O túmulo

Em uma linda e surpreendente viagem de carro (quase escrevi road trip) aqui pelo Sul (o Sul é lindo, pena é haver gente), encontramos, Ana e eu, num cafundó de mundo perdido nos Campos de Cima da Serra Gaúcha, lá pras bandas de Cambará, um pequeno cemitério desativado, ou abandonado, não sei. Desativado não é uma palavra lá muito apropriada, mesmo os cemitérios em pleno funcionamento não são lugares onde se concentra atividade muito intensa. Além disso, a pouca atividade a que se destinam consiste em, sanitariamente, abrigar corpos debaixo da terra, e nesse caso específico a função era cumprida quase 100% à risca. Abandonado também não, ao menos em alguns túmulos jazia um vasinho com flores de plástico ainda não de todo desbotadas, demonstrando que algum amigo ou familiar eventualmente dá as caras por ali, mesmo não podendo comparecer sempre para ofertar ao sepultado o viço provisório das flores vivas.

De modo que não é fácil encontrar uma palavra para qualificá-lo.

O cemitério não tem muros, cerca ou portão, como um país que quisesse facilitar o acesso ao seu território e não exigisse do imigrante documentos para admitir a sua entrada. O cemitério também não tem nome, coerentemente com a ausência de qualquer tipo de identificação em quase todos os túmulos. Um cemitério anônimo, semeado com mortos anônimos, assimilados lentamente pelo denso matagal e pela floresta de pinheiros que de pouco em pouco os engolem, como uma grande boca silenciosa.

Não se encontra esse cemitério procurando-o na internet. Pesquisei escrevendo o nome da serra, da região, dos cânions, da cidade, do vilarejo deserto e um tanto quanto fantasmagórico, do morro, do rio, da estrada, e simplesmente nada apareceu. Para provar a mim mesmo que não se tratava de um delírio, hipótese cada vez menos descartada, bati algumas fotos, tanto para assegurar que a tela da câmera revelaria a mim as cruzes e as campas quanto para mostrar as imagens a cúmplices que pudessem sustentar um “Sim, vemos aí um cemitério, ninguém o poderá negar”.

Nesse sentido, mais leve afirmo, houve ampla conformidade. Variados olhos, como se estivessem vendo o inegável sol ou a irrefutável lua, compartilharam da mesma percepção sensorial. E mesmo os descrentes mais radicais, no caso eu mesmo, ao dar um zoom no Google Maps obtiveram a comprovação da materialidade da necrópole misteriosa, ainda que não se encontre registro dela em nenhum outro lugar na rede mundial de computadores, ausência que a mim não me causa incômodo algum, servindo mesmo como uma espécie de consolo a constatação de que há mais coisas entre o céu e a serra do que supõe a vã virtualidade do TripAdvisor.
Mas escritor eu não seria se me satisfizesse somente com a comprovação de sua existência material, se olhasse para o cemitério esquecido e real e dissesse “temos aqui um cemitério esquecido e real, fotografemos, voltemos embora e igualmente o esqueçamos no cemitério etéreo a que ironicamente deram o nome de nuvem”.

Se foi esquecido, por alguém é que o foi.

Ao retornar a casa, vasculhei novamente a internet atrás de qualquer ínfima informação capaz de saciar um pouco a coceira da curiosidade, e depois de muitas bússolas quebradas, muitas portas fechadas e muitas formas inusitadas de se misturar palavras-chave na caixa de texto do buscador, consegui encontrar uma página chamada “Fotos da Vila Ouro Verde, Santana e Osvaldo Kroeff”. Entrei em contato, então, com o administrador (ou administradora) da página, perguntando-lhe sobre o cemitério e o vilarejo. A pessoa não se identificou, mas contou-me a história, embora de forma bastante resumida e sem menção a datas ou outros pormenores.
Um empresário chamado Osvaldo Kroeff fundou uma grande fábrica de celulose em Ouro Verde, município de Cambará do Sul, a Celulose Cambará. (De posse dessa informação, consegui averiguar que ela foi inaugurada em 1942.) Nas cercanias da instalação, vicejou então uma vila de funcionários, a Vila Ouro Verde, com mercado, farmácia, cinema, correio, hospital, delegacia, cooperativa, salão de baile, festivais, cães, gatos, igreja e o cemitério. Houve desenvolvimento, construção de casas, abertura de ruas, crescimento demográfico, formação de núcleos familiares, partos e partidas, toda a dinâmica, enfim, de uma vida em comunidade. Mas aí o tempo chegou e, décadas depois de sua fundação, a empresa começou a enfrentar sérias dificuldades econômicas, até finalmente falir e fechar. E como a subsistência dos antigos moradores dependia exclusivamente do trabalho na fábrica, viram-se obrigados a se retirar dali, deixando sua vila, sua vida e seus mortos para trás. E sem narradores de Javé que pudessem contar a sua história. Quando algum tempo depois, novos donos compraram a empresa e a reabriram, todos já tinham ido embora. E ninguém regressou.

Os túmulos do cemitério da Vila Ouro Verde, Cambará do Sul, Rio Grande do Sul, são poucos e pobres. Num deles há uma inscrição mostrando o nome de um senhor que um dia atendeu pelo nome de Alinto, junto à data de sua morte, 1958. Um outro, cobertura carcomida pelo tempo, caixão há tempos transformado em serragem, deixa à mostra os farrapos de uma camisa xadrez mais a ossada desconjuntada e descoberta de seu único e incógnito ocupante. Um pouco mais abaixo, num desnível do terreno acidentado, há dois jazigos pequenos e idênticos, colados um ao outro, também sem datas ou nomes e, ao que parece, de duas crianças, quem sabe gêmeas. Infiro que a mortalidade infantil na vila era bastante elevada, pois os tumulozinhos gêmeos não são os únicos dessa dimensão a assentarem-se por ali.

Mas não foram esses descritos acima os que me causaram maior assombro e fascínio, e sim um outro, ao centro, perto de onde pastavam duas vaquinhas gordas e solenes. Neste sepulcro notável, igualmente não havia inscrições ou datas ou nomes ou epitáfios. À diferença dos demais, no entanto, havia uma árvore crescendo sobre ele (não ao lado, não pertinho, não dentro, mas sobre, em cima, no alto), enraizando-se cimento, ossos, chão e caixão adentro.

O mundo literal, como se nota, é absolutamente espantoso. Mas não seríamos o que somos se nos satisfizéssemos com ele, se não o expandíssemos, não o lêssemos, não o envolvêssemos com o invólucro de nossos construtos metafóricos, figurados, alusivos, e ampliássemos, assim, o seu diâmetro. E há tantas formas de se interpretar simbolicamente uma árvore nascendo sobre um túmulo, ainda mais num cemitério que teve de ser – agora sim – abandonado. A vida, teimosa, encontrando um meio, furando a pedra, rompendo o asfalto; a natureza reivindicando os espaços que lhe foram tomados quando decidimos dela nos apartar, como se natureza não fôssemos; um novo e vivo texto sendo escrito sobre o palimpsesto raspado; a vida sugando o adubo fértil do que um dia também já foi vida; a ambiguidade natural da terra, que ao mesmo tempo é cova e é útero; a súbita ruptura da funcionalidade de um túmulo que não mais exerce a tarefa de abrigar um bloco de madeira inerte dentro do qual jaz um bloco inerte de cálcio fossilizado, mas um bloco de madeira por cujos veios corre seiva nutritiva; Eros triunfando sobre Tânatos; a sinuosidade erodindo o ângulo reto; a delicadeza destruindo a força bruta; um novo país ressurgindo dos escombros, das trevas, do desmatamento impiedoso, da feiura, da pulsão de morte.

E se escrever é propor um enquadramento particular do mundo, é ofertar uma visão que de outra forma não poderia nunca existir, que essa árvore seja, então, ao menos para os efeitos deste enquadramento particular, o símbolo de um novo país, de um país cujo próprio nome é uma árvore. Que a potência do que é vida substitua o abandono da morte. E que essa História possa ser contada para que nunca esqueçamos do que a falência de um único homem pode causar ao conjunto dos homens e mulheres.

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