“Quem não concorda é nazista”: por favor, não usem

Utilizar-se do nazismo como recurso retórico para zombar e ironizar opiniões significa, em primeiro lugar, vulgarizar um regime totalitário, racista, antissemita e genocida

Um recurso retórico para zombar e ironizar opiniões tem sido utilizado cada vez mais por brasileiros, a maior parte deles jovens, em suas redes sociais. O que nasceu como uma ingênua (mas perigosa) brincadeira, em que crenças banais eram descritas sempre com a terminação “e só a minha opinião importa”, transformou-se num viral desagradável, ofensivo e antiético. A corriqueira expressão “quem não concorda é nazista”, utilizada em tom irônico e debochado, espalhou-se e pode ser lida em postagens relacionadas a reality shows, cultura pop, gostos culinários e aptidões diversas.

De forma genérica, o lema (praticamente um bordão, quase uma epígrafe) de que “só minha opinião importa” começou a ser usado no mundo digital para explicitar que as contas particulares refletiam as opiniões apenas de seus donos. A própria frase na página inicial do Facebook era utilizada como um desses recursos assertivos: “No Facebook, você pode se conectar e compartilhar o que você quiser com quem é importante em sua vida” – negritos nossos, obviamente. Em outras palavras, é como se as pessoas dissessem “aqui, na minha página, eu digo o que penso – e você que use a sua conta para dizer o que pensa”. Se por um lado a atitude pode ser vista como egocêntrica e contrária aos ideais de diálogo e de convivência, por outro é enaltecida por reafirmar a liberdade de expressão e a pluralidade de vozes antes silenciadas. Tanto é que, positiva e inocentemente, a expressão “só minha opinião importa” transformou-se em títulos de colunas jornalísticas, blogs e podcasts espalhados por todo o país.

O pressuposto já é, em si, problemático. Numa sociedade livre e democrática, discordar e lidar com opiniões divergentes precisa ser sempre saudável – mesmo que, no fim das contas, “só minha opinião importa”. A ideia de que as pessoas sejam livres para se expressar, desde que as outras concordem, não pode ser transformada em humor sarcástico. No entanto, a transição espontânea da ingênua expressão “só a minha opinião importa” para o descontrolado fenômeno linguístico de “quem não concorda é nazista” precisa ser compreendido e debatido. É a analogia histórica criada a partir de uma associação livre que torna o viral absolutamente inapropriado nos dias de hoje.

Utilizar-se do nazismo como recurso retórico para zombar e ironizar opiniões significa, em primeiro lugar, vulgarizar um regime totalitário, racista, antissemita e genocida. De maneira sarcástica, estas comparações entre um indivíduo nazista e alguém que não concorda com minha opinião, além de hiperbólica e estéril, são histórica e eticamente incoerentes. O uso banalizado do nazismo como metonímia do mal e para reforço de pontos de vista próprios deve ser evitado e seu crescimento, sim, nos causa preocupação. Ele em nada contribui para a missão educativa do Museu do Holocausto de Curitiba, que defende que a memória do genocídio sirva para fortalecer valores democráticos e combata os autoritarismos e as discriminações.

Em segundo lugar, brincar nas redes sociais de “quem não concorda é nazista” também desrespeita a memória das vítimas do Holocausto e de todas as comunidades perseguidas pelo nazismo e por seus colaboradores. As ações genocidas dos nazistas não podem ser justificadas exclusivamente por discordância de opiniões. Grande parte das comunidades perseguidas durante o regime – caso de judeus, ciganos roma e sinti, afro-alemães e pessoas com deficiência ou com distúrbios mentais, por exemplo – o foram por questões intrínsecas atribuídas a eles, com acusações pseudo-raciais que não podiam ser renegadas por parte das vítimas.

Em terceiro lugar, também nos importa nessa reflexão o fato de que outros grupos perseguidos o foram, aí sim, por questões de opiniões, posicionamentos ou crenças – caso de comunistas, anarquistas, artistas, Testemunhas de Jeová, maçons e opositores políticos, dentre outros. A estes, era relativamente viável abdicar de suas convicções e, assim, evitar a repressão. No entanto, inúmeros não renunciaram às suas convicções, inclusive discordando publicamente dos atos nazistas. O atual “quem não concorda é nazista” acaba sendo uma versão oposta de um antigo “quem não concorda com os nazistas…”.

Mesmo tratando-se de uma figura de linguagem, o uso da expressão ultrapassa as barreiras do que seria incômodo e desconfortável para toda sociedade democrática. Para os familiares e as instituições que prezam pela construção desta memória compartilhada, a expressão “quem não concorda é nazista” é ultrajante.

A experiência do museu

Em 16 de abril, o Museu do Holocausto de Curitiba publicou um “fio” em sua conta no Twitter sobre os malefícios do uso desta expressão e um pedido aos seus seguidores para que não permitam que a frase se popularize ainda mais. O alcance destes tweets, que se aproximou de 700 mil visualizações, gerou (como sempre) narrativas que variaram entre os totalmente surpresos, os conscientes do equívoco (a maioria) e aqueles que questionaram ou debocharam tanto da frase quanto dos argumentos – em alguns casos, inclusive, compartilhando a mensagem do museu e acrescentando cinicamente “e quem não concorda é nazista”.

No entanto, a receptividade, principalmente dos jovens que já haviam utilizado a expressão em outras situações nas redes sociais, demonstra a necessidade de que este debate seja ampliado. É um caso que nos mostra como a educação sobre o Holocausto, munida de valores como a empatia e a responsabilidade, pode ser transformadora para uma nação. Abaixo, alguns comentários copiados do Twitter, em que reservo o direito de omitir seus autores.

Eu mesmo usava esse termo de maneira “cômica” há um tempo, até perceber por conta própria o quanto estava sendo desrespeitoso. Nazismo não é brincadeira, nunca foi. É bom vocês alertarem sobre isso pois muita gente usa e acha que tá tudo bem.

Sim, amg. A gente conhece a história, entende o quanto é problemático e msm assim demora a perceber as merdas que ajuda a espalhar. Acho que o que virou minha chavinha de fato foi quando eu assisti A Lista de Schindler, um dos filmes mais documentais e incríveis sobre o nazismo.

Infelizmente já compartilhei/curti muitos posts assim, agora percebo que foi muito ignorante da minha parte.

Nossa tem muita gente que brinca com esses assuntos e tbm com alguns desastres, como o de Chernobyl, de Hiroshima e Nagasaki, usam esses desastres como se fosse meme ou pra tirar onda, o que é patético.

Ao fim, o Museu clamou para que, sem agressividade, os leitores se conscientizassem e orientassem os conhecidos que empregam essa expressão de forma oral ou escrita a deixarem de utilizá-la em tom de piada. Este pedido, replico nesta coluna aos leitores do Plural. Sobre o meme / viral “quem não concorda é nazista”: por favor, não usem.


Para ir além

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