Honesta solidariedade

Deixo, de coração, meus públicos votos que não percamos nenhuma vida de colegas envolvidos na assistência pelo esgotamento emocional, tampouco que esteja seja o gatilho para agudização de enfermidades prévias de qualquer natureza

Há que se reconhecer a fragilidade de nossos limites. Ora exposto às condições extremas, ante o contexto suficientemente caótico, flexibilizamos paulatinamente as fronteiras do aceitável, minando dia após dia os parâmetros do admissível, rebaixando nossas expectativas e tolerando aquilo que previamente jamais seria aceito.

A aniquilação da saúde mental dos profissionais médicos e colegas da enfermagem só não se faz ouvida pelos ensurdecedores ruídos da pandemia, do contrário tamanho colapso emocional já se teria sido identificado como talvez o maior uniforme adoecimento de uma categoria em décadas. Convivo rotineiramente com amigos e colegas exaustos e desmotivados.

Há que nos acuse, ao menos quem me acuse – vivi isso em algumas oportunidades – de excessiva ambição, isto é, que o combustível para cada plantão adicional seria o contracheque do mês subsequente. Em nada esta suposição poderia faltar em mais com a verdade.

Compartilho minha mais sincera palavra; hoje, sem sombra de dúvidas, não é por dinheiro que trabalho. Não saio de minha casa, privando-me da sanidade física e gerando esgotamento emocional, pela cobiça financeira. Exerço a medicina hoje pela honesta solidariedade. Quando diretores e chefes me solicitam para esticar em mais doze, vinte e quatro, trinta e seis, quarenta e oito (…) horas e, sem perceber, passamos de cento e vinte, cento e trinta e duas horas por semana, eu lhes garanto; em nada – absolutamente nada – há correlação com dinheiro, mas sim solidariedade.

Doaria sem pestanejar cada centavo de meus rendimentos para dar por encerrado a pandemia em curso. A demanda de profissionais de saúde qualificados para rotina de urgência e emergência me jogou, por experiência própria, à inabilidade de recusar ajuda aos serviços nos quais me vinculo. É absurdamente doloroso recuar de ajudar quando se sabe que ante o seu “não”, talvez não haja ninguém para lhe substituir. Há um senso de compromisso humano que me abastece.

A ansiedade, aliás, que anteriormente me acompanhava nas horas de trabalho, hoje me atormenta nas horas de descanso. É verdade que a exaustão segue onipresente na rotina de plantões, mas no escasso tempo de descanso, tudo que quero é – paradoxalmente – retornar ao trabalho. E por quê? Pela demanda surreal de atendimento em saúde e, insisto, pelo compromisso humano que nos move.

Recordo-me de assistir filmes de guerra e não compreender a narrativa dos soldados que por deliberada opção continuavam no campo de batalha, mesmo quando liberados a retornar aos seus domicílios. Lembro-me, ainda, de não assimilar a noção daqueles que, ao retornarem às suas casas, oriundos das batalhas, simplesmente não conseguirem se readaptar ao regular exercício de suas vidas.

Sem exageros, tenho em consenso interno que vivemos hoje uma guerra sanitária. Há quem estigmatize tamanho termo militar enquanto exagero – eu mesmo fui um desses, não sou mais. Sem romantismos, hipérboles, mentiras ou devaneios, aos meus olhos, hoje vivemos uma guerra sanitária.

Para mim, a noção da dificuldade de adaptação do soldado militar que retorna ao domicílio não possui mais qualquer estranheza. O soldado sanitário médico, enfermeiro ou técnico, que retorna ao seu domicílio, encontra hoje em sua consciência tantas frustrações, vergonhas, aflições e dores que não se consegue descrever em palavras, quiçá conviver dentro de prévia banal normalidade com anterior facilidade.

Há, entretanto, diversas peculiaridades na guerra sanitária que vivemos. A frágil noção de normalidade que alguns compartilham, dando sequência às suas vidas completamente alienados ou francamente indiferentes aos milhares que morrem afogados em pulmões secos todos os dias no Brasil, estigmatiza aqueles que, desesperados ou ao menos impactados com tamanho caos em curso, sofrem e se afligem como “exagerados”.

Eu falava de ansiedade. Há neste eixo um desvio patológico da normalidade e eu repito; a ansiedade que antes rondava ante as horas anteriores aos plantões, hoje castiga os curtos períodos de descanso. Nós nos adaptamos e aprendemos a viver ante uma nova realidade e, a cada passo dado em meio à banalização do normal, nos distanciamos, mesmo desaprendemos a viver no antigo normal.

O ineditismo do caos em curso surpreende a todos os envolvidos no atendimento em saúde. Diariamente flexibilizamos o normal e a cada renúncia que fazemos, a cada golpe da pandemia que sofremos, vamos progressivamente banalizando nossa nova realidade e a aceitando enquanto nova verdade.

A mente humana nos adapta às condições extremas. Pudéssemos comparar agudamente, sem transiente deterioração da condição sanitária humana, nossa realidade atual versus o cenário de um ano atrás, certamente nos desesperaríamos de forma inconsolável. Entretanto, como as perdas foram crônicas e paulatinas, nos curvamos a aceitar a nova realidade no silêncio de nossas tristezas.

Lembro-me de visitar o museu do Holocausto na Alemanha e ler com agonia o relato daqueles que entre 1939 e 1945 tiveram suas vidas deformadas e aniquiladas. Não pretendo comparar os contextos senão com uma intenção: a progressiva tolerância com a instalação da desumanidade.

Recupero a empatia pelos soldados de guerras tradicionais – aquelas efetivamente militares e armadas pelo fogo – que, ao retornarem às suas casas não se adaptam às rotinas do antigo normal. É extremamente dicotômico e mesmo desconfortável – ouso dizer inviável para alguns – conviver na simultaneidade de tantas perdas e mortes e, ao retornar ao domicílio, jantar banalmente assistindo à programação da TV.

Há, ao menos em mim, progressiva ansiedade nos raros momentos de descanso, pela culpa em não estar estendendo a mão àqueles que, sem dúvidas, muito necessitam. E, infelizmente, também há em mim a dificuldade do convívio com aqueles que não enxergam tamanho caos em curso, quer seja pelo motivo que for.

A exaustão atinge mesmo a vontade de criticar aqueles que, por omissão, são responsáveis pela proporção caótica que vivemos. Eu, particularmente, em que pese me solidarizar com críticas ao desgoverno federal, sobra-me a cada dia menos esforço para bradar contra os genocidas no poder. Torço, no silêncio do sofrimento diário, que a história condene cada um dos responsáveis.

O amargo sabor de viver esta pandemia não pode ser descrito pelos meus melhores esforços. A ansiedade e a culpa dos raros momentos de descanso, a exaustão de trabalhar, a dor da perda e o progressivo degringolar da realidade nos joga a uma estafa emocional inédita e que, para muitos, temo que seja excessiva.

Ganhei hoje conhecimento do falecimento de uma amiga médica com quem me formei e trabalhei. Havia conversado com ela há uma semana e, na oportunidade, tudo estava tão usual e razoável. Nada identifiquei como estranho. Desconheço, até o momento, a causa de sua morte e jamais ousaria praticar sensacionalismos debruçados em irreparável perda. Ainda assim, já consolei amigos médicos, enfermeiros e técnicos em suas dores, lágrimas e agonias causadas pela pandemia.

Deixo, de coração, meus públicos votos que não percamos nenhuma vida de colegas envolvidos na assistência pelo esgotamento emocional, tampouco que esteja seja o gatilho para agudização de enfermidades prévias de qualquer natureza.

Duros tempos vivemos.


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