Quem desce?

Olho por uma janela, por outra. Não descubro nada e tenho medo de abrir a porta

Quase meia-noite, um grau negativo. Estou deitado, coberto até as orelhas. O frio arde no rosto feito o contato de um metal. Imóvel, mãos entre as coxas, aguardo meu corpo aquecer a cama. Brinco de soltar vapor pela boca. Talvez hoje não leia o livro que me aguarda ao lado do travesseiro.

Os cachorros começam a latir. Melhor esperar. Na maioria das vezes não é nada, é só um gato, um galho de pinheiro que cai. Mas eles não param, latem feito loucos. Saio da cama a contragosto, passo a mão no vidro embaciado da janela: mal consigo ver os bichos se agitando na escuridão. Olham e latem para algo na estradinha que desce o morro.

Quem viria até o Brejo numa noite dessas?

O frio me vence, volto pra cama. Depois de alguns minutos os cachorros se calam. No silêncio ambíguo que se faz, mantenho a luz do quarto acesa – não era ninguém ou ele já está aqui? Quem seria ele?

Se for ladrão, não vai encontrar nada pra roubar. Só tenho livros, roupas e panelas velhas; poucos móveis que não valem nada. Mas não deve ser ladrão. É difícil chegar no Brejo, o sujeito precisa descer a ladeira escorregadia em meio a um breu danado desses, se embrenhar na floresta encravada entre os morros. E aqui, denunciado pela algazarra dos cães, não vai achar mais do que uma casinha de madeira.

Quem seria então? Só com o nariz de fora, vou aventando as possibilidades.

1) Quem desce o morro é o assassino de todos nós, o andarilho sinistro que desfere sua raiva de aço sobre a primeira criatura que aparece. Estou perdido. Ele tem contornos nítidos; eu sou quase uma abstração.

2) Quem chega é um amigo que não vejo há muito tempo. Descobriu meu endereço, demorou a me encontrar. Sirvo um chá preto pra ele. Sem prólogos tediosos, me conta histórias de um homem vergastado pelo destino, mas em tom claro, fraterno. Dividimos com parcimônia a chama de nossas palavras.

3)  Quem vem me ver é o fantasma de meu pai, o Afogado. Vem coberto de algas e cracas, cheirando a maresia. Para diante de minha janela, fixa em mim os buracos dos olhos, em que fervilham minúsculos siris. “Você está bem agasalhado?”, ele diz. Eu quero chorar, mas tenho medo.

4) Quem desce o morro é a legião dos famintos. Eles cercam a casa e só fazem me olhar. Ofereço a comida que tenho. Não basta. Querem que eu abandone minha indiferença, minha covardia, minha estimada coleção de recusas.

5) Adormeço. Quando acordo, quem está junto à cama é Walt Whitman. Traz folhas secas grudadas no casaco mole. “O que aconteceu com o mundo”, ele diz (ou pergunta, não sei). “É como se estivéssemos colocando fogo em nossa própria casa, sentados na sala… Mas durma, durma. Não há o que fazer agora.”

6) Quem desce o morro é ela. Treme de medo e me diz que encontrou coragem no desejo aflitivo de pedir perdão e de perdoar. Nos abraçamos como dois faquires, corpos fracos, cabeças vazias.

No entressonho ouço um estalo. Salto da cama. Olho por uma janela, por outra. Não descubro nada e tenho medo de abrir a porta. Certamente não é fantasma, nem gente faminta. Não é amizade nem amor. Não é nada disso, é tudo junto…

Coloca água na chaleira e o enigma se desfaz. Os cães latiam para um fugitivo. Pois para me encontrar assim, a uma da manhã, morto de frio, insone, quem desceu o morro fui eu.

 

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