram a brincadeira e já saltou aos seus olhos a matéria de que está constituído o corpo deste texto, do cabeçalho ao rodapé. Porque é impossível imaginar o invólucro que abriga um músculo chamado “língua” não fazer nascerem centenas de expressões linguísticas relacionadas a si próprio. O corpo, como um texto, é um sistema de autorreferência. Centrado no próprio umbigo, usa-se o tempo todo para falar de si.

É ele, o corpo – e somente ele – que fica de boca aberta, de queixo caído, de olhos arregalados, que vê com o olho e lambe com a testa, que põe as barbas de molho e fica lambendo os beiços, que quebra a cara, fecha a cara e depois faz caras e bocas e cara de paisagem, que tem cara lavada, cara de tacho, cara de pau, cara de enterro e cara amarrada, que é pego com a boca na botija mas faz boca de siri e boca de túmulo mesmo levando uma na boca do estômago, que já está careca de saber que quando tudo está por um fio não adianta arrancar os cabelos e ficar de cabelo em pé, que, cabeça de melão, não acha o que está debaixo do nariz, que agarra touro a unha por ser unha de fome, que tem mão grande, mão leve, mão de vaca, mão furada, mão mole, mão de alface, olho na mão e às vezes está na palma das mãos de alguém, que manda beijinho no ombro aos que têm dor de cotovelo e dá de ombros aos que não se apoiam sobre o ombro de gigantes, que pede a mão e logo quer o braço, que, de braços cruzados, não dá o braço a torcer, que é dedo duro, que tem dedo podre e gosta de dois dedos de prosa, que dá a cara a tapa ou um tapa na cara da sociedade, que tem olho gordo, olhos de lince, um olho no peixe e outro no gato, olhos de cigana oblíqua e dissimulada e o olho maior que a barriga, que às vezes com o estômago nas costas tira a barriga da miséria ou com estômago de avestruz chora de barriga cheia, que passa a perna, que é perna de pau, que abraça o mundo com as pernas e fica de perna bamba, que queima pestana, tira pestana, tira o peso das costas, tira a água do joelho e tira uma tira de costela, que tem pé quente, pé frio, pé de vírgula, pé de galinha, pé de pano, pé na cova, que é pé rapado, pé de chinelo, pé no saco, mete o pé na porta, mete o pé na tábua, mete o pé na bunda e pernas pra que te quero, que tem testa de ferro, testa de marquise, que está com a cabeça nas nuvens, com a corda no pescoço, com a pulga atrás da orelha, com a faca e o queijo na mão, com água na boca e com cara de quem comeu e não gostou, que fica de cara, que fica de olho, de orelhas em pé e de mãos abanando, que nasceu virado pra lua ou mora no cu do mundo (Campo Largo), que tira o cu da reta e muda de saco pra mala (nada a ver o cu com as calças), que bota o pau na mesa ou então fica com o cu na mão…

¡Eita porra! Ou muito me engano ou escrevi uma das maiores sentenças da história, testando ao mesmo tempo a teoria da recursividade, do Chomsky, e a paciência de quem já estava de saco cheio. O melhor, portanto, é parar. Como se nota, daqui pra diante seria só baixaria e baixo ventre, arranca-rabo e rabo entre as pernas. E antes que aquele leitor arrombado lá de cima reapareça botando a boca no trombone, me chamando de boca suja e alegando que numa crônica –gênero inofensivo- não se podem usar palavras cuja origem não possa ser determinada, se numa das extremidades do aparelho digestivo ou na outra, encerro essa intestinal discussão por aqui, antes mesmo de ela começar, e munido da arma linguística mais letal, equipado com a mais poderosa, prazerosa e catártica expressão que qualquer língua humana já foi um dia capaz de inventar, aniquiladora de qualquer sombra de tentativa de objeção, réplica ou revide: TEU CU.

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