A mão “ruim”

No cérebro, cada lesão é única e provoca sequelas específicas. Os sobreviventes de AVC têm uma mão que chamamos de “boa” e a outra que chamamos de “ruim”

Eu tenho duas mãos. Só que depois do derrame, eu fiquei com uma “mão boa”: a totalmente funcional, que não mudou nadinha, e com uma “mão ruim”: a lesionada e torta, que demorou para voltar a se mexer e que inconscientemente a escondo das pessoas. As duas parecem ser iguais, mas cada uma tem a sua história.

No cérebro, cada lesão é única e provoca sequelas específicas. Todavia, todos nós sobreviventes de AVC, temos uma mão que chamamos de “boa” e a outra que chamamos de “ruim”. Vou explicar melhor: cada lado do cérebro é responsável pelo funcionamento do lado oposto do corpo. Então, quando lesionamos o lado direito, perdemos a mobilidade de todo o lado esquerdo, e vice-versa. Graças ao trabalho da fisioterapia, o lado paralisado aos poucos volta a ter mobilidade. Só que a recuperação dos membros inferiores é mais rápida que a dos membros superiores, principalmente na área da mão, considerada por muitos sobreviventes como a última parte a se recuperar.

Nos grupos de apoio a chamamos de mão “ruim” devido a essa intensa dificuldade de mobilidade. Ela é como se fosse a “ponta do iceberg” da nossa lesão: é a parte do nosso corpo que mais aparenta a nossa deficiência adquirida. Muitos avcistas não mexem a mão anos depois da lesão, outros só conseguem fazê-la tremer, e alguns, como eu, conseguem utilizá-la novamente, mas claro, com algumas limitações.

Existem vários exercícios fisioterápicos para fazer a mão “ruim” voltar a funcionar. A maioria é focado na diminuição da espasticidade, que é o tônus muscular que insiste em fechar a mão lesionada e, em alguns casos, deixá-las tortas. É por isso que ficamos todos “encolhidos” de um lado do corpo, o que pessoal da área da saúde chama de “padrão AVC”. Essa espasticidade complica muito o nosso dia a dia porque a sensação que dá é que tem um elástico muito forte no músculo da mão que insiste em a fechar. Então, tentar abrir a mão lesionada cansa porque se torna um exercício de força mesmo.

Uma técnica que utilizava para fazer a mão “voltar” era colocar as duas mãos lado a lado na mesa, mexer a “mão boa”, e logo depois, mexer a “ruim”, para o cérebro entender o que eu queria fazer. No começo é estranho porque você pensa em mexer a mão, mas ela não se mexe. A sensação é que ela virou um peso morto, porque além de tudo isso, ela pesa (tanto ao ponto de tirar o equilíbrio). Dá agonia e raiva porque desde que a gente se entende por gente mexemos o corpo sem dificuldade: é automático. Porém, depois de um acidente vascular cerebral é preciso pensar para o lado lesionado se mexer e essa dificuldade reflete em todas as nossas ações cotidianas: cortar um bife, lavar a louça, amarrar o cabelo etc. Absolutamente toda ação fica mais difícil.

Quando ainda não movia a minha mão, também costumava fazer as coisas fingindo que ela se movia: colocava-a ao lado do prato de comida para almoçar, em cima da minha cabeça para lavar o cabelo… E me sentia muito frustrada por ela não se mexer. Chorava, desistia, e depois tentava de novo. Às vezes os amigos a abriam quando me visitavam e eu dizia: “Não adianta, ela não funciona mais”. Até que um dia o dedo indicador levantou um pouquinho e, empolgada, comecei a usar ele para tudo que eu podia, e assim em alguns meses a minha “mão ruim” foi voltando a funcionar.

Hoje abro e fecho a mão e a utilizo para tudo, mas como já disse: não é a mesma coisa. Como não tenho muita força e equilíbrio, quebro muitos utensílios. Também perdi a sensibilidade (o que faz com que eu me depare com cortes e queimaduras nos dedos de vez em quando) e a motoridade fina (o que me impossibilita abrir embalagens).  Não reclamo, muito pelo contrário, me sinto abençoada pela minha recuperação.

Durante esse processo, fui encarando a minha mão “ruim” como aquele trauma que a gente tem e não quer mostrar para ninguém, mas que de repente escapa nas entrelinhas das nossas conversas, sabe?  No começo, quando a minha mão era imóvel eu não gostava quando as pessoas mexiam nela porque me sentia muito invadida, assim como quando as pessoas falam de uma história bem chata que aconteceu anos atrás e que é desnecessário vir à tona. Então, resolvi lidar com a minha mão “ruim” do mesmo jeito que tive que lidar com as minhas sombras na terapia cognitiva.

Ela era uma parte de mim machucada e que estava ali torta e imóvel para todo mundo ver. E eu só tinha duas opções: ignorá-la ou trabalhá-la. Aos poucos fui a acolhendo, porque ela fazia parte de mim e não tinha culpa de ter ficado torta e imóvel. Assim como eu, ela tinha sofrido dois AVCs e merecia ser tão trabalhada quanto a mão “boa”. Elas eram iguais e ao mesmo tempo diferentes: como duas faces de uma mesma moeda. A impressão que tenho é todo esse amor e paciência ajudou a “acordá-la”.

Apesar de hoje ela ser considerada funcional, eu ainda a carrego para cima e para baixo, segurando-a com a mão direita (que é a minha mão “boa”) e ainda tenho o costume de a colocar ao lado do computador para escrever ou sobre o meu colo para relaxar porque assim como um trauma a minha mão esquerda ainda continua machucada e precisa de muita atenção e afeto. Também deixei de considerá-la “ruim” porque nenhuma sequela cerebral merece um adjetivo pejorativo, muito pelo contrário, ela é uma cicatriz de sobrevivência, e merece respeito assim como todos nós, avcistas.


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